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    De ‘xavante’ a voz do samba, entre Noel e Silvio Santos: parangolés de Aracy de Almeida nos 110 anos de seu nascimento

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Vai levar dez pau!”

    Assim Aracy de Almeida, no ápice de sua popularidade, marcava presença na televisão brasileira das décadas de 1970 e 80. De cabelo black power, óculos escuros, camisa estampada e crivo exigente, era a jurada impiedosa do “Show de Calouros”, programa de auditório que Silvio Santos apresentava nas noites de domingo. Aos que achavam a função incompatível com seu passado, fazia uso da franqueza costumeira: “Antes eu ser jurada do que estar curtindo um crochê em casa, não acha?”, disparou no programa Vox Populi (TV Cultura, 1979), plenamente consciente do “bom galho” que era seu emprego. “Estou aí nas boca, entendeu?”

    Sabia que os tempos eram outros, bem diferentes de quando começou a carreira de cantora, lá no comecinho da década de 1930, cansada que estava de cantar de graça nas festas de candomblé, coro de igreja e blocos carnavalescos dos arredores do Encantado, bairro da zona norte do Rio de Janeiro onde nasceu, há 110 anos (19-08-1914). “Eu era uma verdadeira xavante”, comenta, num depoimento no LP “Samba pede passagem” (Polydor, 1966), sobre quando pisou pela primeira vez na elegante Avenida Rio Branco, em 1932, levada por “um matusquela” para tentar a sorte na Rádio Educadora, mais por necessidade do que por pendores artísticos. “Eu estava precisando arrumar uma nota.”

    Aos 18, Aracy já há alguns anos não morava com a família – a orientação protestante de Seu Balthazar (funcionário da Central do Brasil) e D. Hermogênea era demais para a vida limítrofe que a mais velha de seus três filhos levava. Expulsa do Colégio Nacional, no Méier, ainda no primário (“Eu era criança problema”, “flor que não se cheirasse”, disse ao pesquisador Ary Vasconcellos, na revista O Cruzeiro), estava ainda na adolescência quando queimou a largada na boemia. “Chegava em casa sempre de cara cheia”, contou ao Vox Populi. Já à revista Manchete (18-09-1971), detalhou que seu fraco era um certo coice de mula: “uísque, conhaque, vodca e uma pitada de peppermint”.

    Mas foi bebendo cerveja Cascatinha que selou a amizade mais importante de sua vida, logo depois que terminou de cantar, naquela primeira visita à Rádio Educadora. “Você cantou muito bem”, alentou um rapaz que estava no estúdio e seria descrito por ela – no já citado LP “Samba pede passagem” – como “uma figurinha formidável, magrinha, de terno de flanela branco, gravata branca, camisa azul marinho”. De lá, ele arrastou a nova comparsa para a Taberna da Glória, onde ela varou a noite e, de quebra, conheceu a fina flor dos pinta braba. “Saturnino, Brancura, Zeca Meia Noite”, enumerou. “Os malandros mais gloriosos da época eram amigos do Noel Rosa.”

    No encontro seguinte, o novo amigo de infância já chegou trazendo um samba que havia feito para Aracy, “Riso de criança”, que ela lançou em disco em dezembro de 1934 e passaria a vida dizendo que era sua primeira gravação — embora já tivesse lançado, em janeiro daquele mesmo ano, um 78 rpm com as marchinhas “Em plena folia” (Julieta de Oliveira) e “Golpe errado” (Jaci). Seja como for, era o início de uma discografia repleta de clássicos de Noel, como dois de 1936 (“Palpite infeliz”, primeiro grande sucesso dela, e “O x do problema”) e um de 1937: “Último desejo”, este gravado (em 1 de julho) após a morte precoce de seu compositor (em 4 de maio), aos 26 anos.

    Outro samba noelesco presente nas gravações iniciais de Aracy foi o policial “Triste cuíca”, originalmente um soneto do Poeta da Vila lindamente musicado pelo maestro Hervé Cordovil. Quem adorou a gravação foi o musicólogo Mário de Andrade, como se lê no apêndice da 2ª edição de seu “Compêndio de história da música”: na discografia comentada, ele se refere ao 78 rotações de nº 33.927 como “o primeiro disco para a Victor da cantora que até hoje melhor interpretou o samba carioca”. Para o pesquisador, não havia quem fizesse frente (nem a experiente Araci Cortes, nem muito menos a jovem Carmen Miranda) àquela cantora “de timbração deliciosa, profundamente carioca, um nasal bem quente, sensual”.

    Aracy de Almeida e o 'matusquela' Noel Rosa.
    Fotos: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS e Reprodução da internet

    Entre tantos noéis, Aracy deu voz também ao samba mangueirense do desfile carnavalesco de 1936, “Não quero mais” , creditado no disco – equivocadamente – como uma composição de Carlos Cachaça e José Gonçalves, o Zé da Zilda. Isso porque este último, intermediário da gravação, compôs uma nova segunda parte (no lugar da original, de Carlos Cachaça) e assim entregou o samba para Aracy gravar. Na prensagem do rótulo, mais uma confusão: sumiu o nome de Cartola e ficou o de Carlos Cachaça. Assim, o samba verde-e-rosa voltou na folia de 1937, juntamente com outro lançamento de Aracy, “Tenha pena de mim”, um de seus grandes sucessos, assinado por Babaú (apelido de Waldomiro José da Rocha) com Ciro de Sousa.

    Ciro também assina – mas sozinho – a composição do outro lado do disco (Victor 34.229) desta última música: “Marido da orgia”, exemplar de um tipo de samba que era especialidade não só dele, como dela: o samba-choro, de fraseado picotado, puladinho, perfeito para as bossas, breques e cacos como ela faz nesta gravação. Outro festival de telecoteco é o que Aracy de Almeida faz em “Amanhã eu dou”, um dos sambas que recebeu do baiano Assis Valente depois de tantas “músicas geniais” feitas por ele para Carmen Miranda. “Assis, dá uma musiquinha pra mim?”, pediu a ele, como contou a Fernando Faro no programa MPB Especial, da TV Cultura (1972).

    O outro presente de Assis seria mais um sucesso de seu repertório: “Fez bobagem”, samba-queixa que caiu feito uma luva em sua voz lacrimosa – outra marca de seu canto, além do “nasal quente” e das bossas em sambas ligeiros – no 78 rpm que lançou em março de 1942. Não era, aliás, a primeira bronca feminina a fazer sucesso com Aracy: em junho de 1939, ela já havia lançado em disco “Camisa amarela”, samba de Ary Barroso, compositor que, aliás, a evitava. Era “muito fanhosa” e “temperamental” para o gosto dele, como a própria contou no MPB Especial. Até que, no carnaval de 1939, encontraram-se no Cordão da Bola Preta e Ary, “com a cara um pouco cheia”, “já botando alpiste pelo ladrão”, ofereceu-lhe o samba.

    Mais animada é a pequena que Aracy de Almeida encarna em outros sambas na voz feminina. Como o romântico e sacudido “Quando esse nego chega”, de Haroldo Barbosa. E o samba-choro “Engomadinho”, feito sob medida para ela pelos compositores Claudionor Cruz e Pedro Caetano. Até que no estúdio, ao ver a letra, disse aos berros que não gravaria o samba: “Não quero dar cartaz àquele pilantra!” Referia-se ao trecho que mencionava Rey, goleiro do Vasco, com quem era casada. Eles haviam brigado feio na véspera e ela, então, exigiu: “Ou muda tudo ou ‘até amanhã e tamos conversados’”, como escreveu Pedro Caetano no livro “Meio século de música brasileira: o que fiz, o que vi” (Ed. Vida Doméstica, 1984).

    Não era à toa que vinha recebendo composições sob medida para gravar, fosse pela maneira como dizia os sambas, ou pelo estilo de vida (varando madrugadas, bebendo nos bares, metendo bronca nas gírias…), era “O Samba em Pessoa”, como a apresentava na Mayrink Veiga o radialista César Ladeira, criador dos apelidos (quase sempre nobiliárquicos: reis, rainhas, princesas…) da turma do rádio. Pois a nobreza de Aracy era personificar o samba, como eternizou Wilson Batista em “Gosto mais do Salgueiro”, mais uma composição dedicada a ela.

    O genial Wilson, aliás, é o autor mais recorrente em sua discografia a partir da década de 1940. São dele, por exemplo, “Mulato calado” (outra pequena crônica policial musicada) e alguns sucessos de carnaval gravados por Aracy, como os sambas “Louco (Ela é seu mundo)” (com Henrique de Almeida) e “Sambei 24 horas” (com Haroldo Lobo) e a piada em ritmo de marcha “Não sou Manoel” (com Roberto Martins).

    Quando lançou seu último petardo carnavalesco (o samba “Não me diga adeus”, de Paquito e Luís Soberano), em 1948, Aracy já era quase uma “palmeira do Mangue” em plena noite de Copacabana. Pois foi naquele ano que, numa temporada na sofisticada boate Vogue, entrou de vez no circuito das pequenas e enfumaçadas casas noturnas do bairro. Pois é neste ambiente que retoma o repertório, já então esquecido, do amigo Noel Rosa, cujos sambas regrava nesta virada entre os anos 1940 e 50, em arranjos de Radamés Gnattali. Nesta leva estão também sambas inéditos do Poeta da Vila que se tornaram sucessos, entre eles “Pela décima vez” e “Três apitos”.

    Lado a lado com a classe média e a grã-finagem cariocas, estavam seus companheiros de copo em tardes boêmias como as do bar Villarino, onde dedicava-se a fiéis amigos como Fernando Lobo, Paulo Mendes Campos e Lúcio Rangel, entre outros nomes referenciais da imprensa daquela metade do século 20. “Morre de amores por quatro ou cinco amigos e, ao seu lado, sente o maior desprezo pelo resto da humanidade”, escreveu o mais chegado de todos, Antônio Maria, num texto sobre a amiga reproduzido na coletânea “Antônio Maria: pernoite – crônicas” (Funarte, 1989). “Bebe uísque puro, com gelo. Depois do segundo, fica muito terna e diz umas coisas de sua alma que surpreendem pela doçura.”

    É dele um dos sucessos que retratam com mais clareza esta Aracy de Almeida que já se anunciava por volta de 1946 – quando gravou “Saia do caminho” (parceria do recém-falecido Custódio Mesquita com Evaldo Rui) – mas se consolida de fato nos anos 1950: “Se eu morresse amanhã”, cantado por uma Aracy de voz mais grave e emissão mais contida, como se pode ouvir também em outro samba-canção de 1953, “Quando tu passas por mim”. Seu autor é Vinicius de Moraes, outro companheiro de copo e fã de seus rasgos vocais. “É a nossa Bessie Smith que por vezes se transforma na nossa Ella Fitzgerald”, comparou o poeta na Última Hora (19-07-1953). “Fabuloso temperamento interpretativo, nem sempre igual, dependendo dos seus versos e baldas, mas capaz de depositar uma melodia direitinho no cerebelo de um ouvinte.”

    Não por outra razão, foi na interpretação dela que saiu a gravação original de “Bom dia, tristeza”, outro belo samba de Vinicius (este em parceria com Adoniran Barbosa) lançado na antessala da bossa nova – no caso, em 1957, a um ano de “Chega de saudade”. Pois o encontro do Poetinha com o sambista paulistano não deixa de ser simbólico também da nova fase de Aracy de Almeida: contratada pela TV Record, na década de 1960 ela passa a se dividir entre Rio e São Paulo. O trajeto será feito sempre de trem, o “avião dos covardes”, na definição de Ciro Monteiro, outro que, como ela, preferia viajar pelo chão.

    Nelson Gonçalves foi um que tentou convencê-la a superar o medo de avião quando viu que a amiga se recusava a embarcar com outros artistas num voo para Belém: “Você só vai morrer quando chegar seu dia, sabia?”, arriscou o cantor, prontamente respondido por ela: “Sabia, mas e se for o dia do piloto?”

    Pas de deux: Hermínio Bello de Carvalho e Aracy de Almeida sobre uma mesa do Zicartola.
    Foto do acervo Hermínio Bello de Carvalho / Casa do Choro

    Por essas e outras, o cronista Jorge Fernandes criou para ela mais um apelido, a “Dama da Central”, que se juntava não só a “O Samba em Pessoa” mas também a “Dama do Encantado” (título de uma crônica de João Antônio sobre ela) e “Rainha dos Parangolés”, este último uma criação do poeta, letrista e produtor Hermínio Bello de Carvalho, grande amigo dela e principal cultor de seu legado – seja através de poemas ou textos em prosa, como os que reuniu no livro “Araca: Arquiduquesa do Encantado” (dois apelidos em um só título!), lançado em 2004 pelas Edições Folha Seca. Um bom registro da amizade entre os dois está no programa “Contra Luz” (1987), da TV Brasil, onde foi entrevistada em 1987.

    Nos escritos sobre Aracy, Hermínio destaca, sobretudo, a personalidade multifacetada e complexa da amiga. Através de seus textos sabemos que ouvia ópera (“Adoro aquele berreiro!”) com a mesma paixão com que dizia os palavrões mais cabeludos e trechos do Antigo Testamento. E também que, em sua casa no Encantado, vivia rodeada de obras de arte (quadros de Di Cavalcanti, Clóvis Graciano, Augusto Rodrigues e outros amigos pintores) e por sua cachorrada: Dona Micas, Gorda, Feijão e outros. “Detesto criança. Eu gosto mesmo é de cachorro”, disparou, como se lê numa das memórias de Hermínio.

