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    Era uma vez o maxixe, o choro, o samba... bossa nova não! Paixões de Lúcio Rangel numa playlist em 78 rpm

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Para o jornalista Sérgio Cabral, ele era “o maior conhecedor da história da nossa música popular”, no que concordava sua colega Eneida de Moraes: ele sabia “os nossos sambinhas que ninguém conhece, com uma discoteca dentro da cabeça e – para que não dizer – guardada, muito arrumada no coração”. Já Tom Jobim o definiu como “um dos caras mais musicais que conheço”, prontamente respaldado pelo parceiro Vinicius de Moraes, que sublinhava sua “incontestável autoridade (para mim, máxima no Brasil) no assunto” música popular.

    Só que o jornalista e pesquisador Lúcio Rangel, além de tudo que sabia de samba (e choro, e jazz...), era conhecido também por não ter papas na língua. Ou, ainda na definição de Sérgio Cabral, por não ter “nenhum problema em manifestar seus gostos”. Mesmo que fosse para desancar publicamente, por exemplo, composições de seus amigos Tom e Vinicius, de cuja parceria (costurada por ele) teria nascido a bossa nova, que Lúcio chamava, jocosamente, de “sambalada”: “Se o negócio tem pouco ritmo, já não é samba”.

    Assim como o bebop – “criado para o cliente branco e que paga melhor” – já não era o jazz tradicional, este “feito do negro para o negro”, como definiu (Manchete, janeiro de 1954), da sua maneira avessa aos tons de cinza, que, aliás, valia não só para a música: “Eu não gosto de futebol, gosto é do Botafogo.” Ou então: “O verdadeiro carioca é o sujeito que nasceu na zona norte”, cravava, tijucano que era da Rua Campos Sales, nascido há 110 anos (17-05-1914), batizado Lúcio do Nascimento Rangel.

    Já vivia em Copacabana (desde os cinco anos) quando, menino ainda, descobriu os livros. “Com 14 anos já tinha lido Machado, Flaubert – em francês”, contou, na mesma entrevista, na qual falou também do sonho juvenil – frustrado pelo pai – de ser cantor de rádio.

    Depois, aprendeu a tocar trombone e se entendeu bem com o instrumento, que acabou pondo de lado. Da experiência de quase-instrumentista levou apenas o som que volta e meia reproduzia com a boca nos fins de noite, com a autoridade de um Raul de Barros em “Na Glória”: o trombone imaginário que se tornaria uma de suas marcas – era “o trombone do quarto uísque”, como definiu o cartunista Ziraldo, na entrevista de Lúcio ao O Pasquim (07-08-1973).

    Mas na vida civil acabou indo parar na faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade do Brasil, onde deu seu jeito de escapar da advocacia, dedicando boa parte de seu tempo à Revista Acadêmica, que criou com amigos, no começo dos anos 1930. Mas só na década seguinte assinou os primeiros textos sobre música na imprensa: primeiro n’O Jornal, depois no Jornal de Letras, no Diário Carioca, O Comício, Jornal do Commercio e a revista Manchete, entre outros veículos por onde passou entre os anos 1940 e 50.

    Revista da Música Popular: quatro exemplares da publicação editada por Lúcio Rangel que, entre 1954 e 56, fez história na crônica musical do país / Reproduções da Coleção Revista da Música Popular (Funarte, 2006)

    Seu maior legado jornalístico, no entanto, foi a Revista da Música Popular, criação sua que durou 14 edições – entre outubro de 1954 e setembro de 56 – e reuniu textos sobre a cena musical brasileira (em especial o samba, o choro e o jazz) assinados por figurões da época: Rubem Braga, Antônio Maria, Sérgio Porto (seu sobrinho), Millôr Fernandes, Vinicius de Moraes, Ary Barroso e Manuel Bandeira, entre outros figurões da crônica, das letras, da música e da boemia (outra paixão de Lúcio) à época.

