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    Era uma vez o samba, o choro, as marchinhas, o carnaval e outras histórias que nos contou Sérgio Cabral, pai – viva ele!

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    A de ABC

    Falecido há exato um mês (14/07), aos 87 anos, o jornalista e escritor Sérgio Cabral deixou um legado fundamental para a música popular brasileira, como um dos principais contadores de suas histórias. Como repórter que trouxe à luz figuras do samba (invisíveis até a década de 1960), nas páginas dos jornais onde trabalhou. Como autor de biografias de personagens fundamentais do samba, do choro, da bossa nova, do carnaval. Como produtor/roteirista de grandes shows e discos, além de compositor bissexto, radialista e comentarista – esportivo e carnavalesco – na televisão. Nas últimas duas décadas, passou a ser tratado por Sérgio Cabral pai (desde que o filho xará se lançou na política), o que, como bem observou meu amigo Rodrigo Alzuguir, escritor e pesquisador da pesada, veio a calhar de outra maneira, como ele explicou em seu perfil no Instagram: “Serjão foi um pouco pai de todos nós, que amamos a música brasileira a ponto de escrever sobre ela, fazer disso profissão.” As historinhas que vão a seguir, assim como a seleção musical em 78 rpm, são minha singela homenagem a este grande carioca que tive a sorte de conhecer pessoalmente. Escolhi contá-las da maneira como ele mesmo fez no livro “ABC do Sérgio Cabral: um desfile dos craques da MPB” (Ed. Codecri, 1979), com verbetes em ordem alfabética – e desde já me perdoem os puristas pelo alfabeto incompleto, mas W e Y... quem sabe numa versão em inglês?

    B de Benjamim

    Foi com um tio que Sérgio aprendeu a gostar da música brasileira de antigamente... Chamava-se Benjamim e morava nos fundos da casa de sua avó, em Cavalcante. Um dos passatempos do menino era ouvir música nos discos de 78 rotações que ele colecionava e guardava com zelo. Nessas audições, ouvindo sambas de carnaval como “Meu consolo é você”, um de seus preferidos, aprendeu, por exemplo, a admirar Orlando Silva, “o maior cantor de todos os tempos”, como diria em tantas entrevistas.

    C de Cavalcante

    “Sou carioca de Cavalcante”, dizia Sérgio, que era nascido no bairro de Cascadura, ali perto. Foi lá que começou a se entender por gente, a partir de 1944, quando foi morar com sua avó materna depois que ficou órfão de pai – tinha três para quatro anos quando o oficial de Marinha José Jugurta Santos faleceu precocemente, deixando viúva D. Regina Cabral, com três filhos: Sérgio e duas irmãs mais novas. Depois de uma breve temporada em Sergipe (terra do falecido patriarca), a mãe dela acolheu a família em Cavalcante, numa casa com quintal e pomar onde Sérgio começa a se relacionar com o mundo e com a música. Foi ali perto, no Circo São Jorge, que o menino assistiu pela primeira vez aos cantores do rádio: Gilberto Alves, Linda Batista, Jorge Veiga, este divulgando seu lançamento para o carnaval de 1946, “Vou sambar em Madureira”: “Se ela for sambar em Madureira também vou, ai ai ai, Madalena meu amor...” Apesar da letra, a família brincava o carnaval mesmo em Cascadura, que, segundo o locutor do coreto, tinha “o melhor carnaval do mundo”.

    D de Divisão

    A garotada de Cavalcante se dividia em dois lados quando o assunto era escola de samba – um lado torcia pela Portela, fundada ali perto em Oswaldo Cruz, e o outro apoiava o Império Serrano, originário do também vizinho Morro da Serrinha. Sérgio pertencia à primeira turma, conhecia os sambistas mais velhos da escola e volta e meia chegava na roda de amigos com um refrão que ninguém conhecia – orgulhava-se do dia em que abafou cantando o samba “Leviana”, ainda inédito, recém lançado no terreiro da Portela. Era portelense, embora fosse ligado também à Em Cima da Hora, escola de samba que viu surgir em Cavalcante (1959) e que, no carnaval de 1997, classificou-se em 5º lugar no grupo de acesso com o enredo “Sérgio Cabral, a cara do Rio”, concebido e desenvolvido por Fernando Pamplona e André Machado.

