Nem sempre carioca é quem nasce na cidade do Rio de Janeiro. Há os que chegam e se ambientam instantaneamente, seja no botequim, na praia, na feira livre ou num bloco – jamais bloquinho – de carnaval. E aí o sujeito ou a sujeita logo está andando por aí de chinelos, a chamar motorista de ônibus de piloto, vestir casaco quando a temperatura bate 20 graus ou se despedir de algum conhecido com o infalível “passa lá em casa”, sem que isso signifique um convite.
Não deve ter sido muito diferente com William Abrunhosa Blanco Trindade, um estudante de Belém do Pará que já havia passado por São Paulo quando veio para o Rio de Janeiro, em 1948, para concluir a Faculdade de Arquitetura. Chegou à Cidade Maravilhosa já azeitado pelos sambas de Noel Rosa, que chegavam a ele pelo rádio, na voz de Aracy de Almeida. Assim, quando virou Billy Blanco – e o samba passou a dividir seu tempo com a prancheta (arquiteto diplomado desde 1950) – nada mais natural que seguisse a veia cronista do Poeta da Vila.
Ou melhor, que fizesse “samba de costumes e diversões”, como escreveu o cronista Sérgio Porto, ao definir seu estilo de exímio aproveitador de motes. Como no fim de tarde em que foi à loja de um amigo e este, baixando a porta de ferro, anunciou: “Quem está fora não entra”. “Quem está dentro não sai”, rebateu Billy, ouvindo do amigo que aquilo dava samba. Tinha razão: o compositor ainda juntou alguns temas em voga – o bambolê, o vestido saco e o jiu-jitsu – para fazer um de seus sucessos, “Piston de gafieira”, lançamento de 1959.
O moço era faixa preta simplesmente
E fez o Doca rebolar sem bambolê
A porta fecha enquanto dura o vai-não-vai
Quem está fora não entra
Quem está dentro não sai
Também nos salões de dança – no caso, a Estudantina, onde observava o comportamento dos pés-de-valsa – ambienta-se “Os estatutos da gafieira”, outro sucesso de Billy, escrito sobre uma prancheta do Departamento de Correios e Telégrafos (onde ele desenhava uma agencia postal) e estourado em dois tempos: primeiro na voz de Inezita Barroso (1954), depois na de Jorge Veiga (1957). Já a grã-finagem mereceu um retrato equivalente em “Estatutos de boate”, outro samba lançado por Inezita (1956) e bisado em outro registro – neste caso, de Dolores Duran (1958).
Outra gravação importante feita por Dolores foi a de “Outono”, o samba romântico feito por Billy Blanco pouco depois de sua chegada ao Rio de Janeiro e lançado em disco em 1952 – em seus relatos, ele costumava dizer que esta fora sua primeira composição gravada, embora os Anjos do Inferno já tivessem lançado, em dezembro de 1951, o disco que trazia a gravação original do samba “Pra variar”, “uma música de carnaval horrorosa”, na definição do próprio autor ao programa MPB Especial, da TV Cultura (23-04-1973).
Dolores e Billy se conheciam desde fins de 1950, quando ele, formando-se arquiteto pela Universidade do Brasil, resolveu aproveitar o baile de formatura, realizado no salão nobre do Fluminense Football Club, e arriscou levar um samba de sua autoria para a orquestra do maestro Ferreira Filho, encarregada da música naquela noite. A crooner da orquestra era justamente Dolores, primeira a cantar o “Samba de doutor”, que no fim das contas só em 1958 foi gravado em disco, por Paulo Marquez.
Fazer samba é diversão
Não é preciso vir do morro ou da cidade
Um sambista de verdade
Só precisa inspiração
Mas a amizade com Dolores – aprofundada num namoro de seis meses – seguiu adiante e se desdobrou em ótimas gravações: como a do tristonho “Praça Mauá”, que saiu em disco em 1955, e a do divertido “Pano legal”, lançado no ano seguinte. Em seu livro de memórias, “Tirando de letra e música” (Ed. Record, 1996), ele conta que este segundo começou a surgir na festa de noivado de um amigo, o compositor Armando Cavalcanti. Foi o sambista Geraldo Pereira quem deu o mote, dizendo assim que chegou: “Pô! Seus coronéis e demais distintos, se eu soubesse como era o ambiente, tinha jogado um pano mais legal em cima de mim!”
Outro sucesso com uma boa história foi “A banca do distinto”, feito em cima de um relato de Dolores, que contou a Billy sobre um frequentador do Little Club, boate do Beco das Garrafas onde ela cantava. Arrogante, o sujeito ordenava aos garçons da casa que pedissem “à negrinha” as músicas que queria ouvir e, ao fechar a conta, fazia o funcionário levar o embrulho com o sanduiche que havia pedido para a viagem. O samba foi lançado no próprio Little Club. “Cantei olhando pro cara e ele nem se mancou”, conta Dolores, que não chegou a gravar a música em 78 rpm – quem o fez foi o cantor Ted Moreno, em 1960.
Não fala com pobre
Não dá mão a preto
Não carrega embrulho
Pra que tanta pose, doutor?
Pra que esse orgulho?
Também na linha da crítica de costumes é “Se papai fosse eleito”, samba sorridente que Blecaute lançou em 1957, com a melodia e a letra feitas por Billy a partir da hipótese – a que dá nome à música – aventada por um motorista do corpo diplomático (CD). E “João da Silva”, que Nora Ney gravou em 1962 com a história do brasileiro que “é nacionalista de um modo diferente”, com seu dinheiro esvaindo-se nos royalties que, sem perceber, paga às empresas estrangeiras. Na contramão da mesma via esquerda trafega “Camelô”, samba-charge-exaltação aos ambulantes, tipos que passou a observar – e admirar – no vaivém do Centro do Rio.
A idealização vale não só para tipos, mas também para locais como “O morro”, lugar “bem distante da cidade onde o samba é Brasil de verdade”, como cantou Nora Ney em 1955. A composição, em parceria com Tom Jobim, é parte da “Sinfonia do Rio de Janeiro”, suíte composta por eles no início dos anos 1950 e lançada em 1954 num dez polegadas da Continental com arranjos de Radamés Gnattali, tendo como intérpretes artistas do cast da gravadora.
No fim das gravações, dois desses artistas – Dick Farney e Lúcio Alves – foram aos autores da sinfonia com uma encomenda: queriam uma música que pudessem gravar juntos, “para ficarem as más línguas sabendo que nunca foram inimigos, bem como demonstrar que os timbres eram diferentes e ninguém imitava ninguém”, como escreve Billy Blanco em seu livro de memórias, no texto dedicado a “Tereza da Praia”, musa fictícia deste samba-diálogo lançado com sucesso em 1954.
No mesmo ano, o mesmo Dick gravou o tristonho “Grande verdade”, samba-canção só de Billy feito por encomenda do cineasta Carlos Manga, para o filme “A dupla do barulho”, estrelado por Oscarito e Grande Otelo. Já Elizeth Cardoso deu voz ao “Samba triste”, que Billy compôs em casa (Rua Raul Pompeia, Copacabana), acompanhado do jovem Baden Powell. “Badinho, dezoito anos, novinho, cheirando a tinta, que só bebia guaraná, me mostra um samba que, naquele ano de 1957, já era bossa nova. E me pede uma letra”, recorda nosso arquiteto-sambista em seu livro de memórias, orgulhoso do sucesso que o samba fez. “Essa música dá um trocado federal, estadual, municipal e internacional até hoje.”
Também da fase pré-bossa nova é “Mocinho bonito”, outro perfil traçado por Billy em forma de samba, ou melhor: de “um sambinha despretensioso que acabou marcando um tipo bem carioca da década de 50”, como conta em “Tirando de letra e música”. No texto, Billy conta que se inspirou, em parte, em sua própria situação para criar aquele tipo “pobre farsante” que acabou virando sucesso em 1957, no canto contido e suingado de sua amiga Dóris Monteiro – outra voz feminina marcante em sua trajetória.
