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    Andarilho, prosador e charreteiro: lembranças do ‘vovô Orestes’, num café com Roberto Barbosa

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Esse menino pobre, vagabundo.
    Gostava de viver na multidão.
    Cresceu. Foi ver Paris. Foi ver o mundo.
    Viu tudo e nunca viu consolação.

    Nesta estrofe do poema “Menino de rua”, Orestes Barbosa não poderia ser mais preciso: em quatro versos estão fotogramas de sua infância paupérrima, das consequências felizes do sucesso e de seu coração de poeta, irremediavelmente inconformado. Sem os arroubos românticos de “Chão de estrelas” (seu maior sucesso na música popular, em parceria com Sílvio Caldas), o poema de 13 estrofes era parte de um exercício frequente daquele senhor de 63 anos: na maturidade, volta e meia revisitava o menino Orestes, batutinha que nem imaginava ser o jornalista influente e o grande cronista – além de poeta e letrista – que se tornaria no futuro.

    Foi tão presente na vida cotidiana do Rio de Janeiro, que espanta ser tão pouco lembrado nos dias atuais. Está certo que nasceu há mais de 130 anos (07-05-1893), que os jornais e o rádio não gozam da popularidade de outrora e as serenatas, tão comuns lá no Rio de 1900 e poucos (com seus 800 mil habitantes), minguaram na ruidosa cidade de hoje – com seus 6,7 milhões de moradores. Assim, não fossem os bravos seresteiros que resistem no interior do país, um salve de Chico Buarque (“Tome Noel, Cartola, Orestes...”) e uma citação de Caetano Veloso (“Tropeçavas nos astros desastrada...”), é possível que o nome de Orestes já tivesse virado poeira – na certa, de estrelas.

    Mas há quem venha iluminando seu legado com indisfarçado prazer: o militar reformado Roberto Barbosa, um boa-praça que é figurinha fácil em rodas de samba no Rio de Janeiro. Numa delas, o autor dessas linhas teve a sorte de conhecê-lo: “Sou neto de Orestes Barbosa”, apresentou-se, na serenidade de seus 81 anos, diante dos olhos arregalados deste interlocutor. Surpreendeu-se com o interesse imediato, desdobrado numa conversa – ele é bom de papo: “Sabe o que é? Quando digo isso, as pessoas em geral dão a entender que sabem quem foi Orestes – mas por educação. Porque na verdade elas fingem que sabem.”

    Que tal, então, começarmos a resolver esse problema num café...? Marcamos no Severino, no Leblon, onde seguimos com nossa conversa: Roberto chegou trazendo livros, fotografias, fotocópias de manuscritos do avô e, principalmente, boas histórias.

    Orestes era, como você, bom prosador? “Muito!” Mas era, assim, de contar histórias sobre o passado dele? “Nossa relação era mais no presente do que no passado, sabe?”, afirma. “Ele era louco por mim e pelo meu irmão, hoje já falecido. Éramos os únicos netos dele. Mas era muito preocupado, por exemplo, com nosso desempenho escolar, com as notas do boletim.” Uma preocupação que deixou por escrito, num bilhete do fim da década de 1940: “Roberto e Guilherme, estudem. Grande fortuna é o saber”, rabiscou o avô. “Depois da saúde, o estudo é que é o maior bem.”

    Roberto, hoje professor de língua portuguesa do Colégio Militar do Rio de Janeiro, seguiu à risca o conselho de vovô Orestes e foi aluno aplicado de professores como o coronel Candeias, que ensinava Geometria Descritiva e, nas horas vagas, dedicava-se à música popular – assinou sucessos como a marchinha “Sassaricando” e o samba “Lata d’água”. Em ambas, seu parceiro é Luiz Antônio, que por sua vez era tenente do Exército e também foi amigo de Roberto. “As pessoas não imaginam como tem militar poeta”, frisa Roberto, que no Exército acabou se dedicando, sobretudo, a funções administrativas. “Não posso ver arma, nem pintada!”