    E de Escritor

    Leitor de Machado de Assis e Lima Barreto na juventude, queria ser escritor – depois descobriu que ser jornalista era mais viável: podia contar histórias e ainda recebia salário. Um dia a equipe da revista O Cruzeiro foi a Cavalcante fazer uma matéria sobre um médium que andava incorporando Nero e Sérgio abordou Ubiratan de Lemos, o repórter da equipe: queria uma pista de como poderia ingressar numa redação. Este indicou o vespertino Diário da Noite – foi lá que começou a carreira (1957), seguindo depois para o Jornal do Brasil (1959), onde passou a escrever sobre música popular, no prestigiado Caderno B. É lá que, a convite de Reynaldo Jardim, cria em 1961 a seção “Música naquela base”, onde passa a publicar textos sobre música, em especial o samba. Na estreia da coluna (20-04-1961), faz um perfil sobre Luís Reis e Haroldo Barbosa, com algumas letras de composições da dupla, entre elas a do belíssimo samba-canção “Nossos momentos”.

    F de Façanha

    O primeiro feito de Sérgio Cabral no Jornal do Brasil foi abraçar a campanha para eleger o compositor Ismael Silva “cidadão samba”. A campanha acabou dando certo e Ismael, devidamente coroado no carnaval de 1960, virou amigo de infância de Sérgio. A ponto de frequentar sua casa, dividir mesas de bar e acompanhá-lo – juntamente com Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti – nas palestras que passou a dar sobre samba no circuito universitário, nos anos 1960: à medida que ele ia contando histórias, os sambistas ilustravam musicalmente. Pois num encontro testemunhado por Cabral, na mesma década, entre Ismael e Donga, deu-se uma divergência muito citada em livros sobre samba. Estavam os três numa sala da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem) e Sérgio provocou: “Qual é o verdadeiro samba?” Donga cantarolou seu “Pelo telefone” e Ismael interrompeu: “Isso é maxixe”, cantando em seguida seu “Se você jurar”. “Isto não é samba”, devolveu Donga. “É marcha.”

    G de Grêmio Recreativo Escola de Samba

    A discórdia está relatada por Sérgio Cabral em seu livro “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (Lumiar Editora, 1996), até hoje a principal obra de referência sobre as agremiações do carnaval carioca, feita a partir do livro em que Sérgio estreou como escritor: “As escolas de samba – o que, quem, como, quando e por quê” (Ed. Fontana, 1974). Nas entrevistas incluídas no livro há ótimas histórias de bastidores: como Ismael Silva, ao ser perguntado como era a batucada de antigamente, recorrendo a uma onomatopeia que daria nome ao enredo campeão do Império Serrano de 1981: “Bumbum paticumbum prugurundum”. Ou o carnavalesco Fernando Pamplona contando que o enredo “Chica da Silva”, que rendeu ao Salgueiro o título do carnaval de 1963, não era dele (ao contrário do que todos pensavam), mas de Arlindo Rodrigues. “Perguntei: ‘Quem é essa mulher?’”, relata Pamplona. “Ele me contou a história e me manifestei contrário ao enredo, dizendo que era ‘muito fraco’.” Coube a Pamplona o voto de minerva que decidiu pela composição de Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira como hino daquele desfile.

    H de Haroldo Lobo

    Nome menos famoso do que Sérgio Cabral definia como “a santíssima trindade da música carnavalesca” (os outros dois eram Lamartine Babo e João de Barro), Haroldo Lobo era também um de seus compositores preferidos. Assim, não sossegou enquanto não dedicou uma das noites do bar Zicartola – onde produzia e apresentava as noites musicais, alternando-se com Albino Pinheiro e Hermínio Bello de Carvalho – a homenagear o ídolo. Este, por sua vez, tímido como era, resistiu até onde pôde, mas acabou aceitando o convite e foi, cabreiro, ao sobrado da Rua da Carioca, nº 53 – Centro, para receber a “Ordem da Cartola Dourada”. Antes de entregar-lhe a comenda, Sérgio chamou Haroldo ao palco e pediu que cantasse, ano a ano, as músicas que havia feito para o carnaval – o jornalista dizia o ano e Haroldo começava a cantar. A plateia, formada na maioria por estudantes universitários, passou a acompanhá-lo em coro, transformando a noite num baile carnavalesco fora de época, para a alegria do compositor de “Pra seu governo”, “Serpentina” e tantos outros sucessos. “Eu nunca mais esqueço isso, foi um dos dias mais emocionantes da minha vida”, disse o jornalista-fã, em entrevista para a série de TV “Hoje é dia de música”, do canal HBO.

