“Se você tem televisão em casa eu indico o horário das 20h15, no canal 6. É que naquele instante Altamiro Carrilho e sua Bandinha estarão fazendo o programa ‘Em tempo de música’ e revivendo, segundo o estilo da época, saudosas melodias em caprichosos arranjos de Altamiro e seus companheiros. Não é para ver e ouvir?”
Foi assim que os leitores da Ultima Hora ficaram sabendo, na coluna Hi-Fi de 25-05-1957, da novidade que surgia na TV Tupi: uma bandinha que, como tantas pelo Brasil, vinha mexendo – agora pelas ondas hertzianas – com todo tipo de gente. Pobres e ricos, crianças irrequietas e velhinhos saudosos, anônimos e famosos. Entre esses, da última categoria, estava Cândido Portinari: o consagrado pintor costumava dar um tempo nos pinceis e tintas para assistir àqueles 25 minutos de música, sempre nas noites de sábado. A cada sessão voltava em pensamento à infância em Brodowski, no interior de São Paulo, lá no comecinho do século 20 – a tela “Banda de música” é um retrato fiel dessa lembrança afetiva que seguia viva em Portinari.
Pois foi assim, à frente da bandinha, que Altamiro Carrilho se tornou um dos primeiros astros televisivos do país, como J. Silvestre (apresentador do programa “O céu é o limite”), Chico Anysio (e seu programa humorístico na TV Rio) e a atriz Vida Alves, protagonista do primeiro beijo na boca, em Valter Foster, galã da novela “Sua vida me pertence”. Mas antes do sucesso na TV Altamiro já era conhecido há pelo menos uma década, tanto por sua atuação no rádio, quanto pelos discos que vinha fazendo, a maior parte deles com choros de sua autoria, com destaque para os menos convencionais, à moda do que vinham fazendo, naqueles anos 1940/50, Radamés Gnattali, Garoto e outros modernos.
“Era a época em que ele estava buscando caminhos diferentes para o choro”, assinala o violonista, compositor e arranjador Maurício Carrilho, em entrevista para a série Passagem de Som, produzida para o YouTube da Casa do Choro. “É o repertório que eu acho mais bonito dele”, define o músico, filho do também flautista e prático de farmácia Álvaro Carrilho, um dos sete irmãos de Altamiro. A faceta mais moderna do tio de Maurício acabaria sendo, de certa forma, sombreada pelo caráter saudosista da bandinha, justamente sua criação de maior sucesso.
Bandinha, aliás, que tinha como inspiração a primeira memória musical de Altamiro: a Lira de Arion, banda da cidade de Santo Antônio de Pádua, no estado do Rio de Janeiro, onde nasceu há cem anos, em 21 de dezembro de 1924. Era um dos oito filhos do dentista Otacílio Carrilho e da dona-de-casa Lyra de Aquino Carrilho, xará da banda em que Altamiro começou sua trajetória artística, tocando tarol sob a batuta de seu tio, Carlos de Aquino, um dos tantos músicos do ramo materno de sua família.
Mas antes disso o menino já era fascinado por outro instrumento, como contou à Folha de S. Paulo (15-07-2000): “A flauta foi paixão à primeira vista. Aos cinco anos, Papai Noel me deu uma flautinha de brinquedo, daquelas de lata, e no dia seguinte eu já estava tocando marchinha de carnaval”, relembrou, sem perder a chance de arriscar uma piada – costume que, mesmo quando desafinava, retratava seu espírito brincalhão. “Eu acho que só erraram no meu nome, deveriam ter me chamado de ‘Flautamiro’.”
Tinha onze anos e concluía o curso primário (atual ensino fundamental) quando, depois que o pai adoeceu, teve que trocar a escola pelo trabalho. Passou primeiro por uma tamancaria e só então chegou ao ofício que o acompanhou até a vida adulta: prático de farmácia, desde cedo jogando nas onze – manipulava fórmulas, atendia no balcão, dava injeções, fazia curativos e o que mais fosse necessário. Aos 16 anos (1941), quando se mudou com a família para São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, seguiu na profissão, ainda que com a atenção dividida, entre os afazeres e o radinho ligado.
“Não perdia nenhum programa de Dante Santoro e de Benedito Lacerda”, como informou o jornal O Fluminense (10-10-1976). “Por várias vezes, manipulando fórmulas na farmácia, se enlevava tanto ao ouvi-los tocar que se distraía, inutilizando, assim, todo o seu trabalho.” Já tocava flauta quando conheceu um carteiro e músico amador – Joaquim José Fernandes, nome que Altamiro faria questão de citar em suas entrevistas – que se ofereceu para lhe ensinar a ler partitura. O amigo também lhe empresta a flauta, que ele usa nos primeiros trabalhos musicais, em conjuntos que tocavam em dancings da noite carioca.
