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    Lúcio Alves, 1954: sozinho ou com o ‘rival’ Dick Farney, o apogeu em duas gravações eternas

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Em meados de 1954, Lucio Alves já não era apenas mais um cantor entre tantos da música brasileira. Era “o moço de Cataguases que se tornou o maior de todos os cantores de música moderna”, como descreveu O Jornal em sua edição de 28-04-1954, numa matéria que destacava o sucesso que vinha fazendo em suas apresentações tanto na Rádio Nacional quanto na Mayrink Veiga.

    Aos 27 anos, o jovem artista já tinha então um cartel de veterano: revelado aos nove, no programa Picolino, da Mayrink (1936), aos 14 já tinha fundado um conjunto vocal, os Namorados da Lua (1941), do qual se desligou seis anos depois (1947) para se juntar aos concorrentes Anjos do Inferno, com os quais viajou a Cuba e aos Estados Unidos e se apresentou com Carmen Miranda.

    Já tinha emplacado seu maior sucesso de compositor, o telecoteco “De conversa em conversa” (com Haroldo Barbosa), quando, aos 21 anos (1948), emancipou-se em carreira solo. Virou o “cantor das multidinhas”, como era chamado jocosamente pelo radialista Silvino Neto, em referência ao Cantor das Multidões, Orlando Silva, ídolo e maior referência artística de Lúcio desde menino.

    E embora já tivesse lançado sucessos como os sambas-canção “Amargura” (Radamés Gnattali e Alberto Ribeiro), “Nunca mais” e “Sábado em Copacabana” (ambos de Dorival Caymmi), o ponto alto de sua discografia de intérprete ainda estava por vir – e não tardou. Veio algumas semanas depois da matéria d’O Jornal, especificamente em julho de 1954, quando o público pôde ouvir, na voz de Lúcio Alves, as gravações originais de “Valsa de uma cidade” (Ismael Neto e Antônio Maria) e “Tereza da Praia” (Tom Jobim e Billy Blanco), esta no famoso dueto com Dick Farney.

    Dois grandes sucessos da música popular brasileira lançados há exatos 70 anos e curiosamente gravados no mesmíssimo 07-06-1954, na Continental, então localizada na Rua Pedro Lessa, Centro do Rio de Janeiro – marcos iniciais não só dessas duas músicas, como das ótimas histórias que estão por trás delas.

    Uma das mais belas homenagens musicais ao Rio, “Valsa de uma cidade” guarda a particularidade de ter sido inteiramente produzida por não cariocas. Gravada na voz de Lúcio (mineiro de Cataguases) com o acompanhamento de orquestra dirigida por Severino Araújo (pernambucano de Limoeiro), seu compositor é Ismael Neto (paraense de Belém), o letrista é o recifense Antônio Maria e o arranjador desta primeira gravação é o porto-alegrense Radamés Gnattali.

    Além de criador da melodia, Ismael Neto foi “o autor da harmonização vocal e o diretor e ensaiador do conjunto vocal que auxiliou Lúcio na gravação”, como informou o crítico Miguel Curi, do jornal A Noite (05-01-55), antes de destacar também que a harmonização escrita pelo maestro Radamés foi feita “sob ideia de Ismael”. A matéria, que aponta o 78 rotações de “Valsa de uma cidade” como “o melhor disco de 1954”, conta que, antes da gravação, a música teve “grande êxito nos programas da Rádio Nacional, onde foi lançada”.

    Lúcio Alves, com seu cartaz cada vez maior na programação radiofônica, por pouco não ficou fora dessa história. Segundo o jornalista Ruy Castro, em seu livro “A noite do meu bem” (Cia das Letras, 2015), duas cantoras quase levaram a melhor: “Ismael ofereceu-a a Heleninha Costa, sua mulher. Mas Heleninha assistira ao parto da canção e já se cansara de ouvi-la em casa – recusou-a. O destino natural de ‘Valsa de uma cidade’ seria Dolores (Duran), mas, antes que chegasse a ela, caiu nas mãos de Lúcio Alves, e foi ele quem a consagrou.”

    Vento do mar no meu rosto
    E o sol a queimar, queimar
    Calçada cheia de gente a passar
    E a me ver passar...

    No livro “A canção no tempo – vol. 1” (Ed. 34, 1997), os autores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello chamam atenção para “o enfoque descritivo” da letra “do grande cronista que foi Antônio Maria”, com versos que “bem poderiam servir de abertura a uma de suas crônicas”, mas abrem “uma das mais belas canções, entre tantas, que louvam o Rio de Janeiro, uma canção em ritmo de valsa, ao contrário da maioria, que canta a cidade em ritmo de samba”. Ou de marcha, como as festejadas “Cidade maravilhosa” (André Filho), “Primavera no Rio” (João de Barro) e “Cidade mulher” (Noel Rosa).

