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    Turuna, chorão e ‘máquina de tocar bandolim’: memórias de Luperce Miranda nos 120 anos de seu nascimento

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Pinião, pinião, pinião
    Oi! Pinto correu com medo do gavião
    Por isso mesmo o sabiá cantô...
    Bateu asa e voou e foi cumê melão

    No carnaval de 1928, não teve marchinha, samba ou maxixe que rivalizasse com “Pinião”, a embolada que o Rio de Janeiro cantava em coro desde o ano anterior. Também pudera: a música nordestina andava em moda na então capital federal pelo menos desde 1922, quando os Turunas Pernambucanos – conjunto de Jararaca, Ratinho, João Pernambuco e cia. – vieram do Recife para a exposição do Centenário da Independência arregalando os olhos gerais de cariocas e visitantes com seus chapéus de couro, lenços no pescoço e, principalmente, emboladas.

    O sucesso da música nordestina no Rio ganhou novo capítulo em 1927, quando outro conjunto pernambucano – os Turunas da Mauricéia – baixou na cidade, também com ampla repercussão. Tanto que, em novembro daquele ano, já lançavam dez discos pela Odeon, sempre creditados como acompanhantes de Augusto Calheiros, o cantor do grupo. Pois era justamente num desses 78 rpm que estava a gravação original de “Pinião”, fartamente divulgada no ponto mais movimentado do Centro, “por um alto-falante postado no edifício fronteiro à Galeria Cruzeiro”, na Avenida Rio Branco, como conta o jornalista Edigar de Alencar no livro “O carnaval carioca através da música” (Livraria Freitas Bastos, 1965).

    E olha que os Turunas da Mauricéia estavam desfalcados, já que um dos fundadores do conjunto só chegaria ao Rio no início de 1928, após o “sucesso estrepitoso” – segundo Alencar – de “Pinião” no carnaval. Este era Luperce Miranda, justamente o bandolinista que assinava a composição da famosa embolada (junto com Augusto Calheiros), embora a música fosse, originalmente, “uma cantiga sertaneja de provável origem folclórica”, como informam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no livro “A canção no tempo, vol. 1” (Ed. 34, 1997). Já na capa da partitura de “Pinião”, editada em fins de 1927 pela Casa Carlos Wehrs, a composição vinha creditada como tendo “música e letra dos Turunas da Mauricéia”.

    'Pinião': o maior sucesso do carnaval de 1928 em partitura e disco de 1927 / Reproduções da internet

    Mas Luperce viajou até o Rio trazendo mais um conjunto, o Voz do Sertão, formado por Minona Carneiro (voz), Robson José Ferreira e Dedé (cavaquinhos) e os irmãos Robson (bandolim) e Jaime Florence (violão). Este último, mais conhecido por Meira, seria mais um a fazer história na música brasileira, como componente do Regional do Canhoto, compositor do samba-canção “Molambo” (com Augusto Mesquita) e professor de violão de estetas do instrumento como Baden Powell, Raphael Rabello e Maurício Carrilho. O companheiro mais importante Luperce trazia nas mãos: o bandolim.

    Pois foi com eles – instrumento e músicos conterrâneos – que Luperce, ainda no início da estada carioca, debutou nos estúdios de gravação. Na Odeon, foram 16 discos lançados com o Voz do Sertão entre agosto de 1928 e março de 1929, com composições de sua autoria, como o choro “Pra frente é que se anda”, a valsa “Lucinete” e o fox-charleston “Buliçoso”. Desta fornada inicial saíram também gravações cantadas, como “Sertão de Surubim” e “Samba da meia-noite”, ambas cantadas por Minona Carneiro, que divide com Luperce a co-autoria das músicas.

    Também gravou suas composições com formações mais enxutas, como os dois violões – de seu irmão, Romualdo Miranda, e Meira – que o acompanharam no charleston “Gozado” ou o violão de Meira que se pode ouvir com o bandolim de Luperce no choro “Lá vai madeira” e no foxtrote “Festa no Pina”, duas gravadas na Parlophon, ainda em fins de 1928. “Duas magníficas execuções que merecem os nossos aplausos”, avaliou o Correio da Manhã (27-01-1929). “Os dirigentes da Parlophon nesta capital fizeram uma ótima aquisição com a entrada do exímio bandolinista Luperce Miranda para o seu estúdio, onde tem gravado o que há de mais palpitante em seu instrumento.”

