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    A vida como ela é: traições, vinganças e outras doses por Lupicínio Rodrigues, ‘o criador da dor-de-cotovelo’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Dizem que tem a dor-de-cotovelo estadual, que é aquela da noite em que a gente encontra um amor e depois fica sentindo saudade. E tem aquela dor-de-cotovelo federal, que é aquela que a gente não esquece nunca, que a gente guarda pro resto da vida.”

    Assim, o compositor Lupicínio Rodrigues abriu os trabalhos numa de suas últimas entrevistas, ao MPB Especial, da TV Cultura (08-08-1973). Não foi sem razão que o tema veio à tona logo no início da gravação: Fernando Faro, o entrevistador e produtor do programa, sabia estar diante de um especialista no assunto, tamanho é o sofrimento contido na obra daquele senhor gaúcho de estatura baixa, pele negra, rosto redondo com olhos vivos e voz serena – apesar dos cotovelos doloridos.

    “Andavam me fazendo algumas sujeirinhas por aí e eu fazia músicas muito tristes, como essas músicas que cantam até hoje”, disse, na mesma entrevista, ao explicar por que ficou conhecido como “o criador da dor-de-cotovelo”, como passou a chamá-lo o apresentador Blota Júnior, na década de 1950. “Eu fazia um programa na Rádio Record e, quando eu terminava, todo mundo chorava”, relembra o compositor, desde então uma das principais referências na música popular brasileira quando o assunto é samba-canção – matriz da música de fossa, primo das valsas tristes e avô da sofrência.

    Nascido Lupycinio Oliveira Rodrigues, há 110 anos (16-09-1914), era o quarto dos 21 filhos da união entre a lavadeira Abegail Oliveira e Francisco Rodrigues, funcionário da Escola de Comércio de Porto Alegre. Uma família negra de classe média baixa moradora da Ilhota, pequena localidade encharcada incrustada numa área nobre de Porto Alegre (entre os bairros Menino Deus, Azenha e Cidade Baixa), mas “insalubre o suficiente para que os ricos não pensassem em morar ali. Mas perto o suficiente do centro para que os pobres vissem muita vantagem no local”, como define o músico, produtor e pesquisador Arthur de Faria em seu livro “Lupicínio, uma biografia musical” (Ed. Arquipélago, 2023).

    A Ilhota existiria só até a década de 1940, quando obras da Prefeitura de Porto Alegre começaram a secar a região, tornando-a apta ao “progresso”, ou seja: a empreendimentos imobiliários que servissem de moradia para as famílias mais abastadas. Já as menos aquinhoadas (como os Rodrigues) teriam de deixar o local, levando com elas não só a mudança, mas também memórias – entre elas as carnavalescas. Pois foi justamente na folia que surgiu a primeira composição do jovem Lupi, apelido familiar que o acompanhou por toda a vida: tinha 13 anos quando rabiscou uma marchinha para embalar um dos cordões da localidade, o Moleza, no desfile do carnaval de 1928.

    Carnaval
    Foste criado por Deus para brincar
    Vais embora e não queres me levar
    Me diz onde vais, oh meu carnaval

    A cantar vou
    Pra não chorar nem mostrar minha dor
    Pois sei que vais me deixar, carnaval
    Tão cedo não vais voltar

    Por esta época, já havia concluído o curso primário (atual ensino fundamental) no Colégio Dom Sebastião, quando ingressou na Escola Técnica Parobé, de onde saiu mecânico. Tinha 15 anos quando o pai, preocupado com seu apetite pela boemia, engajou-o como “voluntário” no 7º Regimento de Infantaria do Exército. O velho não podia imaginar que seria justamente de farda e coturnos que o filho – já na condição de Cabo 417 – se encaminharia para o samba, aproveitando as horas vagas para soltar a voz como os artistas que ouvia pelo rádio. “O cantor que eu imitava era o Mário Reis”, contou em entrevista ao Pasquim (23-10-1973).