    I de Implorar

    Ainda no livro de Sérgio sobre as escolas de samba, na entrevista com o compositor e ritmista Buci Moreira, neto de Tia Ciata, ficamos sabendo a verdadeira história do samba “Implorar”, composição assinada por Germano Augusto, Kid Pepe e Gaspar que fez muito sucesso no carnaval de 1935, com Moreira da Silva. “Conheço bem essa história, porque fui amigo do autor, o falecido Cedar”, contou. “O samba era cantado nas rodas e Gaspar acabou levando para o Kid Pepe. Cedar falou que ele podia levar o samba, fazer o que quisesse. Sei que, depois, Kid Pepe teve que andar correndo, porque Cedar queria matá-lo”, relembrou Buci, antes de dizer que o amigo – sambista do Morro do Tuiuti – era “sanguinário”, bem mais barra-pesada do que os malandros Kid Pepe (italiano, valente e pugilista) e Germano Augusto (português, motorista de praça).

    J de Jacob

    Órfão de pai desde os quatro anos de idade, Sérgio projetava a figura paterna em dois de seus amigos mais velhos, ambos fundamentais conselheiros e guias em sua trajetória profissional: o jornalista Prudente de Morais Neto (vulgo Prudentinho) e o compositor e instrumentista Jacob do Bandolim. Este último era personagem de algumas histórias de seu anedotário, como uma de quando Jacob, recém sobrevivente de um infarto, foi ao médico e este lhe perguntou quantos maços de cigarro vinha fumando por dia: “Cinco maços de Minister”, respondeu o músico. O médico, então, limitou-o a um maço de Minister por dia e assim ele cumpriu, mas com um adendo – além do maço de Minister, passou a comprar também um de Hollywood, outro de Continental, um de Mistura Fina e outro de LS. E sempre que o médico perguntava quantos maços de Minister vinha fumando, respondia certeiro: “Só um!” À memória da amizade de Sérgio com Jacob selecionamos, por razões óbvias, o choro “Vascaíno”.

    Sérgio Cabral em dois momentos: na década de 1970, com a cantora Elizeth Cardoso, e nos anos 1960, no Zicartola, entre Elton Medeiros (de óculos), Zé Kéti (camisa listrada), Nelson Cavaquinho (no violão) e Cartola. Fotos da Coleção Elizeth Cardoso / IMS e do Acervo Sérgio Cabral / MIS-RJ   

    K de Kéti, Zé

    Compositor de sucessos de carnaval como “A voz do morro” e “Máscara negra”, José Flores de Jesus – vulgo Zé Kéti – esteve ao lado de Sérgio Cabral em muitos encontros de samba na década de 1960. No bar Zicartola, onde fazia as vezes de diretor artístico das noites musicais, encantou-se com um jovem músico que frequentava o lugar e, de violão em punho, acompanhava cantores da velha-guarda. “Mas Paulo Cesar não é nome de sambista”, observou Zé Kéti, compartilhando a questão com Sérgio. Logo criaram, em parceria, um nome artístico para o rapaz: Paulinho da Viola. Foi na famosa casa de samba de Cartola e D. Zica, naquele começo dos anos 1960, que ele recebeu seus primeiros cachês – motivo de orgulho para o veterano autor de “Quem me vê sorrindo” (com Carlos Cachaça), “O mundo é um moinho” e “As rosas não falam”, entre outros sucessos.

    L de Lucista

    Na briga fake que inventaram entre Lúcio Alves e Dick Farney – os dois cantores modernos dos anos 1940/50 – Sérgio era declaradamente lucista. Desses de colecionar discos e imitar seu jeito de cantar. Aliás, foi na voz de Sérgio (cantarolando com balanço, na fila de um café de aeroporto) que conheci um dos carros-chefes do repertório de Lúcio Alves, o ótimo “Joãozinho Boa-Pinta” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa). Pois uma das boas entrevistas do cantor (O Globo, 28-01-1977) foi justamente feita por Sérgio: um papo no qual o artista relembra seu início no conjunto Namorados da Lua, se disse fã de Dick Farney (“Chegaram a inventar uma briga entre nós que nunca houve”) e contou a história de um de seus sucessos, o samba “De conversa em conversa”, dele com Haroldo Barbosa: “Fiz quando tinha 13 para 14 anos de idade. Depois, entreguei o samba ao Haroldo e ele consertou a letra. Devia ter muita bobagem.”

    M de Marchinhas

    “Sassaricando: e o Rio inventou as marchinhas” entrou em cartaz em 25 de janeiro de 2007, no Teatro Sesc Ginástico (Centro do Rio), sem imaginarmos o tamanho de seu sucesso – até 2016, foi reapresentado em temporadas sucessivas no Rio de Janeiro e percorreu cidades brasileiras de Porto Alegre a Manaus, sempre com casa cheia, assim como em Lisboa, onde estivemos em novembro de 2012. Para mim, além da alegria de participar do elenco de um musical tão bonito e bem-sucedido, outro presente foi conviver com Sérgio – um dos autores do espetáculo, com a historiadora Rosa Maria Araujo – durante as temporadas. Em incontáveis conversas de mesa de bar, filas de aeroporto, cafezinhos e camarins, deu para constatar o que já era previsto: melhor ainda que ler as histórias que ele contava por escrito era ele contando essas histórias. Outra constatação: das cem marchinhas apresentadas em “Sassaricando”, minha preferida era a dele também: “Cantores do rádio”.

    Sérgio Cabral e a equipe completa do musical "Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha"
    Acervo de Maria Angela Menezes / Tema Eventos

    N de Nossa Senhora da Paz

    Além da Portela e da Em Cima da Hora, outra bandeira do carnaval carioca que Sérgio Cabral levava no peito era a da Banda de Ipanema, o tradicional bloco de rua fundado em 1965 por Albino Pinheiro, “o prefeito espiritual do Rio de Janeiro”, na sua definição. De todos os carnavais em que saiu com a Banda pelas ruas de Ipanema, nenhum foi mais marcante que o de 1973: naquele domingo, 17 de fevereiro, vinha “com a camisa do Vasco toda molhada pelo temporal que caiu durante o desfile, ligeiramente bêbado”, e, quando a multidão passava pela Igreja Nossa Senhora da Paz, recebeu a notícia do fotógrafo Walter Firmo, seu amigo: Pixinguinha havia acabado de cair morto, dentro do templo. O episódio foi relatado por ele num belo texto intitulado “O maior de todos” (O Pasquim, 27-02 a 06-03-1973), dedicado a seu futuro biografado, aqui definido como “o nome mais importante de toda a história da música popular brasileira”. Desde então, a Banda de Ipanema mantém a tradição de, ao passar pela Praça Nossa Senhora da Paz, parar em frente à igreja para cantar o “Carinhoso”.

    O de Opus

    “Telecoteco Opus Nº 1” foi o marco inicial do trabalho de Sérgio Cabral como produtor de shows: idealizado por ele e escrito com Vianinha e Teresa Aragão, estreou em 20-09-1965, no Teatro Opinião, em Copacabana, com os cantores Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro e o Regional do Canhoto, interpretando sambas da antiga, como “Meu pandeiro”, “Se acaso você chegasse” e “Minha palhoça”, entre outros. Além do sucesso que fez, o show foi mais uma oportunidade que Sérgio teve de conviver com Ciro Monteiro, “uma das figuras mais doces, mais engraçadas e mais humanas que conheci”, como escreveu no livro “ABC do Sérgio Cabral”. No fim do texto dedicado a Ciro, ele relembra uma passagem do fim da vida do artista, quando este, em coma, às vezes recobrava a consciência e logo perdia de novo. “Duas horas antes de morrer, o médico segurou seu pulso e fez um teste para saber se estava consciente ou não: ‘Como é seu nome?’ Ciro Monteiro fez aquela cara de sacana e respondeu: ‘Roberto Carlos.’”

    P de Pranto

    Já a estreia como biógrafo foi em 1977, quando publicou “Pixinguinha: vida e obra”, pela Funarte, depois que o texto foi selecionado no primeiro prêmio de monografias promovido pela instituição. Gostou da experiência de escrever “uma reportagem ampliada”, como definiu o ofício do biógrafo, embora também — como descobriu pelo caminho — sofresse com as histórias que contava. Como quando escrevia sobre Almirante (seu segundo biografado, em 1990) e terminou o capítulo em que, acometido por um AVC, o personagem se viu forçado a encerrar sua carreira de radialista. “Caí num pranto compulsivo”, contava, impressionado com a própria emoção. Uma sensação que se repetiu outras vezes nas biografias seguintes que escreveu, de Ary Barroso (1990), Elizeth Cardoso (1994), Tom Jobim (1997), Nara Leão (2006), Grande Otelo (2007), Ataulfo Alves (2009) e Carlos Manga (2013). Quando faleceu, deixou inacabado um livro sobre a cantora Aracy de Almeida, uma de suas preferidas, especialmente em sambas que lançou, como “Camisa amarela”, “Engomadinho” e “Tenha pena de mim”, entre outros.