    O poeta e produtor foi um dos jovens amigos – como o jornalista Sérgio Cabral e o agitador cultural Albino Pinheiro, entre outros – que Aracy fez nos anos 1960, circulando em ambientes de samba e política como o bar Zicartola, no Centro, e o Teatro Jovem, em Botafogo, onde se apresentou acompanhada do violonista uruguaio Oscar Cáceres na série de espetáculos “O Menestrel”, em dezembro de 1964. Cantava cada vez menos (“O ambiente não ajuda e o mingau anda grosso”, ranhetou para João Antônio), mas sempre com categoria, como se pode constatar em sua discografia em long-playing.

    Como os dez polegadas que a Continental pôs no mercado em 1955 (“Canções de Noel Rosa”) e 1956 (“Sucessos de Aracy de Almeida”), ou ainda os LPs que saíram pela Polydor (“O Samba em Pessoa”, 1958), pela Philips (“Samba com Aracy de Almeida”) e pela Elenco (“Samba é Aracy de Almeida”, 1966). Fora os registros ao vivo eternizados em LPs como “Samba pede passagem”, com Ismael Silva e o MPB-4 (Polydor, 1966) e “No Zum Zum”, com Billy Blanco e Sérgio Porto (Elenco, 1966). Já em 1988, sua Continental velha de guerra lançou o LP “Ao vivo e à vontade”, com o registro de uma apresentação da cantora no Teatro Lira Paulistana em 30-08-1980.

    Neste último, produzido por Tico Terpins e Zé Rodrix, sua cantoria é entremeada com tiradas que valem boas risadas da plateia, sejam sobre o repertório (“Vou cantar músicas de 500 anos atrás!”) e sobre a qualidade do microfone (“Precisa fazer uma fimose, hein?”). A Aracy que se ouve aqui já é a jurada frasista que fazia sucesso nos programas de TV, com a franqueza de sempre. “Não sou pessoa de fazer tipo”, disse, em sua participação no programa Vox Populi. “Negócio de tipo quem faz é o Pedro de Lara”, espetou. “Sou do signo de Leão, um signo barra pesada!”

    O primeiro júri televisivo de que participou foi ainda nos anos 1960, no programa de Pagano Sobrinho (TV Record). Só na década seguinte foi contratada pela TVS (depois SBT), para animar as noites dominicais comandadas por Silvio Santos. “Ganhava bem, era protegida do apresentador, tinha autonomia para dizer absurdos, interromper calouros e desafi(n)ar o coro dos contentes”, escreveu o jornalista e roteirista Eduardo Logullo em outro livro dedicado à artista, “Aracy de Almeida: não tem tradução” (Ed. Veneta, 2017).

    É coisa nossa: Aracy de Almeida e Silvio Santos
    Reprodução da internet (Foto de João Batista da Silva / SBT)

    Gostava tanto de estar nas boca que não engolia o fato de nunca ter sido eleita “melhor jurada” segundo o Troféu Imprensa, prêmio anual criado e apresentado pelo próprio Silvio Santos. Quando foi escolhida, enfim, no prêmio de 1987, não ficou sabendo: já estava em coma, internada num hospital na Tijuca, em decorrência de problemas respiratórios. E assim permaneceu até 20-06-1988, quando faleceu, aos 74 anos incompletos. Antes do sepultamento no cemitério Parque Jardim da Saudade, em Sulacap, seu corpo foi velado no Teatro João Caetano (por onde, estima-se, passaram cerca de 20 mil pessoas) e percorreu bairros diversos do Rio de Janeiro – entre eles Copacabana, a Lapa, Vila Isabel e, claro, seu Encantado.

    Seu legado, no entanto, segue vivo na música popular brasileira. Não só através dos livros e programas de TV mencionados neste texto, como também por meio das homenagens póstumas que recebeu, como nos discos “A Dama do Encantado”, de Olivia Byington (MP,B, 1997), “A Rainha dos Parangolés”, de Marcos Sacramento e Luiz Flávio Alcofra (Independente, 2017) e, indiretamente, no tributo a Wilson Batista prestado por Cristina Buarque no CD “Ganha-se pouco mas é divertido” (Jam Music, 2000).

    Não por outra razão, os três intérpretes são os convidados especiais do documentário sobre ela que o autor destas linhas teve a alegria e a honra de produzir, escrever e apresentar – juntamente com o escritor e pesquisador Rodrigo Alzuguir – para a Rádio Batuta, em nove episódios: “Aracy de Almeida é coisa nossa: a bossa e o veneno do Samba em Pessoa”.

    Foto principal: Aracy de Almeida na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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