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    ‘Cidade maravilhosa’: a saga da marcha cheia de encantos mil que acabou virando hino e há 90 anos vive n’alma da gente!

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    Uma marchinha despretensiosa, inspirada por uma festa primaveril, depois inscrita num concurso carnavalesco – onde terminou em segundo lugar –, que acabou caindo nos braços do povo e nas graças do Carnaval, virando depois a “marcha-oficial” de uma capital brasileira e, por fim, o seu hino de verdade... não sem enfrentar nesse processo algumas vozes descontentes que tentaram destroná-la do lugar a que pertence de fato. A história de “Cidade maravilhosa”, marcha nonagenária que é hoje o hino oficial da cidade do Rio de Janeiro, parece o enredo de uma novela, com muitas curiosidades e algumas reviravoltas.

    Só em 78 rotações, o clássico solene e profano – tocado tanto em cerimônias oficiais quanto no encerramento dos bailes carnavalescos e dos desfiles dos blocos de rua do Rio – teve 17 gravações, desde a original (lançada pela Odeon em 1934 e reeditada em 1950) até as seis que chegaram ao disco em 1960. Nesse percurso, ganhou as vozes de seu próprio autor, André Filho (responsável pelo primeiro registro fonográfico da marcha, em 04/09/1934), de Aurora Miranda (que dividiu com André Filho a primazia da gravação original e que faria uma releitura da música em 1941, acompanhada pelo Bando da Lua), do galã colombiano Carlos Ramirez (outro a interpretá-la duas vezes, em 1950 e 1953), de Safira e de Gilberto Alves, além do coral de Severino Filho e dos coros que participam dos arranjos executados pela orquestra do maestro Guerra-Peixe e pela Banda do Corpo de Bombeiros.

    Recebeu ainda versões instrumentais em 78 rpm, a cargo de bandas, de orquestras – a Tabajara de Severino Araújo e as dirigidas por Simon Bountman e Lyrio Panicalli (em arranjo um tanto cinematográfico) – e dos conjuntos de Francisco Scarambone, que a transformou num fox, e de George Brass, com o suingue dos seus Rhythm Players. Pelas mãos e pela sanfona de Mário Gennari Filho, a marcha acabaria virando um tango! Na época dos LPs e CDs, viriam incontáveis gravações, por artistas nacionais e estrangeiros das mais variadas vertentes musicais – MC Sapão fez a sua; Ray Conniff, claro, também!

    A expressão “Cidade maravilhosa” costumava aparecer na imprensa carioca no final do século XIX... mas geralmente para se referir a Paris. Segundo fontes diversas, o primeiro a usá-la para definir a capital brasileira da época, o Rio de Janeiro, teria sido o escritor maranhense Coelho Netto, no artigo “Os sertanejos”, em A Notícia de 29/11/1908 (o mesmo autor lançaria, em 1928, um livro de crônicas chamado exatamente “A cidade maravilhosa”).

    No entanto, quase 30 anos antes de Coelho Netto, Alfredo Maia já a utilizara, quando escreveu sobre o Rio no capítulo 13 de seu folhetim “Viagens de um marinheiro”, publicado no Jornal da Noite de Lisboa (edição de 05 e 06/08/1879): “A capital do império brasileiro goza créditos de uma cidade maravilhosa e a sua baía rivaliza, diz-se, com o porto de Constantinopla e de Lisboa. (...) Com efeito, é esplêndido o magnífico porto do Rio de Janeiro, onde cabem à larga todas as esquadras do mundo!”.

    Capa de 'A cidade maravilhosa', livro de Coelho Neto publicado em 1928 (Coleção José Ramos Tinhorão / IMS), e detalhes do Jornal da Noite, de Lisboa (05 e 06-08-1879)

    Foi como “cidade maravilhosa” que o escritor espanhol Blasco Ibáñez se referiu ao Rio, quando falou sobre sua curta viagem àquela capital (Diário do Maranhão, 27/08/1909). Em seguida viria a escritora francesa Jane Catulle-Mendès, no livro de poemas “La ville merveilleuse”, de 1913 – ela havia visitado o Rio dois anos antes. A designação entraria mais tarde no título do programa radiofônico “Crônicas da Cidade Maravilhosa”, criado no início da década de 1930 por César Ladeira na Mayrink Veiga.