    Aos poucos, suas composições passaram a ser gravadas também por grandes nomes do rádio. Como Francisco Alves, que lançou, para o carnaval de 1931, o “Frevo pernambucano”, uma parceria de Luperce com Osvaldo Santiago que entrou para a história como a primeira música gravada trazendo no nome a palavra “frevo”. E o samba “Vaca maiada”, mais um motivo folclórico assinado por ele (com Manoel Lino), que alcançou relativo sucesso no mesmo carnaval depois de ter sido gravado por Almirante.

    É de manhã...
    É de madrugada
    Vamo tirá leite, sá dona
    Da vaca maiada

    Além dos elogios na imprensa – “é considerado entre os técnicos da arte dos sons o maior bandolinista brasileiro” (O Malho, 21-12-1929) – o sucesso se refletiu também em proventos para Luperce Miranda. “Quase caí duro, de espantado, quando soube que tinha mais de 3 contos para receber, só de direitos autorais”, relembrou o músico ao Correio da Manhã, numa matéria retrospectiva publicada em 24-07-1955.

    De matéria em matéria, o público foi sabendo também da história do novo solista do pedaço: recifense do bairro Afogados, nascido em 28-07-1904, era o quinto filho da professora Amélia e do pequeno empresário João Henrique, que comandava uma fábrica caseira de charutos envolvendo toda a família em funções diversas – a Luperce cabia, desde muito novinho, rodar a cidade de bonde para distribuir a produção entre os clientes da Fábrica Miranda. O tempo da família era dedicado também à música, a começar pelo piano que a mãe teclava nas horas vagas e pelo pai multi-instrumentista – do violão, do bandolim e do piano.

    Mas foi no violino de um de seus irmãos (dez ao todo!) que o menino começou a brincar de música: aproveitando momentos de desatenção dos mais velhos, empilhava cadeiras até alcançar o alto do guarda-roupas, onde o instrumento estava supostamente escondido, até parar nas mãozinhas do petiz. “Mal podia aguentar o arco”, contou Luperce Miranda ao Correio da Manhã (24-07-1955). Aos sete, já participava das serestas capitaneadas por Seu João, que, segundo o cronista Jota Efegê (O Jornal, 09-11-1966), “tinha em casa uma orquestra que fazia ensaios diários, sem horário estabelecido, mas sempre que havia tempo para a passagem de seu repertório.”

    Depois que a Fábrica Miranda deixou de existir e Seu João saiu de casa para se unir a outra companheira, foi na música que a família se socorreu. Aos 12 anos, Luperce fez do bandolim seu instrumento (segundo Jota Efegê, tocava também cavaquinho, piano, contrabaixo, guitarra portuguesa, violão e raquete sonora) e foi à luta: depois do primeiro recital, no Teatro de Santa Isabel, foi trabalhar como músico nos cafés e cinemas do Recife. Aos 14, apresentava-se na refinada Confeitaria Glória, como pianista do Jazz Band Leão do Norte. Seu talento impressionou até Pixinguinha, que passava pela cidade com os Oito Batutas e convidou o adolescente a seguir viagem com eles – bem que ele queria, mas ficou: era arrimo de família.

    Só em 1928, um ano após a partida dos Turunas da Mauricéia (conjunto do qual era fundador), pôde seguir o caminho deles rumo ao Rio de Janeiro, onde não demorou a fazer seu cartaz. Além dos discos que gravou de imediato, foi contratado pela Rádio Clube do Brasil, primeira emissora de sua longa trajetória radiofônica. “No rádio, onde o escuto, fico absorto ao ouvi-lo”, escreveu o músico amador e memorialista Alexandre Gonçalves Pinto, vulgo Animal, no livro “O choro: reminiscências dos chorões antigos” (1936). “Digo para mim: será possível, haver um gênio igual?”

    A fama de Luperce Miranda se fez também através de recitais concorridos em terras cariocas, como um no Instituto Nacional de Música, com direito a “um belo solo de bandolim, tocado nas costas”, como ressaltou o Correio da Manhã (23-11-1928). “Consagrado como principal elemento do conjunto sertanejo A Voz do Sertão”, como definiu o impresso, “sua agilidade é verdadeiramente extraordinária.”