    Q de Quem nasce lá na Vila

    “Noel Rosa cometeu uma tremenda desfeita comigo”, queixava-se de brincadeirinha Sérgio Cabral, fã do Poeta da Vila. “Não fomos contemporâneos por 23 dias: ele morreu no dia 4 e eu nasci no dia 27 de maio de 1937.” Dizia que “Noel é tão pai do samba quanto Ismael Silva e cia, só que o talento era maior que o de todos”, disse na série de TV “Hoje é dia de música”, exibida pelo canal HBO. “Ele estabeleceu um casamento definitivo da letra com a música.” Em 2012, quando a Casa do Saber, na Lagoa, o convidou para dar o curso “O Rio e a Música”, dedicou uma das três aulas ao Poeta da Vila, tendo como grand finale do repertório de 14 músicas o samba-choro “Tarzan, o filho do alfaiate”. Tive a alegria de participar com o amigo Tiago Prata interpretando (eu na voz, ele no sete cordas) as músicas do curso, mas bom mesmo era o pós-aula, Bar Lagoa.

    Heróis de Sérgio Cabral: Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Reprodução do Acervo Sérgio Cabral / MIS-RJ

    R de Rio

    Sérgio Cabral gostava do Rio a ponto de reclamar com quem, querendo beber um café fraco, pedisse ao garçom um carioca. Chegou a viver em São Paulo no começo dos anos 1970, quando foi contratado pela editora Abril, mudando-se com a família. Até que, numa vinda ao Rio, depois de um chope com Ciro Monteiro no Amarelinho, correu para um orelhão e ligou pra casa: “Magaly, arruma as malas, que vamos voltar pro Rio.” Ela: Ah, é? “Arrumei emprego aqui!” Era mentira – não aguentava de saudade. Morador de Copacabana desde então, cultivava com gosto as lembranças de Cavalcante. “Não desfazendo de outras regiões, mas modéstia à parte, eu sou suburbano”, diz, num documentário sobre sua relação com o Rio de Janeiro (“Sérgio Cabral, a cara do Rio”, de Fernando Barbosa Lima e Dermeval Neto, 2008). No musical “É com esse que eu vou”, que Sérgio escreveu com Rosa Maria Araujo na sequência de “Sassaricando”, um de seus trechos preferidos era uma sequência de sambas sobre bairros do subúrbio carioca, entre eles “Um samba em Piedade”, de seu biografado Ary Barroso.

    S de Saudade, torrente de paixão...

    “Quero ser apenas uma cantora brasileira”, disse Elizeth Cardoso numa das entrevistas que serviram de base para a biografia que Sérgio Cabral dedicou à cantora, em 1994. Aliás, Elizeth não: no livro, ela é Elisete, “como recomenda o bom português”, conforme o biógrafo explica já na introdução. “A língua não pode ser submissa ao arbítrio dos cartórios”, argumentou. “Creio apenas colaborar para que o nome dela assuma a sua grafia definitiva, pois, registrada como Elizette, assinou algumas vezes Elizete e só na segunda metade da década de 60 o th no final de Elizeth apareceu na capa dos seus discos.” Em tempo: na etiqueta do 78 rpm de seu primeiro sucesso, “Canção de amor”, prevaleceu a grafia – Elizette – da certidão de nascimento.

    T de Tom-Tom

    “Pro Sergio, meu amor inteiro. Teu Tom-Tom Jobim. 1º de Set-88. Praia de Ipanema”, diz a dedicatória num bilhete guardado por Sérgio Cabral. O autor foi seu biografado duas vezes: a primeira em 1987, quando saiu o livro “Tom Jobim”, pela Sabiá Produções Artísticas; e a segunda em 1997, quando a Lumiar Editora publicou “Antônio Carlos Jobim, uma biografia”. Na primeira obra, um dos achados de Sérgio está na página 43, onde descreve o nascimento de Tom, em 25-01-1927 (23h15), na Tijuca (R. Conde de Bonfim, 634): “O médico responsável pelo parto foi o mesmo que, no dia 11 de dezembro de 1910, colocou no mundo um outro grande nome da música popular brasileira, Noel Rosa”, escreveu. “Portanto, não há qualquer nome na medicina brasileira que tenha contribuído mais para a nossa música do que o Dr. José Rodrigues da Graça Mello.” Já na segunda, versão revisada e fartamente ampliada da primeira, há informações preciosas não só sobre composições de Tom, mas também sobre os arranjos (quase sempre não creditados) que escreveu na Continental – entre eles o da gravação de Aracy de Almeida para “Quando tu passas por mim” (Vinicius de Moraes e Antônio Maria), clássico do samba-canção.