Só quando recebeu um adiantamento do dono da farmácia onde trabalhava é que teve a felicidade de comprar uma flauta – mas usada, “de segunda, terceira ou quarta mão”, como contou no programa Ensaio (TV Cultura, 1999). “Estava horrível: empenada, arrebentada...” Amarrou o instrumento com elásticos e foi à luta – mas não qualquer luta: tentou a sorte (e o cachê, para amenizar a situação em casa) no programa “Calouros em Desfile”, do temido Ary Barroso, usando o pseudônimo Mário Santiago, para não envergonhar a família, caso fosse gongado.
Escapou por pouco: enquanto tocava o choro “Harmonia selvagem” (Dante Santoro), os elásticos da flauta foram se arrebentando e a execução ficou incompleta. Ary, percebendo a precariedade do instrumento, pediu ao contrarregra que trouxesse mais elásticos e deu outra chance ao calouro. “No repeteco ganhei a nota máxima e levei o dinheiro”, disse ao Jornal do Brasil (08-10-1979). “Nunca chorei tanto como naquele dia”, disse no Ensaio, sobre o prêmio de 50 mil réis (“um montão de dinheiro!”), gasto imediatamente no supermercado e também na compra de uma flauta nova.
Estamos em 1945 e é aqui que se inicia a trajetória de Altamiro Carrilho no rádio. Começa na Tamoio, onde toca por cachê no conjunto de Cesar Moreno: com o salário que passa a receber, deixa de vez o emprego na farmácia. Em seguida, entra para o regional de Rogério Guimarães e ingressa na Rádio Guanabara, de onde se transfere para a Mayrink Veiga, onde toca com o Regional do Canhoto. E assim, entre estúdios e auditórios de rádio, o agora ex-faz-tudo de farmácia se consolida como músico disputado nesta segunda metade da década de 1940.
Pois já em 1948 Altamiro fez sua estreia fonográfica como compositor, quando o samba “Maria Teresa”, de sua autoria, se tornou o primeiro sucesso de Roberto Silva, e o choro “Vou me acabar” (de parceria com Pereira Costa) foi gravado por Ademilde Fonseca. Curiosamente duas canções, assim como “Meu sonho é você”, samba-canção de parceria com Átila Nunes que se tornou um dos sucessos de 1951, na voz de Orlando Correia.
Quando eu passo
Pela rua onde mora
Aquela que eu perdi
Numa noite de verão
Ainda hoje eu sei que ela chora
Relembrando com saudade
Aquela amizade
Que o tempo levou
Já o acompanhamento de solistas, depois da estreia não-creditada em gravações com Moreira da Silva em meados da década de 1940, apareceu pela primeira vez num rótulo de disco em 1949, na gravação original do samba “Normélia”, mais um do repertório de Roberto Silva. Só então, nesse mesmo ano, o nome de Altamiro foi estampado como solista em um 78 rpm, o Star 118, com dois choros de sua própria autoria: “Travessuras do Sérgio”, dedicado a um sobrinho pequeno, e “Flauteando na Chacrinha”, parceria com Ari Duarte referente aos programas que o comunicador Abelardo Barbosa – o Chacrinha – já então apresentava com sucesso na Rádio Clube Fluminense.
Estava aberta não só a discografia do solista Altamiro Carrilho, como também uma parte especial de sua obra de compositor de choros – a preferida de seu sobrinho Maurício, como vimos na abertura deste texto. São desta leva inicial as primeiras gravações de clássicos de seu repertório, como “Quem é bom já nasce feito”, “Atraente”, “Saliente”, “Deixa o breque pra mim” e “Esquerdinha na gafieira”, todos gravados por Altamiro com seu regional.
Já os choros “Gracioso” e “Fogo na roupa” e o baião “Enigmático” Altamiro gravou com o Regional do Canhoto, conjunto para o qual se transferiu – deixando seu próprio grupo – em substituição a Benedito Lacerda, quando este adoeceu. Não teve qualquer problema em assumir o posto de Benedito, que afinal era o exemplo de flautista que há algum tempo seguia, a ponto de imitar seu estilo quando participou de outro programa de calouros, o Papel Carbono, ainda nos anos 1940.