    Nenhuma dessas referências seria futuramente citada por André Filho em entrevistas. Na coleção de jornais do seu acervo – que se encontra desde 2006, ano do seu centenário, sob a guarda do Instituto Moreira Salles –, há um recorte sem data de A Notícia com matéria que explica como o compositor teria se inspirado para fazer a música. Diz o texto que ele “Estava na Praia de Botafogo, pelos idos de 1933, eterno enamorado da beleza natural do Rio de Janeiro (...). Numa tarde assim, sentiu pulsar com intensidade toda a sua alegria de cidadão carioca (...). Ocorreu-lhe então a expressão: Cidade Maravilhosa”.

    Versão que sua ex-mulher, Joana, contestaria: ao jornal O Globo de 12/01/1965, ela – já separada de André Filho – diria que o clássico surgiu em 1934, durante uma das madrugadas insones do então companheiro, e que, após escutar a melodia e a letra cantada por André, que batucava numa caixa de fósforos, teria sido interrogada por ele: “Ciganinha, você acha que deve ser marcha ou samba?”. Resposta dela: “Marcha!”. Difícil saber qual das duas narrativas é a verdadeira.

    Ou se nenhuma delas, a julgar pelo que contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no primeiro volume de “A canção no tempo” (Editora 34, 1997): “No início da década de 1930, o Rio era embelezado com a estátua do Cristo Redentor e a modernização de vários trechos da cidade, criando maiores condições para deixar o turista maravilhado. Foi nesta ocasião que, motivado por uma promoção chamada Festa da Mocidade, em que se elegia a Rainha da Primavera, André Filho compôs ‘Cidade maravilhosa’. O título reproduzia uma expressão consagrada pelo escritor Coelho Neto”.

    O fato é que, em 1934, o jovem compositor Antônio André de Sá Filho (nascido na Rua da Carioca em 21/03/1906) contava 28 anos e várias músicas gravadas em disco, algumas por ele mesmo e as demais por grandes cartazes da época, como Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas e as irmãs Miranda, Carmen e Aurora. Esta última, aos 19 anos, já era uma estrela do rádio e do disco. No dia 4 de setembro, ela e o próprio André Filho entraram em estúdio para dar voz à marcha “Cidade maravilhosa”. Aurora interpretou também o samba “Toda gente cantando”, do mesmo autor. A bolachinha com as duas músicas foi lançada em outubro pela Odeon, sem chamar muita atenção.

    A primeira partitura editada de 'Cidade maravilhosa' (Acervo André Filho / IMS) e o rótulo do 78 rpm com a gravação original da marchinha (Coleção José Ramos Tinhorão / IMS)

    A gravação original da marcha começa com uma conhecidíssima introdução instrumental; em seguida vem o refrão, em tom maior e de fácil assimilação, cantado primeiro por Aurora, depois em dupla com o autor:

    Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil
    Cidade maravilhosa, coração do meu Brasil!

    Aurora entoa então, em tom menor, a primeira estrofe da segunda parte:

    Berço do samba e das lindas canções
    Que vivem n’alma da gente
    És o altar dos nossos corações
    Que cantam alegremente

    E André Filho se encarrega da segunda estrofe, aliás praticamente desconhecida até hoje por muita gente, cariocas inclusive:

    Jardim florido de amor e saudade
    Terra que a todos seduz
    Que Deus te cubra de felicidade
    Ninho de sonho e de luz

    No início do ano seguinte, a composição foi inscrita no concurso de músicas de Carnaval da Prefeitura do Rio, cuja final se deu em 10/02/1935 no Teatro João Caetano. Aurora defendeu a marcha, que ficou em segundo lugar, perdendo para “Coração ingrato” (de Antônio Nássara e Eratóstenes Frazão), interpretada por Sílvio Caldas. André Filho ficou indignado com o resultado – e também o público, que promoveu no local “uma estrondosa vaia, a maior vaia desses últimos tempos. Por pouco não depredaram o teatro” (O Jornal, 12/02/1935). No caderno de recortes que pertenceu a André (hoje sob os cuidados do IMS), há um do jornal A Noite do dia 11/02/1935, cujo texto diz:

    “Já registramos, em nossa edição extraordinária, a surpresa causada pelo ‘veredictum’ final quanto às marchas. A assistência recebeu mal o julgamento, dando expansão ao seu protesto. O autor de ‘Coração ingrato’ veio à cena, no intuito de acalmar o povo, sendo recebido com forte assuada [vaia]. Entretanto, a André Filho, autor da ‘Cidade maravilhosa’, foi feita grande manifestação, com toda plateia de pé. No final, foi ele carregado em triunfo”. Ao lado deste recorte, o compositor escreveu, de próprio punho: “A maior manifestação da minha vida”, assinando em seguida.

    A Noite, 11-02-1935 (Acervo André Filho / IMS)

    A despeito da opinião do júri, sua marchinha ganhou a simpatia do público e foi consagrada no salão, tornando-se, a partir daí, presença obrigatória em todos os bailes carnavalescos. Não demoraria para chegar às telonas: o Acervo André Filho do IMS possui um exemplar da partitura impressa na época pela editora Mangione, cuja capa informa que a marcha fez parte do filme “Alô, alô, Brasil!”, de 1935. Na parte interna, pode-se ler a dedicatória que o autor mandou imprimir: “Ao espírito brilhante de César Ladeira, ‘o speaker ma-ra-vi-lho-so’, num abraço de solidariedade”. Por coincidência – ou não? –, o mesmo César Ladeira do programa “Crônicas da Cidade Maravilhosa” – que ele pronunciava exatamente assim: “ma-ra-vi-lho-sa” –, irradiado pela Mayrink.

    No álbum de recortes de André Filho, na mesma página onde está colada uma versão trilíngue da partitura, há uma informação manuscrita e assinada por ele: “‘Cidade maravilhosa’ foi também publicada, com minha autorização, a pedido do Prefeito do Distrito Federal, na 1ª página da revista Cidade Maravilhosa, em propaganda da municipalidade do Rio de Janeiro – ano de 1936”.

    Por causa de problemas pessoais (entre eles, um casamento desfeito e vários distúrbios nervosos), André Filho se afastou da vida artística no início dos anos 1940, indo morar com a mãe de criação, Constança de Magalhães Ferreira, e permanecendo aos cuidados desta. Durante vários anos, ficou recluso e praticamente esquecido – ao contrário de sua composição mais famosa, que se eternizava pelas ruas da cidade que homenageava. E cujo refrão as más línguas diziam ter sido copiado de um pequeno trecho do terceiro ato da ópera “La Bohème”, de Giacomo Puccini (veja aqui, a partir de 14m59s).

    Com a inauguração da nova capital federal, Brasília, e a criação do Estado da Guanabara, ambas em abril de 1960, “Cidade maravilhosa” tornou-se a “marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro”, através da Lei nº 5, de maio de 1960, proposta pelo vereador Salles Neto e promulgada pelo governador Carlos Lacerda. Ao receber a notícia no dia 3 de junho, através de um repórter do Diário da Noite, o autor da música encontrava-se internado no Hospital da Ordem do Carmo. Declarou, na ocasião, que o episódio o animava a prosseguir e que já estava elaborando uma nova composição: “Brasil, coração do mundo”.

    Note-se, como bem assinalou Jota Efegê no segundo volume do seu livro “Figuras e coisas da música popular brasileira” (Funarte, 1979), que o texto da lei dizia, em seu artigo 1º: “Fica adotada como marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro, respeitados os respectivos direitos autorais, ex vi da legislação em vigor, a marcha ‘Cidade maravilhosa’, de autoria do compositor André Filho”. Ou seja, nenhuma menção a hino, e sim a “marcha oficial”. Quem a tornou hino de fato (não só da capital, mas do próprio Estado da Guanabara), como constatou Jota Efegê, foi a vox populi, ou seja, a população carioca. Vale lembrar que o Estado do Rio de Janeiro – então dissociado da Guanabara – já possuía seu hino desde 1889, o “Hino 15 de Novembro”, de autoria de João Elias da Cunha, com letra de Antônio José Soares de Souza Júnior.