    Por sinal, as mesas de bar, que frequentou desde a Lapa dos anos 1930, tiveram papel fundamental em sua formação de jornalista e crítico. Por exemplo: foi ali perto, na Taberna da Glória, que o imberbe Lúcio varou madrugadas com uma de suas referências na pesquisa musical, Mário de Andrade, com quem se correspondia por carta desde 1934. Sempre que o escritor paulista vinha ao Rio, Lúcio era um dos jovens discípulos que o rodeavam em debates infindáveis sobre música brasileira.

    “Mário sustentava que o samba rural paulista, sob o ponto de vista folclórico, sociológico, etnológico, etc., era um milhão de vezes mais importante que o samba carioca”, escreveu Lúcio (revista Lady, junho de 1957). Mas quando passavam de cinco chopes, era mesmo o “urbaníssimo” “Mangueira”, samba de Assis Valente e Zequinha Reis, que eles cantavam. “Ele achava lindo”.

    Não há, nem pode haver
    Como Mangueira não há
    O samba vem de lá
    Alegria também
    Morena faceira
    Só Mangueira tem

    De outra noite boêmia com Mário de Andrade veio uma conversa que, relatada pelo jornalista Sérgio Cabral n’O Pasquim (11-02-1971), começou pelo paulista: “Lúcio, sabe com quem estive hoje? Com Ismael Silva.” Ao que o interlocutor respondeu secamente: “Não conheço.” O paulista se arregalou: “Como você não conhece, Lúcio? O Ismael, você fala tanto dele, o que é que há?” “Não conheço”, sustentou. “Você está doido, Lúcio? Não conhece Ismael Silva?” “Não”, retrucou. “Só conheço O GRANDE Ismael Silva.”

    A ênfase na importância do sambista se justificava também por episódios como o que Lúcio Rangel relembrou numa crônica de novembro de 1971 reproduzida na coletânea póstuma “Samba, jazz & outras notas” (Agir, 2007). Nela, o ponto de partida é a advertência que o jornalista Prudente de Morais Neto, amigo de Lúcio, teria levado de um comissário de polícia, por estar “tomando chope com um malandro”. “O malandro, evidentemente, era Ismael Silva”, define. “Fiquei pensando: alguém, algum dia, chamou Irving Berlin ou Cole Porter de malandro? No entanto, eles fizeram, toda a sua vida, o mesmo que Ismael: música, excelente música popular.”

    Já na entrevista ao Pasquim, Lúcio confirma a história – levantada por Albino Pinheiro, um dos entrevistadores – de que o ídolo não teria participado da composição do samba “Se você jurar”, obra inteiramente feita pelo parceiro, Nilton Bastos, e lançada num 78 rotações da dupla Mário Reis e Francisco Alves. Mas Lúcio gostava mais do samba que estava do outro lado daquele disco, “O que será de mim”, composição assinada pelos dois compositores e mais Francisco Alves – que “dava 150 mil-réis para cada um”, garante.

    Na mesma entrevista, Lúcio relembrou o dia em que Ismael Silva veio mostrar a ele e a Prudente de Morais Neto o samba que tinha acabado de fazer, “Antonico”, sobre um sambista “em grande dificuldade” que precisa de ajuda – “viração”, como diz a letra: “Prudente caiu numa gargalhada: uma gargalhada alegre e triste ao mesmo tempo. Porque o ‘Antonico’ era o próprio Ismael”, define o jornalista, para quem o fundador da Deixa Falar era “um dos maiores compositores do Brasil”.

    Ele está mesmo dançando na corda bamba
    Ele é aquele que na escola de samba
    Toca cuíca, toca surdo e tamborim...
    Faça por ele como se fosse por mim!