    Nascido e criado em Todos os Santos, bairro vizinho ao Méier, na zona norte do Rio, se lembra bem do ambiente bucólico de sua infância (“Lá em casa tinha mangueira, abacateiro, jaqueira...”), antes de a família se mudar para um apartamento no Bairro de Fátima, na região central do Rio. Imóvel comprado pelo velho Orestes, que morava ali perto, na Avenida Henrique Valadares. Depois, sua relação com o avô se estreitou quando moraram no mesmo edifício na Avenida Nossa Senhora de Fátima, embora as lembranças mais alegres de Roberto remetam a um bairro no meio da Baía de Guanabara.

    Era em Paquetá que o avô, os netos e toda a família passavam quatro meses por ano – as férias de verão e o mês de julho – na Rua Alambari Luz, onde Orestes fez sua casa, na primeira metade dos anos 1950. São de lá memórias de costumes do avô, como as noites de pouco sono (lia até tarde e acordava cedo) e os jornais que folheava de manhã cedo, logo depois de acordar. “Depois, o banho e a comida dos animais, aos quais dedicava um carinho todo especial: o quati Muxiba, a cachorrinha Marselhesa, o cachorrinho Cacareco, o galo Caubi, perus, ovelhas, cabritos, o cavalinho Moleque”, recorda Roberto.

    Alfarrábios de Roberto:  da esquerda para a direita, o manuscrito de 'Chão de estrelas'; ele (de branco) com o avô e o irmão numa foto de família; Orestes e Nássara numa caricatura do segundo; um bilhete do avô para os netos: 'Estudem.' / Itens do acervo de Roberto Barbosa

    O relato está no livro “Passeio Público: o chão de estrelas de Orestes Barbosa” (RioArte, 1994), organizado por ele na época do centenário de nascimento do avô (1993). Às memórias impressas somam-se outras lembranças do avô, sejam olfativas (“Ele era perfumado”) ou dos hábitos alimentares (“Gostava de peixe frito e bebia café adoçado”). “Ele nos levava para passear pela ilha de charrete”, diz. “Aliás, conversar com os charreteiros era outro passatempo dele. Quem não sabia onde ele estava e quisesse encontrá-lo, bastava ir ao ponto dos charreteiros.”

    Na memória de Roberto, a Paquetá de Orestes tinha outros personagens, como o escritor Vivaldo Coaracy (“Ficavam horas conversando”) e o compositor Lamartine Babo, presença constante na ilha (“Estava sempre no Hotel Lido.”). Já do cantor Vicente Celestino a lembrança que ficou é mesmo do Bairro de Fátima, no começo dos anos 1960: “É aqui que mora o Orestes Barbosa?”, perguntou ao rapazinho, na portaria, antes de subirem juntos. “Vicente ia regravar uma valsa dele e queria saber se podia alterar a letra do verso inicial, para corrigir a prosódia”, relembra. “Vovô consentiu.”

    A valsa era “A mulher que ficou na taça”, que Francisco Alves havia gravado em 1934 e foi relançada em dois discos do cantor: em 1943 e 1952, este último póstumo, logo após sua morte precoce, num acidente automobilístico. As emissoras de rádio logo passaram a dedicar sua programação quase que exclusivamente à notícia, com a canção “Adeus” (outra parceria dos dois) incluída no repertório que tocava ininterruptamente. “Vovô sentiu muito, pois eram muito amigos, apesar de serem duas personalidades fortes. Me lembro dele muito angustiado, tristonho, circunspecto... Mas nada que um chope não levantasse, né?”

    Dos amigos mais chegados a Orestes foram três os que Roberto conheceu bem – e, de certa forma, herdou: o delegado Zildo José Jorge e os compositores Antônio Nássara e Alberto Ribeiro, este último também médico da família. Nos aniversários de Orestes o trio era presença certa, às vezes à frente da música, como no encontro de 1964, vivo na memória de Roberto: “Éramos nós quatro e um violão, que o Alberto tocava.” Mas seu avô também era de cantar? “Ele gostava, assim, informalmente. Sempre muito afinado, mas com aquela vozinha, né?”