    “Uma das grandes inovações trazidas pelo conjunto de Luperce foi a sistematização do uso do bandolim como instrumento de acompanhamento e sobretudo como solista nos conjuntos de choro”, define a pesquisadora Marília Trindade Barboza em seu livro “Luperce Miranda, o Paganini no Bandolim” (Editora da Fonseca, 2004). “Percorrendo-se a discografia da MPB em 78 rpm raramente se encontra uma gravação de um solo de bandolim e, mesmo nos acompanhamentos, não é frequente a participação desse instrumento.”

    Pois é de Luperce o bandolim que passa a ser ouvido com cada vez mais frequência em gravações diversas neste início dos anos 1930. Como as primeiras dos sambas “Com que roupa” (Noel Rosa), “Se você jurar” (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves) e, um pouco mais adiante, “No tabuleiro da baiana” (Ary Barroso). Ele passa a ser requisitado também para turnês, como a que fez em 1931, apresentando-se com Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis na Argentina, no Chile e no Paraguai.

    Entre os pontos altos desta viagem ficaram duas lembranças de Buenos Aires: as apresentações aplaudidíssimas que fez na Rádio El Mundo e no Cine Teatro Broadway. “Nesta ocasião, foi considerado pelo maestro Carranza como o maior bandolinista vivo do mundo”, relatou o Diário da Noite (21-01-1958).

    Já a proximidade com Pixinguinha, seu antigo admirador, rendeu a Luperce Miranda outros marcos fonográficos, a começar por uma das primeiras gravações de “Carinhoso”, equivocadamente identificado como “Carinhos” no disco do bandolinista, em 1934. No ano seguinte, gravou outras duas composições de Pixinguinha – o choro “Recordando” e a valsa “Iolanda” – timbrando seu bandolim com a flauta do próprio compositor e o violão de sete cordas de Arthur de Souza Nascimento, o Tute, introdutor deste instrumento no choro.

    Tute e Luperce Miranda também estiveram juntos no Quarteto Brasil, que o bandolinista formou – com os violões de Romualdo Miranda (seu irmão) e José Menezes – na década de 1940, na Continental. Foi com eles que fez a primeira gravação, em 1945, de “Reboliço”, um de seus choros mais conhecidos, assim como “Segura o dedo”, este lançado em 1934, pelo próprio bandolinista com acompanhamento de conjunto regional, na Victor. Além das gravações em 78 rpm, o repertório autoral de Luperce era divulgado nas apresentações regulares que fazia no rádio – fosse na Mayrink Veiga (onde foi atração do famoso Programa Casé) ou na Nacional.

    Luperce e seu bandolim acompanhando Aracy de Almeida na Rádio Mayrink Veiga
    Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Por tudo isso houve certo espanto quando, sem maiores explicações, o artista simplesmente desapareceu das gravadoras e emissoras cariocas em 1946. De mala e cuia, ele tinha voltado para o Recife, onde permaneceria até 1955. Nove anos que, segundo a biógrafa Marília Trindade Barboza, serviram para Luperce escapulir do emaranhado conjugal — e consequentemente financeiro — que havia criado: além da esposa, Maria José, relacionava-se com outras três mulheres (Floripes, Luiza e Estael), procriando com todas. Durante a estada pernambucana estabilizou-se com a última, num capítulo não menos espinhoso de sua vida pessoal: Estael era sua sobrinha, filha de Romualdo Miranda, que por sua vez não se opunha à relação. Com ela, a quem dedicou a valsa “Tezinha”, Luperce teve nove de seus 18 filhos.

    Já na vida profissional a fase pernambucana serviu para Luperce abrir novas frentes. Já renomado, empregou-se na Rádio Jornal do Commercio, onde se apresentava à frente da Grande Orquestra (então regida por Cesar Guerra-Peixe), com o Trio Miranda (com os irmãos Nelson e Romualdo) ou com seu regional, já reformatado em um novo quinteto, com a participação do jovem ritmista José Gomes Filho, vulgo Jackson do Pandeiro. Também pela emissora, passou a percorrer outras cidades nordestinas, tocando seus choros de Salvador a Fortaleza, sempre com casa cheia e boa repercussão.