    Há outras boas histórias de sambas nas crônicas de Lúcio. Como numa publicada em fevereiro de 1951, pela revista Senhor, sobre sucessos de carnaval, entre eles um lançado por Moreira da Silva em 1932. “Discutiam os autores de ‘Arrasta a sandália’, Oswaldo Vasques, o Baiaco, e Aurélio Gomes. O primeiro queria que fosse feita uma modificação no estribilho da música, que era, primitivamente, ‘Arrasta a sandália aí, madame’, e dizia com a maior seriedade ao parceiro: ‘Quem arrasta sandália não é madame, é morena. Madame arrasta soulier...’.”

    Já na revista A Cigarra (janeiro de 1957) uma entrevista do compositor Bororó a Lúcio Rangel traz, em primeira pessoa, os bastidores da composição de um grande sucesso de Sílvio Caldas: “‘Da cor do pecado’ foi em 1936. Nasceu na esquina da rua Benjamin Constant, no botequim do Máximo Broa. Estavam presentes o Custódio Mesquita e o Mozart Araújo”, contou o sambista, que recebeu o jornalista em seu apartamento no Leblon. “Havia certa morena que era tudo o que eu disse nos versos. Chamava-se Felicidade, foi a minha inspiração.”

    Outra boa entrevista de Lúcio publicada n’A Cigarra – mas em maio de 1959 – foi com o pianista Vadico, que relembrou o dia em que conheceu Noel Rosa, durante uma gravação que fazia com Francisco Alves, no estúdio da Odeon, em 1932. Quem promoveu o encontro foi o maestro Eduardo Souto, que se chegou ao piano trazendo Noel Rosa pelo braço e pediu a Vadico que tocasse aquele samba instrumental de que tanto gostava.

    “Percebendo o entusiasmo de Noel pela minha composição, ali mesmo sugeriu que trabalhássemos juntos. Concordamos, eu e Noel, imediatamente”, recordou Vadico, na conversa com Lúcio Rangel. “Dias depois, minha música recebia o título de ‘Feitio de oração’, e seria gravada no mesmo mês pelos cantores Francisco Alves e Castro Barbosa.”

    O samba, na realidade
    Não vem do morro, nem lá da cidade
    E quem suportar uma paixão
    Sentirá que o samba então
    Nasce do coração

    O Poeta da Vila, aliás, é personagem recorrente nas crônicas em que revisita o Rio da década de 1930. Fosse no cinema Broadway, onde o sambista, “ainda no começo de sua carreira de compositor e cantor”, subiu ao palco “carregando o violão, que nas suas mãos parecia aumentar de tamanho”, para cantar o samba “Um gago apaixonado”, como Lúcio contou no Jornal de Letras (novembro de 1950). Fosse mais de perto, quando viu Noel “cantando ‘Cor de cinza’ e, depois, tomando ovos quentes na Chave de Ouro”, café na Avenida Rio Branco, como relatou na Revista Manchete, em março de 1954.

    Em outro fotograma desta última crônica – coletânea de memórias musicais às vésperas de completar 40 anos – Lúcio traz a lembrança de “Chico Alves e Mário Reis, no Teatro Lírico, em ‘Estamos esperando’”, em mais uma referência a Noel, autor do samba. Já de Lamartine Babo é a “Marchinha do amor”, também presente entre os momentos que testemunhou no antigo teatro, como relatou na revista Comício (outubro de 1952): “Entravam os dois no palco, cada um por um lado, reuniam-se no proscênio e começavam:

    Com a letra A começa o amor que a gente tem...
    Com a letra A começa o nome do meu bem...

    Mas do famoso dueto Lúcio gostava mesmo era de Mário Reis, com seu jeito moderno de cantar samba, como aprendera com seu professor de violão, o compositor José Barbosa da Silva, o Sinhô. Este, nome já consagrado na década de 1920, andava insatisfeito com a maneira operística com que suas composições vinham sendo gravadas pelos cantores da época. “Todos berravam”, descreveu Lúcio no Jornal de Letras (novembro de 1951). Pois foi Sinhô, “grande sambista, o primeiro de todos”, quem moldou o canto coloquial do iniciante Mário, como se pode ouvir em seu disco de estreia (Odeon 10.224), de 1928, quando gravou “De que vale a nota sem o carinho da mulher” (Sinhô).