    Com ela Orestes se aventurou duas vezes ao microfone: primeiro como intérprete de “Nega meu bem”, samba de Heitor dos Prazeres (1931), e, depois, na marchinha “As lavadeiras”, que ele canta em dueto com Nássara, seu parceiro na composição. “Esse foi amigo de uma fidelidade incrível”, sublinha Roberto. “Ainda mais depois da morte do vovô, sempre fazendo questão de falar do nome e do legado dele nas entrevistas que dava. Um amigo até o fim.”

    Era também o amigo memorialista, sempre desencavando histórias passadas com o próprio Orestes, como nesse aniversário de 1964, quando um gravador registrou parte da conversa entre eles, com as falas transcritas no livro “Passeio Público”. Numa delas, Nássara traz bastidores de um sucesso de 1935 gravado por Sílvio Caldas: “Você escreveu três letras para a ‘Serenata’. Você escreveu no arquivo d’O Globo, lembra?”

    No mesmo papo, Orestes relembra ao amigo que, ao compor “Meu companheiro”, escreveu um total de 19 estrofes sobre o violão: “E você foi que escolheu as quatro estrofes” que acabaram um dos prefixos de seu intérprete, Francisco Alves. Mas a preferida de Nássara era outra: “Nada mais parecido com o subúrbio do que ‘Suburbana’. ‘Zona norte da cidade / Residência da saudade’. É o subúrbio, né?”

    Já aos ouvintes do programa Sala de Visita, apresentado por Raul Maramaldo na Rádio Rio de Janeiro (29-04-1986), Nássara revelou bastidores da composição do maior sucesso de Orestes Barbosa: “O ‘Chão de estrelas’ foi feito na Câmara Municipal”, revela o amigo contador de histórias. “Eu passava pela porta da Câmara, por acaso, e ele me chamou: ‘ô, Nássara, vê essa letra que eu acabei de fazer.’ Ele era chefe da seção de debates e, num intervalo do trabalho, havia escrito ‘Chão de estrelas’. Ainda vinha a lápis, num papel timbrado da Câmara Municipal.”

    A gravação original, feita na interpretação magistral de Sílvio Caldas (compositor da melodia), saiu em março de 1937, no lado B do disco que tinha também a primeira gravação de outra parceria deles, “Arranha-céu”, também um clássico das serestas. Mas nada comparado a “Chão de estrelas”, preferida do poeta Manuel Bandeira, a julgar pelo que escreveu no livro “Flauta de papel” (Ed. Alvorada, 1957): “Grande poeta da canção, esse Orestes! Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na França, para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes em que ele diz: tu pisavas nos astros distraída...”

    “Essa é hors concours”, concorda Roberto, destacando a sequência de seis metáforas nos seis primeiros versos da obra-prima do avô, que ele declama, como num poema:

    Minha vida era um palco iluminado
    Eu vivia vestido de dourado
    Palhaço das perdidas ilusões
    Cheio dos guizos falsos da alegria
    Andei cantando a minha fantasia
    Entre as palmas febris dos corações

    “Difícil dizer qual a minha preferida. Sou apaixonado por tudo que ele fez”, salienta Roberto, antes de dizer de cor os versos de outras duas da parceria do avô com Sílvio Caldas: as valsas “O nome dela eu não digo” (“Que beleza, né?”) e “O vestido das lágrimas” (“Essa eu adoro!”). Sua lista de preferidas de Orestes também inclui sambas, como os espirituosos “Caixa Econômica”, com Nássara, e “Positivismo”, com Noel Rosa.

    O samba, aliás, era uma de suas paixões e especialidades: não à toa, foi jurado no primeiro desfile das escolas de samba, em 1932, vencido pela Estação Primeira de Mangueira. E em 1933 publicou o livro “Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores” (Livraria Educadora), um dos pioneiros panoramas do gênero musical popular, lançado no mesmo ano em que passou a assinar a coluna “Rádio”, no jornal A Hora – um dos primeiros espaços em que o sambista tinha vez na imprensa brasileira.