    Adoentado, André Filho não pôde comparecer ao 1º Festival da Música Popular Brasileira, em 04/07/1960, no Maracanãzinho. Na ocasião, seria entregue um troféu “especialmente confeccionado” para ele, segundo informação do Correio da Manhã de 02/07/1960. Batizado de Troféu Guanabara, trazia a palavra “Rio” ornada por uma coroa de louros e uma faixa onde se lia “Cidade Maravilhosa”. Uma foto publicada no Boletim da Sbacem de junho/julho daquele ano mostra a ex-mulher de André Filho recebendo o pesado e dourado objeto (que ela só transferiria de vez ao ex-marido atendendo a uma ordem judicial), hoje guardado no IMS.

    Destaques do Acervo André Filho / IMS: recorte do Correio da Manhã (02-06-1960) e o Troféu Guanabara de 1960

    A primeira tentativa de destituir a marchinha do seu trono ocorreu em 1962. Sérgio Cabral, em sua coluna “Música naquela base” no Caderno B do Jornal do Brasil de 22 de março daquele ano, escreveu: “Sob a alegação de que ‘Cidade maravilhosa’, de André Filho, ‘não reflete, na tradição, o sentimento patriótico da gente carioca’, a deputada Lygia Lessa Bastos está liderando um movimento para que o hino da cidade seja uma música ‘que possua as características técnico-musicais peculiares e inconfundíveis do gênero’”.

    Cabral publicou, na ocasião, opiniões de pessoas ligadas a diversas áreas. Apenas Prudente de Morais Neto (jornalista) e Ariosto Berna (do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro) manifestaram-se favoráveis à mudança. Os outros – Lúcio Rangel (crítico musical), Carlos Lacerda (governador do Estado da Guanabara), César Guerra-Peixe (maestro e compositor), Cristóvão de Alencar (presidente da União Brasileira de Compositores), Miguel Gustavo (compositor) e Stanislaw Ponte Preta (o jornalista Sérgio Porto) – mostraram-se contrários à ideia. Assim como Carlos Drummond de Andrade, que fez uma bela defesa da marcha em sua coluna no Correio da Manhã de 27 de abril.

    Miguel Gustavo, no depoimento a Sérgio Cabral (JB, 22/03/1962), foi além: “Gostaria de sugerir à deputada Lygia Lessa Bastos, tão amiga dos compositores e dos artistas, que intercedesse em favor do autor de ‘Cidade maravilhosa’, André Filho, com uma pensão do Estado, como prêmio de todos nós por tão bela marcha e ao mesmo tempo o nosso socorro para ele, que está internado num hospital em estado de certa gravidade”. Pensão que só viria dois anos depois, como anunciou O Globo de 11/07/1964.

    André Filho continuava então hospitalizado. Ary Vasconcelos, no segundo volume de seu “Panorama da música popular brasileira” (Livraria Martins Editora, 1964), descrevia a situação do compositor no mesmo ano da publicação do livro: “Com o sistema nervoso completamente descontrolado, André flutua hoje entre o sonho e a realidade em um Hospital da Ordem Terceira. Não é um indigente mas é pouco mais do que isso: os fabulosos direitos autorais de ‘Cidade maravilhosa’, a música mais tocada nos bailes do Rio de Janeiro de 30 anos para cá, foram para todos os bolsos, menos para o seu”.

    Para amenizar a má situação financeira do compositor (devido às despesas da internação), um grande grupo de artistas da MPB se reuniu nos estúdios da Odeon no dia 22/12/1964, sob a regência de Lyrio Panicalli, para gravar, em coro, a marcha-hino da cidade, com o lucro das vendas revertido em benefício de André Filho, conforme anunciado pelo Globo do dia seguinte. A faixa seria lançada em 1965 num compacto simples.