    “A maneira quase ortográfica de pronunciar as palavras e seu jeito muito pessoal de sambar foram uma grande novidade para a época, um verdadeiro purgante que varreu da praça os imitadores dos italianos, os tenores e barítonos que tiravam toda a graça e a malícia dessa delícia que se chama o samba carioca”, definiu Lúcio (Jornal de Letras, março de 1950). “Nenhum cantor popular brasileiro deixou, desde então, de sofrer, direta ou indiretamente, a influência de Mário Reis. O próprio Chico Alves, que mais tarde faria dupla com ele, aprimorou sua dicção e refreou suas tendências para a ópera”, ensinou no único livro que publicou em vida, “Sambistas & chorões” (Livraria Francisco Alves, 1962 e Instituto Moreira Salles, 2014)).

    Criticar Mário só de leve, como no texto em que discorda da correção que o cantor teria feito no samba “Quem espera sempre alcança”, de Paulo da Portela. “O autor cantava: ‘Orgulho, hipocrisia, vaidade, nada mais / São três coisas que em menos de um segundo se desfaz.’ O bacharel Mário Reis, admirável intérprete do samba, logo corrigiu a letra e o verbo. Cantava ‘Se desfazem’. O português melhorou, mas a rima foi para o brejo”, espeta o jornalista, numa das crônicas publicadas no livro “Samba, jazz & outras notas”.

    Paulo da Portela era outro herói de Lúcio Rangel, assim como Cartola, ou melhor: o divino Cartola, como fazia questão de chamá-lo, usando o mesmo adjetivo do primeiro sucesso do compositor mangueirense, o samba “Divina dama”, de 1933.

    Tudo acabado e o baile encerrado
    Atordoado fiquei
    Eu dancei com você, divina dama
    Com o coração queimando em chama

    “Eu, sempre que fui juiz de escola de samba, julguei com a maior decência possível. Eu dava nota 7 pro Salgueiro, 6 pra Mangueira, 5 pro Império Serrano”, confidenciou na entrevista ao Pasquim. “Mas quando eu via o Cartola eu aumentava imediatamente um ponto pra Mangueira.”

    Quem também tirava Lúcio Rangel do prumo era Pixinguinha, o “maior músico popular que já tivemos em todas as épocas, mesmo considerando a grandeza de um Ernesto Nazareth, de um Sinhô, de um Noel Rosa”, em sua definição (revista Long Playing, setembro/outubro de 1957). A ponto de travessuras, como em 1956, quando a Rua Belarmino Barreto, em Ramos, passou a se chamar Rua Pixinguinha (era lá que o músico morava desde 1939) e, no meio das festividades da inauguração, a placa com o nome do logradouro simplesmente desapareceu – obra de Lúcio Rangel, que segundo o jornalista Sérgio Cabral (no livro “Pixinguinha, vida e obra”), adicionara o objeto a sua coleção particular de relíquias.

    Nos textos escritos sobre o mestre do choro, é comum Lúcio destrinchar as quatro vertentes de sua atuação, frisando que “devemos considerar o instrumentista, o compositor, o orquestrador e o chefe de orquestra”. O próprio músico, aparentemente, dava menos cartaz a estes multitalentos, como o jornalista-fã relatou no mesmo texto para a Long Playing: “Quando um repórter perguntou, recentemente, a Pixinguinha, qual a parte de sua obra que considerava a mais importante (...), ele respondeu meio encabulado: ‘O que eu gosto mesmo é de fazer minha musiquinha.’”