    Não era diferente no Café Nice, o famoso ponto de encontro dos artistas da música nas décadas de 1930 a 50, como ressaltou Ismael Silva num depoimento ao jornal Ultima Hora (15-12-1964): “Os mais famosos, como Noel e Orestes, cediam, sempre generosos, um lugar à mesa ao compositor de morro que se chegava, humilde, com sua partitura amassada debaixo do braço.” Era lá (Av. Rio Branco, 174) que Orestes exercitava sua verve de “admirável conversador, excelente contador de histórias”, com uma “maneira toda sua de dizer, de definir, de fazer comparações”, como escreveu Nestor de Hollanda no livro “Memórias do Café Nice” (Ed. Conquista, 1970).

    Entre cafezinhos, palavras rabiscadas, apelidos que criava e fofocas que repercutia, gostava de ter por perto aqueles que definia como “um tom acima” – as pessoas de valor. Como numa tribuna, falava com fluência sobre assuntos diversos para sua plateia (reunida em torno da mesa), pondo em prática seu talento de frasista. Uma delas: “Otário é feito grama. Passa a máquina, nasce com mais força.” Outra: “Quanto menor o exército, mais enfeitado o quepe do general.” E ainda: “Existe o patife simples e o patife à milanesa. Este, quando se descobre, já se comeu a metade.”

    A prosa costumava começar pouco antes do almoço, quando Orestes abria seu expediente, logo depois que eram destrancadas as portas do Nice. “E quando o café arriava as portas, à noite, a conversa prosseguia na rua: nos bancos da Rio Branco ou caminhando”, diz Roberto. “O Nássara me contou que eles chegaram a caminhar até Vila Isabel. E que o vovô tinha um jeito todo especial de andar parando. Andava um pouco e parava. Contava uma história, andava mais um pouco e depois parava de novo. E assim iam os dois, pela madrugada: andando, parando e conversando.”

    Sem frequentar os bancos de escola ou fazer exames (“Nem exame de sangue”, dizia), alfabetizou-se por conta própria, através das manchetes de jornal ou revistas em quadrinhos como O Tico Tico. Aprendeu o suficiente para empregar-se, na chegada à maioridade (1911), como revisor do jornal O Mundo — marco inicial de sua longeva e marcante atuação na imprensa, com passagem por todos os periódicos relevantes do país na primeira metade do século 20.

    Revista Manchete, 29-01-1966

    Como repórter, destacou-se por coberturas marcantes como a de um naufrágio dramático que vitimou estudantes, em 1915, quando meteu-se num escafandro e mergulhou na Baía de Guanabara para melhor apurar a história. Na cobertura política, a pena afiada e sem meias palavras lhe valeu algumas inimizades, duas detenções (condenado por injúria) e seu nome circulando nos balcões de bar, bancos de bonde e gabinetes da Câmara Municipal, onde trabalhou como redator de discursos parlamentares.

    “Não me interessa quem descobriu o Brasil. Eu quero é saber quem bota água no leite das crianças brasileiras”, afirmou Orestes, ao definir o mote do periódico A Jornada, que fundou em 1932. “Não vim para o mundo de chupeta. Briguei muito e hoje me chamam de falador”, disse Orestes à revista Manchete (14-01-1956). “Nada disso: eu fui um homem que sofreu muito. Tinha que vencer. Se botavam pedra no meu caminho, eu chutava a pedra. Às vezes, com a pedra, ia também o camarada que a tinha colocado no meu caminho. Comigo não houve mas-mas. Foi no duro”, salientou, em aspas que seriam transcritas na contracapa do livro “Orestes Barbosa: repórter, cronista e poeta” (Ed. Agir, 2005), biografia fundamental escrita pelo pesquisador Carlos Didier.