    Em abril de 1932, quando o artista veio se apresentar em Porto Alegre na companhia de Francisco Alves e Noel Rosa, lá estava Lupicínio, de farda e tudo, na primeira fila do Cineteatro Imperial, aprendendo a dizer o samba como fazia – sem impostação – o mais elegante dos cantores da era do rádio. Depois da sessão, vai praticar o aprendizado num bar na esquina da Avenida Venâncio Aires com a Rua João Alfredo e, em plena roda de samba, é surpreendido pela visita de Noel, que gosta do que vê e ouve. “Esse garoto é bom... Esse garoto vai longe”, disse o Poeta da Vila, segundo seus biógrafos João Máximo e Carlos Didier (“Noel Rosa, uma biografia”, Ed. UnB/1990).

    Não há registro de que tenham bebido juntos, mas faria todo sentido: para Lupi, assim como para Noel, o samba era parte do seu modo de vida, como resumiria na entrevista ao Pasquim: “Não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada... Eu sou boêmio.” De fato, as madrugadas sem fim eram uma constante não só em sua vida, como também um tema recorrente em seus sambas, afinal, suas composições – como ele costumava dizer – retratavam fatos e personagens reais de seu universo. Além dos sofrimentos de seu “coração magoado”, como disse no samba “Eu não sou louco”, uma parceria com Evaldo Rui feita para o carnaval de 1950.

    Louco, não senhor...
    Eu não sou louco
    É que um coração magoado
    Não fala baixo, nem bebe pouco

    Música de carnaval, aliás, era uma de suas especialidades desde os versos iniciais: além da já citada primeira composição, na adolescência, depois fez outras que chegaram a ser gravadas, como a marchinha “Quando eu for bem velhinho”, vencedora do concurso de músicas carnavalescas da Rádio Gaúcha em 1936. No ano anterior, ele já havia terminado em primeiro lugar no certame promovido pela Prefeitura de Porto Alegre no centenário da Revolução Farroupilha (1935), com o samba “Triste história”, que, apesar do nome, ainda não é uma daquelas dores-de-cotovelo emblemáticas de sua obra.

    Esta foi uma das duas músicas de sua autoria gravadas pelo amigo e conterrâneo Alcides Gonçalves no disco nº 34.089 da Victor, que saiu em setembro de 1936, tirando Lupi do ineditismo fonográfico. “Um grande feito num momento em que praticamente nenhum artista gaúcho tinha acesso ao mundo das gravações”, como bem assinala Arthur de Faria na biografia de Lupicínio. Do outro lado do 78 rpm está o ótimo samba onomatopaico “Pergunta a meus tamancos”, que, a exemplo de “Triste história”, teve a coautoria creditada a Alcides Gonçalves no selo do disco.

    Um ano depois será a vez de Lupicínio emplacar seu primeiro sucesso nacional: o samba “Se acaso você chegasse”, que antes do Brasil conhecer – através do disco de Ciro Monteiro que saiu em setembro de 1938 – já era popular em bares como os do Beco do Oitavo, antiga zona de meretrício da capital gaúcha, de onde se espalhou, no boca-a-boca popular. “Os marinheiros que seguidamente aqui chegavam, vendo que muita gente cantava aquela música, resolveram incluí-la no repertório da orquestra dos navios, espalhando-a para todo o Brasil”, contou o compositor num texto (31-08-1963) publicado na coluna semanal que manteve no jornal Ultima Hora de Porto Alegre.

    Nascido numa mesa de calçada do Café Colombo, seu único autor é Lupicínio – o outro nome que assina a composição é de um diretor da Victor, Felisberto Martins, que teve atuação decisiva para sua gravação. Já o “você” do samba era Heitor Barros, um dos camaradas mais chegados ao compositor, que fez dos versos um recado encabulado. “Nós éramos dois amigos que gostávamos de uma mesma moça”, contou Lupicínio, no programa MPB Especial (TV Cultura, 08-08-1973). “Eu fiz uma traição pra esse meu amigo e depois não tinha coragem de contar pra ele. E resolvi contar cantando.”

    Eu falo porque esta dona
    Já mora no meu barraco
    À beira de um regato
    E um bosque em flor...

    Outro marco importante de sua trajetória veio em 1939, quando, de cabeça inchada por uma desilusão amorosa, torrou seu salário de bedel da Faculdade de Direito de Porto Alegre (200 mil réis!) numa passagem de navio para conhecer o Rio de Janeiro. O investimento se pagou logo, quando num fim de tarde Lupicínio foi parar no Café Nice, tradicional ponto de encontro de artistas, às vésperas do carnaval. Os músicos começaram a mostrar suas composições e alguém pediu a ele que cantasse. “Não sei cantar essas músicas”, esquivou-se, intimidado com as presenças de Ary Barroso, Nássara e Haroldo Lobo, entre outros medalhões.

    O sujeito, felizmente, insistiu e Lupicínio destoou do clima pré-carnavalesco. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor...”, cantarolou primeiro, emendando em outra: “Quem há de dizer que quem vocês estão vendo...” Quem gostou de cara foi Francisco Alves, que o interpelou: “Isso é teu, moleque? Isso é teu?” “Eu sei que quando cantei a quarta música o Chico me chamou lá pro canto”, relembrou Lupicínio ao Pasquim, contando que, em seguida, foi levado pelo Rei da Voz para um passeio em seu Buick Vermelho, onde levou a cantada final: “Cê não dá isso pra ninguém. Não dá pra ninguém. Vou gravar tudo.”

    Mesmo que Francisco Alves tenha demorado a gravar Lupicínio (só a partir de 1947) e, no fim das contas, tenha lançado apenas seis músicas do gaúcho, o trato foi como ouro em pó para o compositor, que através da voz mais popular do Brasil viu suas criações ganharem projeção nacional. Como “Esses moços”, o samba-canção que saiu em disco em 1948, amplificando para o país o recado que Lupicínio dava ao amigo Hamilton Chaves quando este, aos 22 anos, disse a ele que estava noivo. “Julguei ser ele muito moço e resolvi dar-lhe um conselho para que não se casasse ainda”, contou Lupicínio na Ultima Hora (01-06-1963). “A esposa dele não se dá comigo até hoje por causa desse conselho”, lamentou, na entrevista para o MPB Especial, antes de cantarolar:

    Esses moços, pobres moços
    Ah, se soubessem o que eu sei
    Não amavam, não passavam
    Aquilo que eu já passei...

    Outro petardo lupiciniano lançado pelo Rei da Voz em 1948 foi “Quem há de dizer”, composição inspirada em seu amigo e parceiro (inclusive, neste samba-canção) Alcides Gonçalves, que trabalhava como pianista na boate Marabá, aonde fazia questão que sua companheira fosse junto, pois preferia que não ficasse em casa, “suspeitando que ela fosse sair”, como Lupicínio relatou na Ultima Hora (11-05-1963). Controle que, além de abusivo, se provava inútil no fim das contas, pois, “como se tratava de uma boate, ela terminava bebendo e dançando com os fregueses”, para desespero do músico, que então passava a noite vigiando a moça por um espelho que apoiava sobre o piano.

    Já em 1950 foi a vez de Francisco Alves lançar “Cadeira vazia” e “Maria Rosa”, esta segunda uma crônica sobre a mulher que o próprio Lupicínio define, no programa MPB Especial, como “um dos meus grandes amores”. Já na Ultima Hora (10-08-1963), contou que era “o broto mais bonito das redondezas” (além de “a mais disputada garota da zona”), no texto em que conta a história do samba “Pergunta a meus tamancos”, outro inspirado nela, a partir de uma noite em que preferiu sair com “um cara de automóvel” a passar a noite com ele, um “zé-ninguém que nem sapatos tinha para calçar”. Apesar de tudo, foi uma relação duradoura que acabou virando amizade, como Lupicínio relatou em 1973, no MPB Especial: “Nós prometemos, se algum dia um precisar do outro, ainda nos ajudar.”

    Outra amada que acabou eternizada em sua obra foi Inah, a enfermeira que foi “seu primeiro e maior amor”, segundo seu biógrafo Arthur de Faria. Era natural de Santa Maria (RS), em cujo regimento Lupicínio serviu em 1930, logo após ter sido promovido de soldado a cabo do Exército. Morava na Vila Brasil, numa casinha perto do poço coletivo que abastecia de água a vizinhança, onde também vivia a jovem, ou melhor, “uma cabocla que trabalha ali defronte carregando água da fonte pra levar pra pionada”, como o então projeto de compositor deixou registrado na canção gauchesca “Zé Ponte”.