    Ainda O Globo de 23/12 noticiava que um documento assinado por 44 cantores e cantoras pedia ao governador Carlos Lacerda que ajudasse o enfermo no ano do 4º Centenário do Rio de Janeiro (1965), como gratidão pelo uso de sua marcha como hino (ainda que extra-oficial) do estado. O movimento surtiu efeito: os jornais cariocas do dia 07/01/1965 anunciavam que, atendendo ao pedido dos artistas, o governo da Guanabara iria adquirir os direitos autorais da famosa marchinha, já tendo se dirigido às entidades de autores musicais para avaliação da composição.

    A Guanabara esteve novamente perto de perder seu “hino” em fins de 1967, quando o general-deputado Frederico Trotta apresentou Projeto de Lei sugerindo à Assembleia Legislativa a criação de um concurso para a escolha de um novo para o estado, em substituição a “Cidade maravilhosa”. Para justificar seu projeto, argumentava que a marcha tinha “música alegre, balanceante, carnavalesca e irreverente para o ritual das solenidades sérias e imponentes, às quais se torna forçoso o comparecimento de autoridades dos três poderes constituídos, bem como de personalidades estrangeiras” (Jornal do Brasil, 28/07/1968). Ou seja, não tinha status de hino.

    O caso mobilizou defensores e detratores da marcha, como mostrou o Jornal dos Sports de 04/10/1967. No decorrer de 1968, diversos articulistas se posicionaram a favor dela, entre eles Edigar de Alencar (O Dia), Nestor de Holanda (Diário de Notícias) e Adones de Oliveira (Folha de S. Paulo). Em vão: o projeto virou a Lei 1.685, promulgada em 26/07/1968, e abriu-se concurso para a escolha do novo hino. Novamente, mais gritaria e protestos tomaram conta das manchetes dos jornais.

    Várias personalidades, como Aracy de Almeida, Fernando Lobo, Grande Otelo, Nelson Motta, Ruy Castro, Dori Caymmi, Klecius Caldas, Guerra-Peixe e Carolina Cardoso de Menezes, manifestaram publicamente sua indignação, juntamente com a cronista Eneida de Moraes e o Conselho de Música Popular Brasileira do recém-criado Museu da Imagem e do Som, cujos membros foram relacionados pelo jornal O Globo de 6 de agosto: Ilmar Carvalho, Lúcio Rangel, Hermínio Bello de Carvalho, Ricardo Cravo Albin, Jacob do Bandolim, Sérgio Porto, Sérgio Cabral, Edigar de Alencar e Edison Carneiro. Apresentadores de rádio e TV, como Chacrinha, Bibi Ferreira, Flávio Cavalcanti, Haroldo de Andrade e J. Silvestre, também manifestaram sua contrariedade.

    Já no início de agosto, André Filho havia quebrado o silêncio. Em visita à redação de O Globo, mostrou-se bastante irritado com o projeto que tirava de sua música a prerrogativa de hino oficial. Disse que “Cidade maravilhosa” era “a própria alma do povo e a imagem desta cidade” (O Globo, 05/08/1968). Em matéria intitulada “A cidade pede: senhores deputados, aprovem este projeto!”, O Globo de 06/08/1968 transcrevia os dois artigos do Projeto de Lei nº 68, de Everardo Magalhães Castro, que defendia a composição. A redação do seu artigo 1º dizia: “A marcha ‘Cidade maravilhosa’, de autoria do compositor André Filho, e com o arranjo oficial ora em vigor, é o hino oficial do Estado da Guanabara”.

    Naquele mesmo mês, o próprio deputado Trotta apresentou Projeto de Lei revogando seu texto anterior, o que levava novamente a canção à condição anterior de “marcha oficial”. A deputada Lygia Lessa Bastos (como informaram o Jornal do Brasil e o Diário de Notícias em suas edições de 15/08/1968) acabou dando parecer favorável ao projeto de Magalhães Castro, mas “apresentou um substitutivo”, através do qual “Cidade maravilhosa” continuaria sendo a “marcha oficial” da capital, mas determinava – como queria Trotta – a criação de um concurso que escolheria um “hino oficial” para o Estado da Guanabara – ideia que, até onde se sabe, não foi adiante.