“Os outros tocavam flauta com uma técnica muito boa, como Pixinguinha, Dante Santoro, Patápio e tantos outros, mas o Benedito chegou com um estilo novo, um jogo diferente, um balanço diferente”, contou no programa Ensaio, embora se dissesse – como afirmou na mesma entrevista – herdeiro de toda a linhagem brasileira de flautistas: “Eu sou uma mistura de todos eles.” Aprendizado que se deu em saraus, rodas, auditórios e também ouvindo antigos 78 rotações, como o de “Margarida”, mazurca do pioneiro Patápio Silva, como recordou ao Estado de S. Paulo (28-08-2009): “Foi por essa música que eu furei o disco.”
Aí veio 1954 e, com ele, o primeiro grande sucesso de Altamiro: o dobrado “Rio antigo”, composição dele que remetia às antigas bandas de coreto, como sua Lira de Orion, da infância em Santo Antônio de Pádua. O público gostou não só do caráter antigo da composição, como da gravação: para reproduzir o som de banda, ele havia arregimentado um octeto formado por clarinete, trompete, bombardino, tuba, banjo, bateria e pandeiro, além de sua flauta. Estava formada a famosa bandinha, que ali iniciava sua extensa discografia.
Um dos 78 rotações de maior sucesso veio em 1956: o Continental 5588, que no lado A trazia o pot-pourri “Festas juninas” e, no B, o samba maxixado “Jura” (Sinhô). Já no ano seguinte foi a vez do conjunto – promovido a noneto, com a inclusão de pratos na formação – virar atração de rádio com o nome de Bandinha do Castelo, em alusão à marca de vinho que patrocinava aquela faixa da programação da Rádio Mundial. Em maio de 1957 já estreava na TV Tupi, agora com acabamentos visuais, como o band leader recordou ao JB (08-10-1979): “Parti para a bandinha com roupas coloridas, eu vestido de domador de leão.”
O ‘domador’ Altamiro e a famosa bandinha em dois LPs de sucesso da gravadora Copacabana (Fonte: Internet)
Pois além do saudosismo que evocava nos fãs e do caráter lúdico das apresentações, outro segredo do sucesso da bandinha era o repertório, que ora rebobinava ao passado, ora gravava sucessos do cinema – como fez em 1958 com a marcha “Colonel Bogey”, do filme “A ponte do Rio Kwai”. Também trouxe pra cá a polca “Beer barrel”, gravada em 1962 com o nome de “Barril de chope”. A bandinha ficou imortalizada também ao acompanhar o palhaço Carequinha em sucessos como “O bom menino” (1960) e “Parabéns, parabéns” (1959), ambas composições de Altamiro com o conterrâneo Irani de Oliveira.
Chegou a hora de apagar a velinha
Vamos cantar aquela musiquinha
Parabéns, parabéns
Pelo seu aniversário
O bom humor, aliás, permaneceu como uma marca da discografia de Altamiro, mesmo sem a bandinha. Fosse nas entrevistas que dava (incansável nos trocadilhos e piadinhas), fosse nos choros que compunha e gravava, como “O disco enguiçou”, de 1957. Ou ainda em músicas que compôs para serem cantadas, como o “Choro louco” (dele com Chico Anysio), que Valter Damasceno lançou em 1955, e o samba “Stanislau Ponte Preta” (com Miguel Gustavo), lançado por Linda Batista em 1959.
E em paralelo aos diferentes gêneros da música popular, Altamiro volta e meia também visitava o repertório de concerto, aproximando-o – com um olhar igualmente espirituoso – da linguagem do choro. Como fez com a “Valsa em Ré bemol maior, Op. 64, nº 1”, do polonês Frédéric Chopin, que por aqui ficou conhecida como a “Valsa do minuto”, mas, na flauta de Altamiro, virou o baião “Um minuto”, conforme impresso no disco que lançou em 1953, pela gravadora Copacabana. “O chorinho tem muito a ver com a música erudita, porque tem nela as suas bases. Os compositores do barroco, por exemplo, eram chorões e não sabiam”, disse ao JB (08-10-1979).
O flautista irrequieto repetiria a ousadia outras tantas vezes ao longo de sua carreira, como nos LPs “Clássicos em choro”, que ele lançou em dois volumes em 1979 e 80, no meio de sua vasta discografia. Além dos 46 discos de 78 rpm que gravou como solista, foram impressionantes 53 LPs de carreira lançados em vinil ou CD, com temas os mais variados. Tem disco dedicado às serenatas, disco de valsa, outro pra dançar (com sintetizador!), um de bossa nova, mais de uma antologia de música junina e tributos a Pixinguinha e Lamartine Babo, entre outros assuntos.