    Quando se lançou poeta, na mesma década de 1910, o escritor e jornalista Medeiros e Albuquerque ressaltou o contraste entre as duas atividades de Orestes Barbosa: de um lado, o jornalista “da vida”, adepto “da ação violenta, da atividade, da energia”; de outro, o versejador “de pensamentos sutis e delicados, de meias tintas”. “É um lutador que se atira com delícia à luta”, definiu o escritor no prefácio de “Água marinha” (Revista do Brasil, 1921), o segundo dos 12 livros que escreveu, entre 1917 e 1938.

    Já a estreia no teatro foi em 1927, quando escreveu, com o também jornalista Martins Reys, a revista “Ouro de Moscou”, para ser encenada no Teatro São José. E já que estava escrevendo seu primeiro texto teatral, por que não fazer letras para músicas do espetáculo? Pois assim, com os versos que escreveu para “Flor de asfalto” e “Coração de carmim”, Orestes Barbosa estreou também como autor de canções. Gravada por Castro Barbosa em 1931, “Flor do asfalto” (co-assinada por J. Thomaz) foi também seu primeiro sucesso – ou melhor, “um sucesso extraordinário, quase que absoluto mesmo”, como contou Nássara no programa Sala de Visita, da Rádio Rio de Janeiro.

    Antes dele, já havia sido gravada a cançoneta “Bangalô” (com Oswaldo Santiago), sua primeira a ser gravada em disco, pelo cantor Alvinho (integrante do Bando de Tangarás), como o próprio Orestes pôde testemunhar, em 08-02-1930, numa visita à Odeon: “Um dia, fui convidado a assistir à gravação da minha ‘obra’, no estúdio daquela fábrica, no Teatro Phoenix, 6º andar”, contou à revista Carioca (23-05-1936). Foi recebido com entusiasmo pelo maestro Eduardo Souto, que comandava a gravação e “ordenou à orquestra que tocasse pianíssimo, porque (dizia ele) o necessário era que se entendessem bem os versos”.

    “Bangalô” fazia parte de uma série de sambas que compôs despretensiosamente (“sem ter o que fazer após a Revolução de 30”), destinados a sua cantora preferida, Araci Cortes. Acabou indo parar em outra voz, diferentemente de “Verde e amarelo”, parceria sua com J. Thomaz que a grande atriz e intérprete levou ao disco em 1932. Também com J. Thomaz era um dos sambas de Orestes lançados no ano anterior: “Carioca”, que saiu num 78 rpm de Castro Barbosa.

    Outro bom samba desta safra é “No morro de São Carlos – Destronado”, uma parceria com Hervé Cordovil lançada em 1933, na voz macia de Moreira da Silva. Só que o teor da letra – o malandro em primeira pessoa, personagem que Moreira encarnaria pelo resto da carreira – desagradou a censura, ou melhor, a recém criada “comissão de censura”, estabelecida pela Confederação Brasileira de Radiodifusão.

    Era o segundo veto dela , que já havia censurado “Lenço no pescoço” (Wilson Batista), ironicamente com o apoio de Orestes, que em sua coluna escreveu que “não tem perdão” pregar “crime por música” num “momento em que se faz a higiene poética do samba” (A Hora, 15-08-1933). Desinfetantes e moralismos à parte, o jornalista viu na proibição de sua composição um gesto de retaliação. Seja como for, Orestes Barbosa e Wilson Batista ainda seriam parceiros em três belos sambas, o primeiro deles “Cabelo branco”, lançado por Carlos Galhardo em 1946.

    Além da idade, a saudade também foi tema de outra composição desta época, o choro “Flauta, cavaquinho e violão”, sem que seu parceiro na composição, o pianista Custódio Mesquita, tivesse a alegria de vê-lo lindamente gravado por Aracy de Almeida: o disco saiu em setembro de 1945, seis meses após a morte de Custódio (13-03-1945), de insuficiência hepática, aos 34 anos.