    Sua gravação original saiu no disco 16.995 da Continental – trazendo no lado B o samba-canção “Velho amor” (Lourenço Leonardo e Olavo Bertoni) – e caiu no gosto popular, a julgar pelo Correio da Manhã (24-10-1954), que colocou a valsa entre as músicas que, segundo o Ibope, eram as mais pedidas nas lojas de discos, ao lado do “Xote das meninas” (Luiz Gonzaga e Zé Dantas), do tango “Carlos Gardel” (Herivelto Martins e David Nasser) e do samba “Leviana” (Zé Kéti e Amado Régis), entre outros sucessos da época.

    Rio de Janeiro, gosto de você
    Gosto de quem gosta
    Deste céu, deste mar
    Desta gente feliz...

    Também a crítica especializada abraçou o hit de Lúcio Alves, a ponto de os redatores da coluna Rádio DN, do Diário de Notícias, terem publicado uma queixa na edição de 1 de fevereiro de 1955: “Não compreendemos que Ismael não tenha sido escolhido pela crônica especializada como melhor compositor de 1954. Sua produção ‘Valsa de uma cidade’, com versos de Antônio Maria, bastaria para isso.”

    Pois o título, na avaliação dos críticos d’O Jornal (14-01-1955), havia sido dividido entre Tom Jobim e Billy Blanco, justamente os compositores de “Tereza da Praia”, outro petardo daquele ano lançado por Lúcio Alves – aqui em dueto com Dick Farney, outro barítono que cantava moderno, com vozeirão bem colocado, ao pé do ouvido, sem vibratos ou exageros – nos anos anteriores à bossa nova. “Naquele julho de 1954, os dois estavam no auge da forma e da fama. E, embora os fãs não quisessem acreditar, estavam também no apogeu de sua amizade”, assinala Ruy Castro no livro “Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova” (Cia das Letras, 1990).

    Os dois cantores polarizavam, desde o fim dos anos 1940, uma rivalidade entre fã-clubes que, como nas disputas entre marlenistas e emilistas, tinha mais a ver com propósitos comerciais – isto é, com a vendagem de discos e revistas – do que propriamente com questões artísticas. Seja como for, parte da juventude interessada em música na década de 1950 andava dividida em grupos que sincretizavam os dois cantores modernos com aqueles que acreditavam ser seus respectivos na música estadunidense: o Sinatra-Farney Fan Club (da Tijuca) e o Dick Haymes-Lúcio Alves Fan Club (de Botafogo).

    Rivais de mentirinha: Lúcio Alves (clicado por Halfeld) e Dick Farney (por Santhiago) 
    em retratos da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    De olho na suposta cizânia, a Continental – gravadora de Lúcio e Dick – viu então uma oportunidade de melhorar suas vendas em 1954, como contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello em outro verbete do já citado “A canção no tempo – vol. 1”. “A ideia era promover a ‘pacificação’ dos dois através de uma canção dialogada em que eles disputavam a mesma garota”, contam os pesquisadores-escritores.

    No livro “Chega de saudade”, Ruy Castro informa que a ideia do dueto partiu de Dick Farney. “O irresistível é que todos os ingredientes da receita estavam à mão: Dick e Lúcio eram da Continental; a gravadora tinha um jovem ‘compositor da casa’, Tom Jobim, que sabia fazer as coisas no estilo de que eles gostavam”, enumera Ruy. “E Billy Blanco, que aparecera pouco meses antes com ‘Estatutos de gafieira’, parecia um especialista em escrever letras que contassem uma história engraçada.”

    Em entrevista ao Globo Repórter (06-08-1987), Billy confirmou que “Tereza da Praia” começou como uma encomenda de Dick, “para provar que eles se davam muito bem e que as vozes eram diferentes, porque todo mundo dizia que um cantava igual ao outro”, arremata o letrista. “Entre eu e o Dick, o som da voz do Dick – para mim – é muito mais bonito que o meu”, confessou Lúcio Alves em depoimento ao jornal O Pasquim (28-08-1973). “Agora, dizer uma letra junto com a melodia, aí sou mais eu”, contrapôs. “Me considero mais intérprete do que ele.”

    Pois foi para este encontro de vozes graves – a de Lúcio mais nasal e metálica, a de Dick mais seca e contida – que nasceu a história da conversa entre amigos sobre o mesmo “amor de pequena” – houve, na época, quem desconfiasse que a musa da canção fosse inspirada na então companheira de Tom Jobim, Thereza, o que Billy Blanco tratou de desmentir em seu livro de memórias “Tirando de letra e música” (Editora Record, 1996): “Lamento desapontar críticos, jornalistas e boateiros: Tereza da Praia é figura absolutamente fictícia.”