    No dia 25/09/1968, André Filho concedeu entrevista ao Museu da Imagem e do Som. Falando sobre sua vida, contou que era autor de marchas que homenageavam outras duas cidades: Cambuquira (“Cidade morena”, seu hino oficial) e Buenos Aires (“Ciudad en sueño”/“Cidade do sonho”). Revelou que, por amor ao Rio, recusara-se a fazer uma marcha para Brasília. Disse que o povo nunca iria deixar de cantar “Cidade maravilhosa”, fosse ela considerada hino ou marcha; ressaltou, todavia, que essa não era a sua melhor composição, e sim “Suave tortura” (uma de suas primeiras músicas, feita quando era ainda menino). Ele passaria os últimos anos de sua vida lendo, tocando para os sobrinhos e familiares e conversando com os amigos, sempre sob os cuidados de dona Constança, que o protegeu até o fim da vida, não permitindo, por causa da doença, que ninguém o contrariasse.

    André Filho morreu no dia 02/07/1974, aos 68 anos, em sua cidade natal, tendo sido velado no salão do Museu da Imagem e do Som. Sua mãe adotiva faleceria pouco tempo depois, aos 90 anos. Jota Efegê (para quem a “marcha cívica” de André sempre teve valor de hino oficial), em texto publicado no jornal O Globo de 05/07/1974, sob o título “‘Cidade maravilhosa’, um hino que pode voltar a ser marchinha”, escrevia sobre a morte do compositor e imaginava que um novo hino poderia estar novamente nos planos dos governantes, por causa da eminente fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, decretada naquele mesmo julho e a ser implantada a partir de março de 1975:

    “Sancionada, agora, a lei da fusão do Estado do Rio com a Guanabara, que no parágrafo 1º do artigo 37 determina sejam feitas ‘alterações nos símbolos nacionais’, antes vigentes nos dois Estados, esse dispositivo, por certo, vai provocar, por extensão, a feitura de um novo ‘hino’ ou marchinha que, a exemplo da ‘Cidade maravilhosa’, exalte os territórios fusionados. (…) Falecendo antes de consumada a fusão, André Filho (…) não sofreu o dissabor de vê-la retornar à sua origem de simples marchinha”.

    Felizmente a previsão de Jota Efegê não se concretizou. O Estado do Rio de Janeiro seguiu com seu hino, o de 1889, e “Cidade maravilhosa” continuou (e continua) firme em seu posto de hino da capital, eleito pelo povo e hoje realmente oficializado, através da Lei 3.611 de 12/08/2003, cujos dois primeiros artigos estipulam que:

    Art. 1º Pela presente fica instituído como o Hino Oficial da Cidade do Rio de Janeiro a canção conhecida como “Cidade maravilhosa” de autoria do compositor Antônio André de Sá Filho (André Filho), conforme partitura impressa no Anexo I desta Lei.

    Art. 2º Nas cerimônias oficiais realizadas por entidades e instituições de nossa Cidade, onde for feita a execução do Hino Nacional Brasileiro, as orquestras, bandas marciais e demais músicos serão previamente orientados pelo órgão promotor do evento a executarem o Hino Oficial da Cidade do Rio de Janeiro.

    A marcha-hino que foi lançada até na China deu nome, em 2015, ao troféu do 10º Concurso de Marchinhas Carnavalescas da Fundição Progresso, em homenagem aos 450 anos do Rio de Janeiro. Ricardo Cravo Albin, em matéria publicada no Caderno B do Jornal do Brasil de 15/03/2006 que celebrava o centenário de André Filho, definiu, de maneira precisa: “Muitas músicas já foram feitas para cantar a beleza e o amor ao Rio. Nenhuma pegou tanto como ‘Cidade maravilhosa’”.

    Imagem principal: vista aérea do Rio de Janeiro / Pixabay

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