    Depois engataram um namoro que evoluiu para noivado, não sem antes atravessar turbulências que inspiraram novas músicas do cabo Rodrigues, que passaria o resto da vida atribuindo à estada em Santa Maria o início de sua atividade de compositor: “Naquela cidade acordaram meu coração”, escreveu na Ultima Hora (03-08-1963). Outra composição sua desta fase é “Felicidade”, que só seria lançada em disco muito tempo depois (1947), nas vozes terçadas do Quarteto Quitandinha (Alberto Ruschel, Luiz Telles, Chico Pacheco e Luiz Bonfá), que também assoviam a melodia no intermezzo e são acompanhados por viola caipira.

    Felicidade foi-se embora
    E a saudade no meu peito inda mora
    E é por isso que eu gosto lá de fora
    Porque sei que a falsidade não vigora

    Mesmo depois do desenlace, Inah seguiu inspirando Lupicínio, como contou o amigo Hamilton Chaves numa série de matérias que escreveu para a Revista do Globo em agosto de 1952, conforme reproduzido na biografia escrita por Arthur de Faria: “Decorridos quase dez anos da separação, quando ele viu a ex-noiva, agora casada com outro, passar por ele na rua, seu coração ainda palpitou por ela”. O resultado foi “Nervos de aço”, grande sucesso de 1947, quando foi lançada duas vezes: primeiro em junho, pelo cantor Déo com Raul de Barros e sua banda, e depois em setembro, com o onipresente Francisco Alves acompanhado da Orquestra Odeon regida por Lírio Panicali.

    E ainda teve Mercedes, “a Carioca”, com quem Lupicínio também viveu uma relação duradoura e atribulada. Ou não a teria chamado de “semente do mal, plantada por demo”, como o fez em “Minha ignorância”, em cujos versos se diz surpreso com o fato de ter perdido a cabeça “por quem não serve nem pra lavar meus pés”. Menos agressiva, mas igualmente categórica, é a mensagem de “Nunca”, samba-canção em que Lupicínio, apesar da saudade (“diga a essa moça, por favor...”), é irredutível na resposta à ex-companheira, desejosa de fazer as pazes: “Nem se Deus mandar, nem mesmo assim...”

    O motivo da desavença, no relato de Lupicínio, é “mais uma história que caberia perfeitamente numa crônica de Nelson Rodrigues”, segundo seu biógrafo, Arthur de Faria: Mercedes o havia traído com o filho do caseiro da chácara onde moravam, o adolescente Zuza, de 17 anos, que contou o caso ao patrão. Estava terminada a relação de seis anos do casal, com direito a um post-scriptum marcante: logo após a separação, os amigos do compositor toparam com a ex bebendo num bar, “num fogo danado”, numa madrugada de carnaval, como contou ao Pasquim (23-10-1973). E quando perguntaram por ele, desandou a chorar copiosamente.

    Estava dado o roteiro de “Vingança”, composição feita por Lupicínio no ato em que soube do episódio, como relembrou ao Pasquim: “Na mesma hora saiu.”

    Eu gostei tanto
    Tanto quando me contaram
    Que lhe encontraram chorando e bebendo
    Na mesa de um bar...

    Já aos leitores da Ultima Hora (28-12-1963) afirmou, sem dizer o nome da ex-companheira, que “foi a maior praga que roguei na minha vida, quando disse que ela ‘havia de rolar qual as pedras que rolam nas estradas’, pois esta moça até hoje não construiu um lar e ‘nem um cantinho de seu para descansar’”. A música se tornou uma das mais executadas de 1951, na interpretação definitiva de Linda Batista – a segunda a gravá-la, num 78 rpm de agosto, depois do registro original do Trio de Ouro, lançado em junho.