    U de UNE

    Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1961, Sérgio Cabral participou ativamente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes – o CPC da Une, criado naquele mesmo ano com a proposta de promover a conscientização política e social das camadas populares por meio de shows musicais, peças de teatro, filmes, livros, exposições de artes visuais e outras linguagens artísticas. Foi ele o responsável por aproximar seus amigos do samba – os já citados Cartola, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, entre muitos outros – do CPC, numa união que resultaria em inúmeros shows, entre eles o emblemático “Opinião” (1964), com textos politizados costurando o repertório eclético de sambas, xotes, toadas e uma marcha: a recém lançada “Marcha da quarta-feira de cinzas”.

    V de vascaíno

    Tio Benjamim, o mesmo que apresentou a voz de Orlando Silva a Sérgio, tem participação também na história de sua preferência clubística. Assim que o menino chegou com a família a Cavalcante vindo de Sergipe, Benjamim perguntou ao sobrinho se já havia escolhido um time de coração para torcer: ficou entre América e Botafogo, pois tinha gostado dos nomes. Até que um dia ouviu, de relance, o tio dizer a alguém que o Vasco havia vencido o Botafogo por dois a zero. Pronto: aquele seria seu time. O mesmo de tantos amigos como Zé Kéti, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Aldir Blanc, entre outros sambistas pertencentes à “imensa torcida” “bem feliz”, como diz a letra que Lamartine Babo fez para a “Marcha do Vasco”, cantada a plenos pulmões pela massa vascaína no estádio de São Januário ou onde quer que o time jogue.

    Sérgio Cabral (de vermelho) e a turma d'O Pasquim / Reprodução da Hemeroteca Digital da BN 

    X de Xi... sujou!

    Sérgio Cabral trabalhava como editor de política da Ultima Hora quando se juntou a dois colegas de redação – o colunista Tarso de Castro e o cartunista Jaguar – para criarem um novo veículo que substituísse A Carapuça, jornal recém desaparecido. O time se completou com Henfil, Ziraldo, Paulo Francis e Millôr Fernandes, entre outros intelectuais, e o resultado foi O Pasquim, semanário que chegou às bancas em 26-06-1969 e fez história na imprensa brasileira com conteúdo crítico à política e à sociedade em plena ditadura militar em sua fase mais dura (o pós-AI-5). A Censura Federal marcava de perto, mas a turma dava seu jeito, engabelando os censores à base de uísque e/ou papo. Até que uma charge parodiando o quadro “Independência do Brasil”, de Pedro Américo – “Eu quero mocotó!”, bradava D. Pedro I no lugar de “Independência ou morte!” – levou os agentes do governo a prenderem a turma e, assim, Sérgio passou os últimos dois meses de 1970 detido em Deodoro. Entre as lembranças, ficou um samba que fez com Ziraldo dedicado à Vila Militar: “A Vila já não é mais aquela / Já não é mais tão bela / Como Noel cantou...”

    Z de Zureta, eu

    Não sei onde li (ou ouvi), mas me lembro de Sergio Cabral dizendo que gostaria que em seu velório estivesse tocando algum choro – ou alguns choros – de Pixinguinha. Uma lembrança que, infelizmente, me veio só depois que saí da sede náutica do Vasco, onde familiares e amigos velavam o querido jornalista, coberto com bandeiras (do Vasco e da Portela, entre outras) e cercado por inúmeras coroas de flores. Cantamos “Os meninos da Mangueira” (sua composição mais conhecida, em parceria com Rildo Hora), a marchinha “Sassaricando” (Luís Antonio e Jota Júnior) e o hino de seu amado Vasco da Gama (Lamartine Babo), este antecedido pelo grito de “casaca!”, tradição vascaína. Tudo cantado em coro, com palmas e vivas, mas nada do choro de Pixinguinha. Sendo assim, é ao som de “Vou vivendo”, na interpretação do próprio biografado-ídolo dele (em dueto com Benedito Lacerda), que encerramos nossa homenagem ao querido Sérgio Cabral.

    Na imagem principal: Sérgio Cabral em foto de Hudson Pontes / Reprodução do jornal O Globo 

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