    Pixinguinha em duas imagens: no Bar Gouveia e na capa do disco da Velha Guarda (Sinter, 1955), em desenho de Lan / Imagens: IMS / Coleção Pixinguinha 

    O texto traz ainda as preferidas de Lúcio Rangel em cada uma das frentes de atuação de Pixinguinha: das gravações que fez como flautista, por exemplo, cita “verdadeiras obras-primas, como o famoso ‘O urubu e o gavião’ e ‘Aguenta, Seu Fulgêncio’, em que toda a sua técnica e seus sons de improvisação são postos à prova”. Não à toa, quando a Revista de Música Popular finalmente nasceu, era do ídolo a foto estampada na capa da primeira edição, de outubro de 1954.

    Já no ano seguinte, no texto de apresentação que escreveu para o dez-polegadas “A Velha Guarda”, com Pixinguinha liderando seus contemporâneos, afirmou que “sua presença frente a um conjunto é garantia de qualidade e de êxito certo”. E que, “tocando atualmente saxofone-tenor, é soberbo nos arranjos para pequenos conjuntos e em orquestrações para grupos numerosos”, passando em seguida a elogiar outros integrantes do grupo, como Donga, João da Baiana e Almirante, este impecável na interpretação do partido-alto “Patrão, prenda seu gado”.

    Na lavra tem um ditado:
    Quem mata gado é jurado
    Missa de padre é latim
    Rapaz solteiro é letrado
    Eu vim preso da Bahia
    Porque era namorado

    Também por Pixinguinha volta e meia participava da romaria que ia ao Bar Gouveia, na Travessa do Ouvidor, encontrar o músico, que fazia do salão seu “escritório”. Mas a frequência de Lúcio era mais assídua em bares mais próximos à Cinelândia, como o Amarelinho, o Vermelhinho ou a Casa Villarino. Neste último, foi decisivo para a criação da parceria de seu amigo Vinicius de Moraes com Tom Jobim, este levado por Lúcio até o poeta, que procurava um compositor para musicar a peça “Orfeu da Conceição”, em 1956.

    “O Vinicius queria fazer uma espécie de (musical à moda de) Cole Porter, então ele pensou naquele velho maestro italiano, sabe?”, recordou Lúcio Rangel, na entrevista ao Pasquim. “E eu disse para ele: ‘Não, tem um garoto que é capaz de fazer isso.’ No dia seguinte, chegou lá Tonzinho.” Passados o convite de Vinicius e a célebre pergunta de Tom Jobim, se tinha “um dinheirinho nisso” (“pergunta perfeitamente imbecil”, segundo Lúcio, “por timidez”), estava garantido a repertório de “Orfeu”, que teria sambas com o ótimo “Lamento no morro”.

    Quando veio a bossa nova e, com ela, os sucessos de “Chega de saudade” (1958) e “Garota de Ipanema” (1962), entre outras criações da dupla, acusou, nas páginas do Mundo Ilustrado, a descaracterização do que entendia como samba autêntico.

    Vinicius reagiu em um artigo dirigido a Lúcio, no qual critica os “puristas da música popular” por dividirem o samba – “uma arte tão comprometida, tão engajada (...) com a vida” – em “compartimentos estanques”. O jornalista respondeu a Vinicius que ele e Tom (“dupla inventada por mim”) eram livres para fazerem músicas que o povo cantasse junto. “Mas o povo aceitar é que são outros 500 mil-réis”, previu (errado) num artigo no Mundo Ilustrado (abril de 1959), citando “Dorinha, meu amor” (“aquele samba de que você tanto gosta”) como exemplo de “consagração popular” – o maxixe de 1928 tinha voltado às paradas em 57.