    Sossego: Lupicínio e Cerenita / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Depois que conheceu Cerenita Quevedo – em 1951, ainda curando a fossa pós-Mercedes – e com ela teve seu filho único, Lupicínio Jorge Quevedo Rodrigues (o Lupinho, de 1953), entende-se, pelas fontes de referência, que Lupicínio aposentou o espírito conquistador. Mesmo que ainda tenham saído novos petardos de sua autoria, como o samba-canção “Castigo”, que Gilberto Milfont lançou no próprio ano de 1953. Ou os que saíram mais para o fim da década, na voz metálica (e recorrente na obra lupiciniana) de Jamelão, como “Torre de Babel” (1960) e “Ela disse-me assim” (1959).

    Sobre esta última, relato de um sofredor que não é o traído da história, Lupicínio costumava ser mais reservado. Como no programa MPB Especial, no qual, entre tantas memórias detalhadas sobre bastidores de suas composições, limitou-se a dizer que era “uma história que não dá pra contar”, afinal, “é censurada”, confessou, com sorriso amarelo: “É a história de um desses romances proibidos”, explica-se, como se os outros não o fossem. Mas não é de se descartar que sejam histórias antigas, como por exemplo a de “Dona Divergência”, que traça um paralelo entre as desavenças amorosas e a Segunda Guerra Mundial, que se iniciava em 1939 – ano da composição, mais uma dedicada a Maria Rosa.

    A gravação foi lançada por Linda Batista em agosto de 1951, no lado B do 78 rpm de “Vingança”. O disco – RCA Victor 80-0802 – é um divisor de águas na carreira da cantora, que em 1952 é convidada para uma turnê europeia por Portugal (com a letra de “Vingança” estampada no fundo do palco do Cineteatro Monumental de Lisboa), França e Itália. Sua voz, assim como as de Francisco Alves e Jamelão, se tornará um emblema da obra de Lupicínio, de quem lançará outros sucessos, com destaque para “Foi assim” (1952) e “Volta” (1957), com seus versos de súplica ainda hoje relembrados onde quer que se cante música romântica.

    Volta
    Vem viver outra vez ao meu lado
    Não consigo dormir sem teu braço
    Pois meu corpo está acostumado

    Também na carreira do compositor, “‘Vingança’ representa um ponto culminante e representativo”, como destaca o pesquisador Zuza Homem de Mello no livro “Copacabana: a trajetória do samba-canção” (Editora 34, 2017). Tanto que, no mesmo 1952, faria sucesso numa temporada concorrida na boate Oásis, em São Paulo, com seu jeito diferente de cantar, como salienta Zuza: “Dotado de voz franzina, superava o tipo consagrado de voz potente, segundo os cânones de então, com interpretações delicadas e contundentes que calavam fundo, acrescidas da emoção infalível ao serem ouvidas com o autor de suas próprias criações.”

    Após a temporada (na qual, ainda segundo Zuza, “a cornitude foi consagrada”), o grande público pôde também conhecer o canto de Lupicínio, que fez sua estreia fonográfica gravando quatro discos de 78 rpm lançados como parte do álbum “Roteiro de um boêmio”, feito pelo selo Star ainda em 1952. No repertório há regravações e lançamentos (caso do samba-canção “Não sou de reclamar”) no canto do próprio Lupicínio, que, com sua maneira intimista e natural de cantar, acaba por ser o melhor intérprete de suas próprias composições – de tom mais sentido, confessional e ao pé do ouvido do que sugerem gravações como as de Francisco Alves, Linda Batista e Jamelão.

    Lupicínio no gogó, na cerveja, na beca e na caixinha de fósforos / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    O canto choramingado de Lupi está mais próximo de outras interpretações marcantes de sua obra, como a contida e grave Nora Ney que se ouve em “Aves daninhas” ou o choroso Sílvio Caldas de “Homenagem”. Esta última, aliás, lançada em outubro de 1961, quando o já consagrado Lupicínio e suas dores-de-cotovelo incuráveis passaram a soar over entre barquinhos e banquinhos, “abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”, entre outras referências solares e promissoras da bossa nova, inaugurada em 1958.