    – Lúcio, arranjei novo amor no Leblon
    Que corpo bonito, que pele morena
    Que amor de pequena
    Amar é tão bom...

    Já o Leblon, onde os dois marmanjos dizem ter encontrado a moça, “entrou na canção não apenas para rimar com ‘amar é tão bom’”, segundo Ruy Castro (“Chega de saudade”). “Quase despovoado, o Leblon dos anos 50, assim como Jacarepaguá e o Joá, era um lugar perfeito para namorar – sua praia à noite, com ou sem lua, era o paraíso a dois”, explica o escritor em seu também fundamental “A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção” (Cia das Letras, 2015).

    – Ô Dick, ela tem o nariz levantado
    Os olhos verdinhos, bastante puxados
    Cabelo castanho
    – E uma pinta do lado...

    E assim foram Dick e Lúcio para o estúdio da Continental, onde cantaram acompanhados – conforme se lê na etiqueta do disco – por “Tom e Seu Conjunto”, com o piano a cargo do próprio band leader, que com esta gravação alcançou seu primeiro sucesso de compositor – “Tereza da Praia” foi lançada no disco nº 16.994, trazendo no lado B a interpretação do dueto para a toada “Casinha pequena”, de Lúcio. Um “samba pré-bossa nova”, como definiram os autores de “A canção no tempo – vol. 1”, tanto pela harmonização, quanto pela letra coloquial e a interpretação intimista dos “modernos e galantes cantores”.

    “Valsa de uma cidade” também tem seus traços pré-bossa novistas, seja pelos já citados versos com jeito de crônica descritiva ou pela homenagem que prestam ao Rio, musa frequente de Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e outros letristas da bossa nova. Ou ainda porque sua letra solar com desfecho tristonho percorre o caminho inverso de “Chega de saudade”, marco inicial do movimento, lançado em 1958 no canto enxuto e balançado de João Gilberto, este um dos maiores fãs de Lúcio.

    E no poema que eu fiz
    Tinha alguém mais feliz que eu
    O meu amor
    Que não me quis

    Durante os anos da bossa nova, Lúcio Alves sintonizou sua voz aveludada (assim como Dick Farney) ao canto contido da garotada que despontava na nova cena musical brasileira. Admirado por ela, gravou discos na Odeon (“Sua voz íntima, sua bossa nova, interpretando sambas em 3D”, de 1959), na Philips (“A bossa é nossa”, de 1961, e “Tio Samba”, de 1961) e na Elenco (“Bossa session”, de 1964, com Sylvia Telles e o conjunto de Roberto Menescal).

    A partir do fim da década de 1960, em plena efervescência da Jovem Guarda e da MPB (impulsionada pela era dos festivais), já não encontra o mesmo espaço na indústria fonográfica. Daqui por diante, gravará cada vez menos e com intervalos maiores entre discos – embora a voz e o balanço seguissem intactos. Foi o que constataram os ouvintes de “Doris e Lúcio no Projeto Pixinguinha”, LP que a Odeon lançou em 1978, com o repertório da turnê que ele havia feito com Dóris Monteiro naquele ano – tendo sua “Valsa de uma cidade” entre os números mais aplaudidos do show.

    Outras regravações perpetuaram a composição de Ismael Neto e Antônio Maria, entre elas as versões instrumentais feitas por Dick Farney ao piano – com seu trio (1956) ou acompanhado de orquestra (1966). Já entre os registros vocais, foi cantada em sotaques diversos: pelo baiano Caetano Veloso (1987), pela paraibana Elba Ramalho (2011) e pelas paulistanas Rita Lee (2007) e Hebe Camargo (2010). Outras cantoras que interpretaram a valsa foram as cariocas Miúcha (1997) e Joyce Moreno (2012), esta inspirada no arranjo d’Os Cariocas, que regravaram a música pela primeira vez em 1958, num disco dedicado ao então recém falecido Ismael Neto (1925-1956), fundador do conjunto.

    Também septuagenária, “Tereza da Praia” foi muito regravada ao longo do tempo, sobretudo a partir da década de 1990, quando reapareceu nos registros de Emilio Santiago com Luís Melodia (1995) e Sérgio Ricardo com João Nogueira (1996). Já no século seguinte, a musa de Lúcio e Dick foi cantada em outros duetos, como os de Paulo Jobim e Billy Blanco Jr. (2002), Caetano Veloso e Roberto Carlos (2008), Chico Buarque e Wilson das Neves (2012), João Bosco e Zé Renato (2013) e Roberto Menescal e João Donato (2018). Já Chico Anysio regravou a música sozinho (1969), ou melhor, desdobrado em seus múltiplos personagens, que se alternam entre os versos do samba.

    Foto principal: Lúcio Alves na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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