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    O Poeta da Vila e a Dama do Cabaré: há 90 anos, Noel Rosa conhecia Ceci, sua grande paixão e musa inspiradora

    Fernando Krieger

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    Podia muito bem ser um enredo de novela, de filme romântico ou de série de TV: moça do interior perde a mãe aos 13 anos; o pai se casa novamente, mas a madrasta – tal como nos contos de fadas – transforma sua vida e a de seu irmão mais novo num inferno, respaldada pela autoridade do marido, que sempre a apoia. Cansada, a mocinha faz as malas e viaja para a cidade grande sem nenhuma perspectiva. Lá, conhece um mundo totalmente diferente e conquista vários corações, entre eles o de um famoso artista, com quem vive uma cálida história de amor.

    Só não teve a parte do “e viveram felizes para sempre”. Fora isso, o resto realmente aconteceu. O romance começou num cabaré da Lapa carioca 90 anos atrás: uma festa de São João na noite de 23/06/1934 mudaria para sempre a vida de uma moça recém-chegada do interior, de um jovem e afamado compositor de Vila Isabel e da própria música brasileira, que ganharia nada menos que nove canções, algumas delas verdadeiros clássicos do repertório popular, todas baseadas neste idílio tão amoroso quanto tumultuado.

    A antiprincesa deste conto, Juracy Corrêa de Moraes, a Ceci (ou Cecy, como a chamam algumas fontes), nasceu em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em 16/05/1918. Com 15 anos, fugiu da casa onde morava em Friburgo com o pai, a madrasta e o irmão, e, desembarcando na capital com uma amiga, conseguiu abrigo na residência de sua tia Jacinta, na Rua Barão de São Félix, próxima à estação ferroviária (futura Central do Brasil).

    Para ganhar a vida, trabalhou numa drogaria, depois como caixa de restaurante. Salário baixo – não sobrava dinheiro para se divertir. Naquela noite de sábado, ao lado da amiga Alzira (que levou o namorado e o irmão), ela entrava pela primeira vez num cabaré, o Apollo, trajando “um costume verde-claro de saia justa e colete, chapeuzinho preto ajustado na cabeça”, como descreveram João Máximo e Carlos Didier em “Noel Rosa: uma biografia” (UNB/Linha Gráfica Editora, 1990).

    Logo chamou a atenção do responsável pelas dançarinas do lugar, o Cunha, que a abordou com uma proposta de trabalho, explicando as regras: fazer companhia para os clientes, dançar, conversar, dar atenção, só isso. Nada parecido com certos inferninhos da mesma Lapa. Horário: das onze até as três, quatro da madrugada. Com o salário – fora as comissões –, ela ganharia mais do que no restaurante. Dezesseis anos? Um problema, mas o Cunha lhe garantiu que, se houvesse batida policial, bastava ela se esconder no banheiro, como outras moças menores de idade da casa.

    “Ceci sabe desde o primeiro instante qual a única resposta que pode dar ao Cunha. Por inexplicável razão, deixou-se enfeitiçar pelo cabaré”, afirmam Máximo e Didier. Pouco depois da meia-noite, chegou o grande nome da festa. Era comum as casas da Lapa oferecerem noitadas musicais em prol de uma personalidade da música. Naquela noite, a celebridade festejada era Noel Rosa. “Ceci sabe quem é Noel, de sua fama, do quanto essas pessoas que lotam o Apollo o admiram. Mas nunca ouvira outro samba dele que não fosse ‘Com que roupa?’ e ‘O orvalho vem caindo’”, explicam os biógrafos do Poeta da Vila.

    Continuam Máximo e Didier: “Noel termina seus números e começa a circular por entre as mesas. Ceci não o conhece. Muito menos ele a ela. Até que seus olhares se encontram. (...) Ao contrário do que irão sugerir os versos que daqui a algum tempo Noel escreverá inspirado neste primeiro encontro, Ceci não fuma. Não ainda. Nem entorna champanhe no seu soirée (na verdade, sequer veste um). Mas realmente os dois dançam um samba e trocam um tango por uma palestra”.