    E quem não conheceu o Rio antigo tão amigo
    De festas e serenatas ao luar
    Ouvindo este harpejar de antigamente certamente
    Contente deste choro há de gostar

    Mas seu avô era de sentir saudade? Curtia, já na década de 1960, ficar relembrando os anos 30, 40...? “Olha, claro que ele tinha orgulho da obra que tinha feito, mas não era passadista, viu?”, diz Roberto Barbosa. “Vovô reconhecia que o tempo dele tinha passado e não lutava contra isso. Pelo contrário, costumava dizer assim: o passado, se ficar no passado, não será esquecido.”

    Gostou de ver, por exemplo, suas músicas voltando aos discos em regravações dos novos cantores, como Cauby Peixoto, que deu novas interpretações a “Flor do asfalto” (1956) e “Serenata” (1957), e Lúcio Alves, que dedicou metade do LP “Serestas” (1957) à parceria de Orestes com Sílvio Caldas: “Serenata”, “Suburbana”, “Arranha-céu” e a obrigatória “Chão de estrelas”. Lendo jornais, ouvindo rádio e conversando com amigos, já não era o mesmo andarilho de sempre: acompanhava à distância o progresso da cidade.

    O charreteiro Orestes Barbosa, em sua querida ilha de Paquetá.
    Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Quando chegou à década de 1960, já estava com a saúde baqueada por dois acidentes vasculares cerebrais: o primeiro sofrido em casa, em 1958, e o segundo no ano seguinte, quando tombou na Cinelândia (em frente ao Theatro Municipal) e acabou tendo roubados o dinheiro do bolso e o relógio. Entristecido e amedrontado, recolheu-se ainda mais em casa – fosse a do Bairro de Fátima ou a de Paquetá, onde recebia visitas de todo tipo: os amigos charreteiros, repórteres que vinham do continente entrevistá-lo ou até o governador Carlos Lacerda, que, quando se hospedava na residência oficial da ilha de Brocoió, colada em Paquetá, ia vê-lo após a missa na Igreja do Senhor Bom Jesus do Monte.

    “Em 1966, eu morava em Salvador, onde servia ao Exército e ensinava geometria descritiva no Colégio Militar de lá. Certo dia, minha mãe ligou dizendo que meu avô não estava bem”, relembra Roberto, que naquele mesmo dia – 15 de agosto – entrou no primeiro avião para o Rio de Janeiro. “Quando cheguei ao Bairro de Fátima, ele havia morrido 20 minutos antes. Ao entrar no quarto dele e vê-lo deitado com as mãos entrelaçadas, só deitei do lado. Por algum tempo, minutos eternos, pensei em como ele gostava da vida. E como transmitiu esse gosto para nós.”

    Causa mortis: trombose cerebral e arteriosclerose. Velado no saguão do Palácio Pedro Ernesto, na Cinelândia, o corpo foi levado no dia seguinte ao Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, baixando à sepultura do jazigo 1835, quadra 38, cercado por muitos admiradores, familiares e amigos – a começar, claro, pelos inseparáveis Zildo José Jorge, Antônio Nássara e Alberto Ribeiro. Quem também se fez presente naquela terça-feira chuvosa foi Pixinguinha, que, chorando, deu uma de poeta para homenagear o amigo: “Os pingos de chuva são lágrimas das estrelas que ele tanto amou.”

    Desde então, a memória de Orestes virou prioridade para Roberto Barbosa: fosse colaborando com programas de TV (como o especial que a Globo produziu em 1976) e shows musicais (como “20 anos sem Orestes”, com a cantora Marisa Gata Mansa, em 1986). Fosse produzindo com o radialista Adelzon Alves, seu amigo, um tributo ao avô também na década de 1980, ou organizando o já citado livro “Passeio Público: o chão de estrelas de Orestes Barbosa”, a partir do acervo guardado por seu pai, Ossian Barbosa, filho único – “e maior admirador!” – do grande jornalista, poeta e compositor. “É normal que, com o tempo, tudo caia no esquecimento, não é? A menos que se faça alguma coisa...”

    Foto principal: Pedro Paulo Malta

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