    Não à toa, em 1967 o poeta Augusto de Campos dizia ter a impressão de que o nome de Lupicínio Rodrigues andava “meio marginalizado, incompreendido até em sua própria terra e esquecido fora dela”, num artigo sobre o compositor gaúcho e “seu largo e importante repertório”. Intitulado “Lupicínio esquecido?”, o ótimo texto, publicado na coletânea “Balanço da bossa e outras bossas” (Ed. Perspectiva, 1974), observa como sua obra – crua, rasgada, escancaradamente sofrida – não vinha encontrando abrigo na velha guarda, nem muito menos na nascente MPB: “Enquanto outros compositores de música popular buscam e rebuscam a letra, Lupicínio ataca de mãos nuas, com todos os clichês da nossa língua, e chega ao insólito pelo repelido, à informação nova pela redundância, deslocada do seu contexto.”

    Como se percebe, Augusto de Campos se refere ao Lupicínio da dor-de-cotovelo, afinal “Se acaso você chegasse”, samba de telecoteco regravado com sucesso por Elza Soares em 1959, era – como ele mesmo ressalta – uma exceção a este suposto esquecimento. Havia também na praça um LP do seresteiro Francisco Egydio (“vive os sucessos de Lupicínio Rodrigues”, Odeon/1962) e, uma década depois, viria outro, de Jamelão (“interpreta Lupicínio Rodrigues”, Continental/1972). Sem contar o hino de seu amado “Grêmio Football Portoalegrense”, composto por Lupicínio no cinquentenário do clube (1953), que lhe encomendou a música, e gravado quatro anos depois.

    Até a pé nós iremos
    Para o que der e vier
    Mas o certo é que nós estaremos
    Com o Grêmio onde o Grêmio estiver

    Até que João Gilberto relembrou “Quem há de dizer” num especial com os Doces Bárbaros na TV Tupi (1971) e, pouco depois, Lupicínio voltava às boas por meio de novas e belas regravações de suas dores-de-cotovelo. Como a que Gal Costa fez para “Volta” e Paulinho da Viola, para “Nervos de aço”, ambas em 1973. Já no ano seguinte, foi a vez de “Cadeira vazia” ressurgir numa interpretação marcante de Elis Regina, de Gilberto Gil refazer “Esses moços”, Maria Bethânia gravar “Quem há de dizer” e Caetano Veloso, “Felicidade”.

    Naquele agosto de 1974, Lupicínio andava internado no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre, quando o filho, Lupinho, lhe trouxe a notícia de que “Felicidade” tinha voltado às paradas de sucesso na interpretação de Caetano. “Finalmente, de novo estão reconhecendo o velhinho”, exultou o compositor, a pouco menos de um mês de completar 60 anos. Pois não teve tempo de acompanhar esta e outras retomadas de suas composições nos anos seguintes. Seu quadro de insuficiência cardíaca e complicações decorrentes de diabetes se agravou, até que ele veio a falecer, no dia 27 de agosto de 1974.

    Na antevéspera, havia manifestado a Cerenita que não queria ninguém chorando em seu enterro (“Quero todo mundo cantando”) e assim se deu quando o cortejo saiu do estádio do Grêmio, o Olímpico Monumental, onde seu corpo foi velado: liderados por um trompetista que solava “Se acaso você chegasse”, os familiares, amigos e fãs que foram se despedir de Lupicínio Rodrigues acompanharam em coro enquanto o caixão era levado até o Cemitério São Miguel e Almas, no bairro da Azenha, onde foi sepultado.

    Seguiram-se homenagens fonográficas diversas ao compositor, tanto por meio de discos coletivos, quanto de álbuns individuais. Entre estes, destacam-se “Joanna canta Lupicínio” (BMG, 1994), “Noite Ilustrada canta Lupicínio Rodrigues” (Atração Fonográfica, 2003), “Loucura”, da conterrânea Adriana Calcanhotto (Sony Music, 2015) e “Entre dores e amores”, do jovem cantor Ayrton Montarroyos (Biscoito Fino, 2021).

    Também há homenagens diversas materializadas em logradouros, edifícios e monumentos por todo o Brasil e, em especial, na cidade de Porto Alegre, onde ele dá nome a uma ponte estaiada na BR-448 (perto da Arena do Grêmio), a um equipamento cultural – o Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues – e, ali ao lado, a uma pracinha construída no local onde ficava a casa da família Rodrigues, na extinta Ilhota, hoje o bairro Menino Deus.

    Na foto principal: Lupicínio Rodrigues na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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