    Palestra (conversa) que vai até as quatro da manhã. “Noel está deslumbrado com Ceci, ela está deslumbrada com o cabaré”, resumem Máximo e Didier. Ele se oferece para levá-la em casa, mas ela agradece e dispensa, estava com amigos. Noel pergunta se ela trabalha no Apollo; ante a resposta afirmativa – Ceci já se considerando contratada –, anima-se: “Então eu te vejo por aqui amanhã ou depois”. A moça estava prestes a entrar na longa lista de amores do artista, que contava com, entre outras, Clara Corrêa Neto, Josefina Félix e Júlia Bernardes.

    A mais recente era a jovem Lindaura Martins. Esta, aos 17 anos, em 1933, quase tinha feito Noel virar caso de polícia, após passar a noite num hotel com ele. A mãe da moça foi à delegacia acusá-lo de rapto – embora Lindaura tenha estado com Noel por vontade própria – e exigir o casamento de ambos como “reparação” do erro, no que era apoiada por Martha, mãe de Noel. Começaria aí uma pressão sobre ele – que nunca cogitou um relacionamento sério com ninguém. Inspirado em Clarinha, Fina, Julinha e Linda, Noel faria músicas – mas não tantas quanto ele escreveria para Ceci. Detalhe: nenhuma traria uma declaração de amor, só queixas, lamentos e alfinetadas. Será que ela realmente merecia?

    A primeira seria justamente a dos versos citados anteriormente. Gravada por Orlando Silva apenas em julho de 1936, foi lançada um mês depois: “Dama do cabaré” – denominação que Ceci carregaria pelo resto da vida. Até o samba chegar ao disco, no entanto, muita água rolaria. Ceci iria se transformar, nas palavras de Máximo e Didier, numa “fulgurante danseuse do Cabaré Apollo”. Passou a dividir com uma amiga um apê na Avenida Gomes Freire, mais perto do emprego, e a trabalhar como modelo vivo dos alunos da Escola Nacional de Belas Artes, para complementar a renda. Esquivou-se das investidas de Noel – “vamos continuar assim, amigos”, repetia – até levar uma dura de Julinha Bernardes, ex-paixão do artista. Pra fazer afronta à outra, Ceci resolveu assumir de vez o relacionamento.

    O de Noel com Lindaura havia esfriado. Ele esperava por Ceci todas as noites no Apollo. No começo, apontam seus biógrafos, Noel “parece aceitar tacitamente que ela seja como é, livre, não só sua, mas da noite”. Como ele próprio, aliás. Ceci fazia bicos de girl em espetáculos de circo e no teatro de revista. Foi tocando o romance – e se divertindo – com Noel.

    “Esperando Ceci todas as madrugadas no Apollo, ficando com ela até de manhã, trocando mais do que nunca a noite pelo dia, alimentando-se pouco, (...) Noel emagrece. (...) Além disso, bebe muito”, contam Máximo e Didier. Ele chegou a desmaiar durante uma apresentação no Cine Grajaú. No final de 1934, explica Rodrigo Alzuguir em “Wilson Baptista: o samba foi sua glória!” (Casa da Palavra, 2013), ele “descobriu que tinha tuberculose. A doença ainda estava no início, mas era melindrosa e, pior que isso, um tabu. O médico foi enfático: era preciso mudar radicalmente de vida. Dar adeus à boemia, às noites mal-dormidas e às refeições trocadas por cerveja gelada”.

    Seguindo o conselho, Noel resolveu passar uma temporada em Belo Horizonte na casa de uma tia, Carmem. Sentiu-se na obrigação de levar Lindaura. Então sua mãe, Martha, voltou à carga: a moça só entraria na casa da irmã, e na sua própria, se estivesse casada. Assim, deu-se o matrimônio, no dia 01/12/1934. Em janeiro de 1935, o casal partiu para uma temporada de três meses na capital mineira – regada, pela parte de Noel, a muita cantoria e boemia. Ele não viajaria sem antes procurar Ceci. Explicou laconicamente que foi pressionado a se casar, que andava adoentado e precisava sair do Rio por um tempo, atrás de outros ares.

    “Magoada com ele desde a notícia do casamento, Cecy decidiu tocar a vida livre de compromissos e fechou-se (progressivamente) a ele”, conta Alzuguir. O que não a impediu de ir até sua casa quando escutou, no Apollo, a informação de que Noel estaria à beira da morte em BH. Foi recebida por dona Martha; esta desmentiu o boato. Ao retornar, Noel ficou sabendo pela mãe da atitude da moça, que não se identificara, mas cuja descrição batia com a de Ceci. Surpreso – não esperava que ela ainda se preocupasse com ele –, fez com Vadico o samba “Ilustre visita”, cheio de ironia, bem à sua moda: “Você entrou naquele meu chalé modesto porque pretendia somente saber qual era o dia em que eu deixaria de viver”.

    Com este samba, Noel fez sua reestreia radiofônica, cantando na Rádio Guanabara. Ceci, sabendo disso, sintonizou a emissora na hora marcada... e escutou o recado malcriado do compositor, que ainda encaixou o nome dela na letra – mas só naquela ocasião: “E pelas informações que recebi, Ceci, a ilustre visita era você, porque não existe nessa vida pessoa mais fingida que você”. Depois, quando se reencontrarem, Noel já não estará tão amargo. “E substituirá a ironia por um sorriso afetuoso e sincero. ‘Ouviu o samba que fiz pra você?’”, contam Máximo e Didier. Rebatizado de “Só pode ser você”, foi gravado por Aracy de Almeida em agosto de 1936, mas só chegaria às prateleiras das lojas sete meses depois, em março de 1937.

    Em seu livro, Alzuguir fala sobre a rotina da dançarina durante a viagem do amado: “Vestida de soirée e rodopiando pelo salão do Apollo, Cecy tentava esquecer Noel. ‘Não era uma paixão, mas me sentia bem com ele’, diria ela. (...) Nas noites de cabaré, a jovem campista papeou e dançou com boêmios de todos os naipes (...). Fora do Apollo, Cecy contava com outro protetor: (...) Madame Satã. Ser amiga de Satã era para Cecy uma espécie de salvo-conduto nas andanças pelas madrugadas da Lapa. A menina de 17 anos amadurecia sem olhar para trás”. Também recebia a proteção dos malandros Meia-Noite e Saturnino, como ela contaria a Mary Vasconcelos em entrevista publicada na revista Fairplay nº 26, de abril de 1969.

    Noel, de volta ao Rio, tentou uma reaproximação. “Não será feito apenas de sorrisos afetuosos o reencontro dos dois. Sério, possivelmente constrangido, Noel lembra a história do casamento às carreiras, ele já sem forças para resistir a tantas pressões (...). Ceci, contudo, não lhe pede explicações. Aceita-o assim mesmo, solteiro ou casado, sem exigências”, esclarecem Máximo e Didier. Combinaram então de morar juntos num pequeno quarto mobiliado, primeiro andar de um sobrado na Avenida Mem de Sá, o que, segundo os autores, vai “torná-lo mais presente do que devia na vida da meiga e fugidia Ceci”. E ausente na de Lindaura.

    Que certa ocasião chegou a flagrar os pombinhos. Numa manhã, a caminho da missa, ela reconheceu o carro de Francisco Valuche, motorista amigo de Noel. Ao se aproximar, segundo os biógrafos deste, “É sacudida pela cólera ao ver lá dentro, além do próprio motorista, Ceci e Noel. Os três dormem depois de mais uma noitada”, Noel com a cabeça repousada no colo de Ceci. Lindaura fez um “escândalo de despertar quarteirão”, bateu no vidro, gritou. Todos acordaram assustados; Valuche arrancou com o automóvel, “quase mandando ao chão a enfurecida Lindaura”.