    O autor da composição apreciada por Vinicius, por sinal, era velho conhecido de Lúcio. Tanto que, certa noite de 1940, quando bebia com amigos “num desses tristes cabarés da Lapa”, reconheceu-o ao piano: “O senhor não é o José Francisco de Freitas?”, disparou, como relatou numa crônica na Manchete (março de 1954). “O homem arregalou os olhos, espantado, ao ser reconhecido por um estranho, e confirmou minha pergunta.” O jornalista guardava-o na memória desde o longínquo 1924, quando, aos dez anos, passava férias em Caxambu (MG), e ouviu à exaustão, entre goles de água mineral, o maxixe “Zizinha”, que o próprio pianista lançava em primeira mão, com seus versos sapecas:

    Zizinha, Zizinha
    Ó vem, comigo vem, minha santinha
    Também quero tirar uma casquinha

    Já Ernesto Nazareth veio parar nos escritos de Lúcio Rangel através de memórias alheias: no caso, as do compositor francês Darius Milhaud, que em seu livro de memórias “Notes sans musique”, publicado em 1949, dedicou um capítulo ao Rio de Janeiro de 1917, quando esteve na cidade e se impressionou com o pianista carioca, como destacou (e traduziu) Lúcio na revista O Comício, em outubro de 1952: “Um dos melhores compositores de música desse gênero, Nazareth, tocava piano na sala de espera de um cinema da Avenida Rio Branco. Seu jogo fluido, desconcertante e triste ajudou-me a melhor compreender a alma brasileira”, anotou Milhaud, que, de volta a Paris, compôs “Le boeuf sur le toit” (“O boi no telhado”), com citações de choros que recolheu no Rio – entre eles, quatro de Nazareth: “Escovado”, “Apanhei-te cavaquinho”, “Ferramenta” e “Carioca”.

    Os primórdios da fonografia no Brasil também serviram de tema a Lúcio Rangel, que dedicou uma página inteira do Jornal do Brasil (28-11-1959) às “Primeiras chapas de gramofone”, com destaque especial para a chegada dos discos ao Brasil, em 1902: “No mesmo ano em que Enrico Caruso gravava dez árias para a Gramophone Co., em Milão, o popularíssimo Baiano passava para a cera o primeiro disco nacional, ‘Isto é bom’ (10.001), e mais 72 outros, conforme se lê no primeiro catálogo publicado pela Casa Edison.”

    Ainda nos primórdios da história fonográfica no Brasil, Lúcio Rangel enfrentou o pesquisador Ary Vasconcelos numa discussão sobre qual seria o primeiro samba gravado: Ary defendia que a primazia era de “A viola está magoada”, música assinada por Catulo da Paixão Cearense e lançada em disco pelo cantor Baiano, com numeração (Odeon 120.445) anterior à da gravação original de “Pelo telefone” (Odeon 121.322), pela Banda Odeon. Numa crônica no Jornal do Commercio (em fevereiro de 1958), Lúcio defende a prevalência do célebre samba de Donga, afinal “a numeração dos discos da Odeon da segunda década de 1900 não obedecia a critério algum”.

    Tivessem Lúcio e Ary uma fonte como esta Discografia Brasileira, saberiam que “A viola está magoada”, gravado em 1913, era apenas um dos 58 sambas lançados em disco antes de 1917 – quando, aliás, saiu a gravação mais conhecida de “Pelo telefone”, feita também pelo famoso Baiano, da Casa Edison do Rio de Janeiro. Ainda no JB (28-11-1959), reconheceu “as muitas falhas visíveis” de seu levantamento fonográfico dos primórdios, dada “a completa falta de notícias nos jornais da época”. “Mas a história do disco no Brasil há de ser feita um dia”, previu. “Que essas notas sirvam de contribuição.”

    Quando faleceu, vitimado por um edema pulmonar aos 65 anos (13-12-1979), morava na rua que levava no sobrenome, a Nascimento Silva (66/301, em Ipanema), assim chamada em homenagem a seu avô, o engenheiro Carlos Augusto do Nascimento Silva, diretor de obras da Prefeitura. Sepultado no dia seguinte, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, foi lembrado na Revista Manchete (29-12-1979) em um obituário assinado pelo amigo Flávio de Aquino: “Tempos atrás, ele nos dizia: ‘Não desejarei mais viver no dia em que morrerem Louis Armstrong e Pixinguinha.’ Agora, infelizmente, o trio está formado.”

    Foto: Alécio de Andrade / Acervo IMS

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