    Até que, em maio de 1955, viajou até o Rio de Janeiro para fazer um show na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e dali a pouco tempo estava contratado pela Rádio Nacional. Restabeleceu-se na cidade e logo assinou também com a Sinter, gravadora onde passou a fazer seus discos – no primeiro deles, além de “Tezinha” estava o coco “Bumba meu boi”, também de sua autoria.

    Pelo mesmo selo lançou seus primeiros LPs, a começar pelo dez polegadas “Ritmos brasileiros, vol. 2: choros e valsas”, com oito faixas trazendo composições suas, como os choros “Picadinho à baiana” e “Bate palmas”, ambos lançados também em 78 rpm. Aproveitou para também revisitar valsas antigas de sua autoria, como “Quando me lembro” (1931) e “Foi um sonho” (1936). Mas a principal novidade na volta ao Rio foi a abertura, em 1956, da Academia Luperce Miranda, na qual sistematizou uma atividade – a de professor de música – que há algum tempo já exercia informalmente.

    Outra surpresa encontrada na cidade que havia deixado uma década antes foi Jacob do Bandolim. O genial instrumentista, 14 anos mais novo que ele, despontou para o sucesso justamente na segunda metade dos anos 1940, quando passou a gravar suas composições e a se firmar como o principal sucessor de Luperce. Embora admirador confesso do pernambucano, Jacob não gostou quando ele, no depoimento que gravou para a posteridade no Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), em 10-03-1967, disse ter sido seu professor.

    “Nunca fui aluno de Luperce Miranda. Se tivesse sido, estaria sobremodo honrado”, afirmou Jacob, três dias depois, num adendo gravado no mesmo museu. “Ele tem uma técnica, uma agilidade até agora jamais atingida por quem quer que seja.”

    Em resposta ao veterano, que disse ter recebido Jacob em sua casa depois que este foi procurá-lo na Rádio Clube, contou uma história bem diferente: quando percebia a presença do bandolinista aprendiz no estúdio da emissora, Luperce fechava a cortina para que o jovem não pudesse ver os movimentos de suas mãos. Contou também que, quando fez as primeiras apresentações na Rádio Guanabara, no começo dos anos 1930, recebeu uma advertência do ídolo: “Você para de tocar as minhas músicas, porque você está tocando errado.”

    Luperce Miranda na companhia do musicólogo Mozart de Araújo
    Coleção José Ramos Tinhorão / IMS 

    Luperce, igualmente admirador de Jacob (“É um grande artista”, afirmou no MIS), jamais respondeu à réplica. Seguiu seu caminho com as atividades na academia e outros lançamentos fonográficos em long-playing: “De ontem e sempre” (MIS, 1968), “O bandolim e o mestre” (Prodígio, 1970), “Luperce Miranda” (Som/Copacabana, 1971) e “História de um bandolim”  (Discos Marcus Pereira, 1977). Já em vídeo teve sua arte registrada algumas vezes nessa mesma década, como no documentário de curta-metragem “Chorinhos e chorões” (Antônio Carlos Fontoura, 1973) e num trecho de show registrado pelo cinejornal “Brasil hoje” (1976).

    Neste último, aparece trajado de smoking, como pedia a ocasião: um recital no Golden Room do elegante Hotel Copacabana Palace. Acabou valendo também como uma espécie de grand finale, com o registro derradeiro de sua imagem. Luperce Miranda faleceu em 05-04-1977, a pouco mais de três meses de completar 73 anos, depois de cinco dias internado no Hospital São Francisco de Assis, na Tijuca, onde deu entrada após sofrer um infarto. Seu corpo foi velado em casa, no bairro de Marechal Hermes, e sepultado no cemitério Jardim da Saudade.

    “Luperce poderia ter sido um compositor tão grande quanto Ernesto Nazareth ou Pixinguinha, se tivesse estudado teoria ou harmonia, mas nunca quis”, avaliou o sanfoneiro, compositor e arranjador Sivuca, em depoimento a Marília Trindade Barboza. “Era um dos mais completos instrumentistas brasileiros. Na minha opinião, o melhor. Uma técnica impecável, o Paganini caboclo, uma máquina de tocar o instrumento.”

    Na foto principal: Luperce Miranda em 1941 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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