    Agindo “como se as regras do jogo fossem umas para ele e outras para ela”, nas palavras de Máximo e Didier, o ciumento Noel continuou “sempre envolvido com muitas mulheres”, mas não admitia que Ceci se interessasse por outro. O que de fato aconteceu algumas vezes, inclusive por um conterrâneo dela, também natural de Campos: Wilson Batista. “Logo ele?”, perguntaria Noel a Ceci – a famosa “polêmica” entre os dois sambistas já então havia se iniciado. Noel sugeriu que ela não se encontrasse mais com Wilson. “Sugestão que Ceci não segue”, revelam os autores.

    A “polêmica” musical com Wilson Batista iria se encerrar após um encontro casual dos dois no Café Leitão, da Lapa. Noel, ao escutar o samba “Terra de cego”, de Wilson, gosta e pede para mudar a letra. E a direciona para Ceci, em mais uma alfinetada musical: “Deixa de ser convencida” – o novo título do samba – seria mostrado em primeira audição por Roberto Paiva somente em 22/06/1951, no programa “No tempo de Noel Rosa”, na Rádio Tupi, registro que, recuperado, chegaria ao disco em 1989 como uma das faixas do long-playing “Os ídolos do rádio – Vol. XVII”, da Collector’s.

    O romance continuava, com muitos momentos felizes e divertidos, mas também com discussões e agressões verbais, principalmente quando ambos bebiam. Nessas ocasiões, para deixar claro o que sentia, Noel lançava mão de uma linguagem que dominava muito bem: a dos sambas – através dos quais ele obviamente fazia valer o seu ponto de vista. Caso de “O maior castigo que eu te dou”, que Aracy levaria ao disco em abril de 1937 e que seria lançado apenas em junho daquele ano. Mas voltemos a 1936. Ceci apresentava-se então em outras casas noturnas – Roxy, Assyrius, Royal Pigalle. Ao pedir dinheiro a Noel – que não costumava lhe negar – para comprar um soirée novo, recebeu de volta um sonoro não... e mais um samba, dele e de Vadico: “Cem mil-réis” – o valor da quantia solicitada. Noel o gravaria em março de 1936, em duo com Marília Batista.

    Foi no Royal Pigalle que Ceci conheceu – na descrição de Máximo e Didier – “um moço alto, magro, elegante, simpático, a quem conhece de vista e de nome. (...) Ao contrário dos demais fregueses que a tratam com extrema insensibilidade e até com autoritarismo (...), Mário Lago chega-se a Ceci com as maneiras de um cavalheiro”, fascinando a moça de 18 anos, que sempre acalentara um desejo de se casar – teria chegado a hora?

    Rivais no coração de Ceci: Wilson Batista (Coleção José Ramos Tinhorão/IMS), Noel Rosa (Reprodução da internet) e Mário Lago (Reprodução do livro 'A Rádio Nacional', Ed. Nova Fronteira, 2005).

    Ela e Mário vão a “teatro, cinema, ceias em restaurantes de primeira (...). Ceci passa a viver, nos últimos meses de 1936, seus melhores tempos desde que chegou ao Rio”, afirmam os biógrafos de Noel. Mário ajudou Ceci quando ela adoeceu, reaproximou-a do irmão, fez-se presente em sua vida. Noel, um tanto sumido, voltou a procurá-la. A moça acabou dividida entre dois amores de mundos tão diferentes. Começou a beber mais, a provocar pessoas, xingar, levantar a voz, fazer escândalos.

    Logo a doce e meiga Ceci, que Mário Lago recordaria em seu livro “Na rolança do tempo” (Civilização Brasileira, 1979) como “Ceci-pingo-d’água, que às vezes me acarinhava as noites com o pensamento em Noel Rosa (...)”. No meio desse imbróglio, Ceci afirmou a Noel que, sim, gostava muito dele. De Noel, recebeu como resposta o silêncio – e outro samba, dele e do parceiro Vadico, levado ao disco por Silvio Caldas em setembro de 1938, mas que o público só conheceria em fevereiro de 1939: “‘Pra que mentir’ se tu ainda não tens esse dom de saber iludir? (...) Pra que mentir se tu ainda não tens a malícia de toda mulher?”.

    Sentindo-se traído – como se ele próprio fosse um exemplo de fidelidade –, gravou em novembro de 1936, ao lado de Marília Batista, um 78 rotações com “dois sambas referentes aos amores de Ceci”, de acordo com Almirante em “No tempo de Noel Rosa” (Livraria Francisco Alves, 1963): “Quantos beijos!” – parceria com Vadico – e “Quem ri melhor”. Ceci agora trabalhava no decadente Caverna, no subsolo do Cassino Beira-Mar, no Passeio Público. Foi lá que Noel mais uma vez a procurou, no dia de seu aniversário de 26 anos, 11/12/1936. Combinaram então de se encontrar à meia-noite na Taberna da Glória.

    “Nunca a ausência de palavras entre eles disse tantas coisas”, enfatizam Máximo e Didier. Não houve perguntas embaraçosas nem cenas de ciúmes, só longos silêncios e algumas tiradas espirituosas de um triste e febril Noel. Que, por fim, afirmou: “Hoje eu tenho certeza”. “De quê?”, indagou ela. “De que tudo acabou”. Pediu a ela que passassem a noite juntos; os dois seguiram para um hotel nas imediações. Quase ao amanhecer, ela acordou e viu que Noel estava “na mesma posição em que o deixara ao adormecer, sentado numa cadeira aos pés da cama, imóvel, os olhos fixos nos seus”. Era a sua despedida, embora fossem se encontrar uma vez mais.

    Bastante doente, o sambista ainda teria tempo de escutar um episódio desagradável narrado por seu irmão Hélio: este e o primo Jacy Pacheco (futuro biógrafo de Noel) estavam uma noite no Caverna e haviam bebido demais. Ceci se aproximou, sentou-se e começaram a falar sobre Noel. Jacy, transtornado, a culpou pelos pulmões estragados do primo e atirou cerveja em seu rosto. Noel então foi procurá-la no sobrado da Mem de Sá, onde ela naquele momento residia com uma amiga. Pediu a alguém para chamá-la. Ela recebeu o recado, escutou a zanga do rapaz que lhe fazia companhia, Mário Lago – “É só ele chamar e você vai...” –, e desceu.

    Vendo o estado de saúde do ex-amor, parou um táxi e levou Noel de volta a Vila Isabel. No caminho, ele pediu desculpas pelo primo Jacy. Que, anos mais tarde, negou que tenha jogado cerveja em seu rosto. Mas Ceci, em depoimento a Máximo e Didier, seria categórica quanto ao autor da agressão: “Primo de Noel, tinha o nome parecido com o meu [Juracy] e era de Campos como eu”. No carro, Ceci prometeu a Noel que esqueceria o acontecido. Ao deixá-lo em casa, despediram-se – desta vez, sim, para nunca mais. Noel Rosa ainda iria compor mais um samba inspirado em Ceci, “talvez sua obra-prima”, com “a força de um testamento”, segundo Máximo e Didier.

    “Nosso amor que eu não esqueço e que teve o seu começo numa festa de São João / Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar, sem violão”, dizem os primeiros versos de “Último desejo”. Noel ditou a letra a Vadico com a incumbência de este levá-la para Ceci, o que foi feito. Ao entregar o papel à moça, no Caverna, Vadico fez uma observação: “Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceci”. Noel não viveria para escutar a interpretação de Aracy de Almeida, que o gravou em julho de 1937 (o disco só chegaria às lojas em março de 1938): faleceria em 04/05/1937. Ao receber, no Caverna, a notícia de que ele havia morrido, Ceci deixou escapar baixinho duas palavras: “Pronto... acabou.”

    Ela tocou sua vida. O romance com Mário Lago esfriou. Como dançarina, participaria em 1937 da peça “Rumo ao Catete”, no Teatro Recreio. Em 1939, casaria com José Antônio de Araújo. Conseguiria enfim fazer as pazes com o pai. No dia em que Noel completaria 35 anos, 11/12/1945, Ceci ficou viúva. Voltou a trabalhar em cabarés e dancings: “(...) em 1958 podia ser vista animando as noites da boate Balalaika, em Copacabana”, revelaria Mary Vasconcelos na revista Fairplay. Foi assim que juntou “o dinheiro que lhe permitiu comprar seu próprio chalé modesto na Vila Kennedy, subúrbio carioca, onde envelheceria como professora particular de crianças pobres”, relatam Máximo e Didier.

    Ceci em dois tempos na década de 1960: em 1969, na revista Fairplay (Coleção José Ramos Tinhorão / IMS), e em 1967, na 2ª edição do livro 'No tempo de Noel Rosa' (1977).

    Casada novamente com o mecânico Mário Reis, que conhecera em 1960, a professora de português e matemática – que lecionava desde 1967, segundo conta Almirante na 2ª edição (1977) de “No tempo de Noel Rosa” – diversas vezes saiu do anonimato para dar entrevistas e participar de reportagens, assim como fazia Lindaura, viúva de Noel. Esta logicamente nunca engoliu as amantes do marido – e tinha uma delas particularmente atravessada na garganta. “Ele [Noel] era assim. Arrancava sambas de todos os fatos de sua vida. O que me enchia de raiva era que, às vezes, essas ‘coisas’ tinham nome de mulher. O caso, por exemplo, de ‘Dama do cabaré’, feito por ele para uma tal Ceci”, declarou à revista Jóia de abril de 1962 (reportagem de Luiz Carlos Sarmento), procurando diminuir a rival.

    A Dama do Cabaré daria extenso depoimento a Mary Vasconcelos para a Fairplay de abril de 1969. Nele, Ceci passou a limpo sua história: contou vários episódios, muitos deles publicados anos depois por Máximo e Didier – que a entrevistaram por dez dias em 1981 – na biografia de Noel. Honrando o nome do periódico, teve fairplay ao (não) falar sobre Lindaura: “Ela sempre respeitou meu nome, devo respeitar também o dela”. Rebateu o verso final de “Último desejo”, “Que eu não mereço a comida que você pagou pra mim”: “Não, nunca paguei comida pra ele”. Revelou ainda que escutara de um dos motoristas amigos de Noel, o Papagaio (Álvaro Rodrigues Gouvêa), que ela e Noel seriam a colombina e o pierrô citados em “Pierrô apaixonado” (1935), de Noel e Heitor dos Prazeres.

    Também acreditava, como revelaram Máximo e Didier, ter sido a inspiradora de “Pela primeira vez” (1936), de Noel com Cristóvão de Alencar, na ocasião em que ela viajara para Belo Horizonte como girl de uma revista e Noel fora se despedir na estação ferroviária – a ser verdade, esta foi a única vez em que ele declarou seu amor por Ceci em forma de música. Dizia ainda que seriam para ela os versos de Mário Lago na valsa “Número um” (1939), parceria com Benedito Lacerda: “Passaste hoje ao meu lado vaidosa, de braço dado com outro que te encontrou”.

    Ceci em 1990, fotografada por Tasso Marcelo para o Jornal do Brasil (11-12-1990) 

    Em 2005, dona Juracy deu uma entrevista a Rodrigo Alzuguir, biógrafo de Wilson Batista. Morava então em Irajá e, aos 87 anos, não lecionava mais. Alzuguir contou, em texto escrito para o blog “O samba carioca de Wilson Baptista”, que Ceci “já não andava e falava com dificuldade. (...) Um fiapinho de gente”. Meses depois, ainda se mudaria de novo com o marido, Mário, “para algum lugar no estado do Rio”, do qual Alzuguir não se lembrava. No início de 2006, soube por telefone que dona Juracy havia falecido. Em seu post publicado na Internet, ele falou sobre a emoção de tê-la conhecido: “Foi incrível passar uma tarde no Irajá ao lado da Dama do Cabaré – mesmo que no apagar das luzes!”.

    Foto principal: Ceci na década de 1930, em reprodução do livro "No tempo de Noel Rosa" (2ª edição, de 1977)

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