Mocinho bonito
Perfeito improviso do falso grã-fino
No corpo é atleta
Mas no crânio é menino
Que além do ABC
Nada mais aprendeu
Há também os fatos da época que inspiraram sambas de Billy Blanco, como a morte precoce do cantor Francisco Alves, num acidente de carro na Via Dutra, levando à composição de “Prece de um sambista”, que Linda Batista lançou em dezembro de 1952, num 78 rpm dedicado ao Rei da Voz. Já a construção da nova capital do país inspirou “Não vou pra Brasília”, que faria Billy, fã do presidente Juscelino Kubitschek, passar o resto da vida dizendo que não era contra a empreitada, como explicou no programa MPB Especial (23-04-1973): “O compositor vive à cata de assunto e aquele era um bom motivo, que estava de bandeja.”
No livro de memórias, Billy relata que, após o lançamento da música pelos Cariocas, em outubro de 1957, JK “pediu ao Moacyr Areas, diretor-geral da Rádio Nacional, que segurasse as pontas e não desse audiência ao samba na rádio, na época a mais ouvida do continente. Forma delicada de vetar sem proibir”, avalia o compositor. “Mas o samba tocou nas outras emissoras, bailes, dancings, parques de diversão, circos, clubes, gafieiras, etc.”
A este atestado de carioquice soma-se outro lançamento de nosso herói paraense em 1957: composição que Billy fez numa noite em que, andando pelo Leblon, parou numa roda de samba e capoeira na praia. “Venho do reino do samba brilhar no asfalto / E na forma de samba vem o morro também”, diz a letra de “Viva meu samba”, gravado por Sílvio Caldas na Columbia, com sucesso imediato.
Já o intérprete Billy Blanco se revelou após o início da bossa nova, registrando sua voz pequena e esperta em LPs de vinil como dois lançados pela gravadora Elenco em 1966: “Músicas de Billy Blanco na voz do próprio” e o coletivo “Sérgio Porto, Aracy de Almeida, Billy Blanco no Zum-Zum”. Trinta anos depois, já no formato CD, cantou novamente no ao vivo “O autor e sua música: Billy Blanco informal” (CID) e “Doutores em samba: Billy Blanco e Radamés Gnattali” (Kuarup), este último gravado sobre as bases instrumentais do LP “Doutor em samba: Paulo Marquez interpretando Billy Blanco” (Columbia, 1958).
De sua discografia em long-playing também fazem parte o tributo que compôs para sua terra natal, “Guajará: suíte do arco-íris” (Warner, 1993), e o derradeiro “A bossa de Billy Blanco”, que fez em 2002 na gravadora Biscoito Fino, na companhia de convidados especiais como a conterrânea Leila Pinheiro e os cantores Ney Matogrosso e Erasmo Carlos, além de seu filho, o também músico Billy Blanco Jr., que o público já conhecia desde 1966, quando ele, aos nove anos, dividiu com o Quarteto em Cy a interpretação de “Se a gente grande soubesse”, composição de seu pai que terminou em 4º lugar no Festival da Canção da TV Rio de 1966.
Quando Billy Blanco faleceu (08-07-2011), em decorrência de um acidente vascular cerebral, aos 87 anos, veio de Bilinho a lembrança mais marcante, durante o velório na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, conforme a imprensa noticiou na época. Lembrou os versos de “Canto livre”, samba do pai que não só confortou os amigos e familiares em suas despedidas, como também agora, no centenário de seu nascimento (08-05-1924), relembramos como mais um registro de escrita precisa.
E um cantador não para, só morrendo
Mas a canção revive sua memória
E ele renasce a cada momento
Porque seu canto é parte da história
Foto: Billy Blanco em 1965 / Reprodução da internet.