Entre tantos lançamentos destaca-se um de seus trabalhos mais conceituados, “Choros imortais”, produzido em 1964 pela gravadora Copacabana trazendo no repertório uma retrospectiva do choro. Ou um “recital de música retrospectiva”, como sintetizou o crítico Claribalte Passos no Correio da Manhã (17-05-1964), definindo o LP de Altamiro como “um de seus mais perfeitos trabalhos”. Sem qualquer composição sua, Altamiro aqui privilegia a obra de outros chorões, especialmente Pixinguinha, segundo ele – mais uma vez no programa Ensaio – “o melhor compositor de choro de todos os tempos”.
No disco “Som Pixinguinha” (EMI Odeon, 1971), último do autor de “Carinhoso”, a flauta de Altamiro pode ser ouvida em nove faixas, com destaque para o choro “Um a zero”, no qual assume o papel do ídolo Benedito Lacerda ao refazer com Pixinguinha o dueto histórico. Outras gravações marcantes de Altamiro vieram na mesma década: é dele a flauta que se ouve no primeiro registro de “Meu caro amigo”, por Chico Buarque, em 1976. No mesmo ano, acompanhou Cartola em “O mundo é um moinho”, “As rosas não falam”, “Sala de recepção” e “Cordas de aço”.
Altamiro seguiu participando de inúmeras outras gravações de samba e MPB, sem nunca deixar de lado – nem fora de sua discografia – o gênero musical em que se criou e que ajudou a popularizar ao longo de sua trajetória. “O choro não tem crescido nem decrescido. Pode chegar uma enxurrada de ritmos de fora, que ele não cai”, disse à Folha de S. Paulo (28-08-2009), como que completando uma fala de quase dez anos antes, à Folha de S. Paulo (15-07-2000), quando afirmou que o choro “nunca esteve em baixa”, embora reconhecendo que “andou às vezes ofuscado pelos modismos”, entre eles “o boogie-woogie, depois o cha-cha-chá, o bolero, o tango, o rock, o rap.”
Mas estava animado o veterano flautista: “De dois anos para cá, houve uma espécie de resgate”, observou, na mesma entrevista à Folha. “Os jovens estão interessados.” Referia-se, sobretudo, a iniciativas como a Escola Portátil de Música (EPM), fundada no ano 2000 pelo já citado Maurício Carrilho, ao lado de Luciana Rabello e outros profissionais dedicados a ensinar música brasileira através da linguagem do choro. Em atividade ininterrupta há quase 25 anos, a Escola serviu de base para incontáveis novos chorões (estrangeiros inclusive) e deu origem, em 2015, à Casa do Choro – antigo imóvel totalmente restaurado no Centro do Rio de Janeiro com salas de aula, um auditório, um estúdio de gravação e um centro de memória.
Itens do acervo pessoal de Altamiro na Casa do Choro: a carteira de trabalho, flautinhas de bambu e um retrato de família, com a companheira Marina e a filha Dayse (Fonte: página de Altamiro Carrilho no site da Casa do Choro)
Pois lá estão guardados, preservados e digitalizados (e acessíveis aqui) itens diversos do acervo pessoal de Altamiro que a família entregou à Casa do Choro depois de sua morte (15-08-2012), aos 87 anos, em decorrência de problemas respiratórios. De flautinhas de bambu a carteiras de trabalho, de diplomas variados a retratos 3x4, de roteiros musicais a quilos de troféus. Além de recortes e mais recortes de jornais, alguns deles com textos em homenagem ao flautista, como um que o define como “solista de peças eruditas e populares, moleque, compositor dos maiores, showman”.
Seu autor é o jornalista de economia e bandolinista Luís Nassif, que, ao alinhar o veterano chorão entre os maiores instrumentistas de todos os tempos, recorre a aspas de dois outros mestres da música: o violonista Baden Powell (“A técnica de Altamiro e suas composições mudaram a história do choro”) e o flautista francês de concerto Jean Pierre Rampal (“É o maior sopro de todos os flautistas que conheci”).
Nassif também relembra o CD “Roda de choro”, que gravou em 1995 e em cuja turnê de lançamento contou com a participação do personagem-tema de seu texto. “Daqui a muitos anos vou reunir netos e bisnetos e contar que seu avô fez shows com Altamiro”, escreveu o jornalista na Folha de S. Paulo (13-02-2000). “A esta altura, com Altamiro já devidamente reconhecido pelo tempo e entronizado na história, a molecada vai olhar intrigada, uns para os outros, e comentar que, certamente, vovô pirou.”
Foto: Altamiro Carrilho e sua flauta / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS