Foi no carnaval de 1917 que, com o sucesso de “Pelo telefone” (Donga e Mauro de Almeida), o samba começou a se firmar na preferência popular e na história da música brasileira. E aí é curioso que só na década de 1930 ele passaria a ser gravado, sistematicamente, com o acompanhamento de pandeiro, tamborim, ganzá e outros instrumentos característicos da percussão de samba. Nesse intervalo, era com violão, ou piano ou uma pequena orquestra que se ouvia samba em 78 rpm.
Até que veio outro capítulo importante dessa história: “Na Pavuna”, a composição de Almirante e Homero Dornelas que se tornou um marco na história fonográfica da música popular brasileira. É que antes de sua gravação (30-11-1929) e de seu lançamento (no janeiro seguinte), nunca instrumentos de percussão típicos dos blocos e escolas de samba haviam sido gravados em disco. Pois naquele dia teve pandeiro, cuíca, surdo e tamborim valorizando a interpretação de Almirante com o Bando de Tangarás.
Estes devidamente creditados em letras douradas no rótulo vermelho do disco da Parlophon, ao contrário dos percussionistas que inauguraram a batucada de samba em disco: Canuto, Andaraí e Puruca, três negros moradores do Salgueiro, de onde desceram para o estúdio. Também ficaram ausentes dos créditos porque não era comum rótulos de discos informarem nomes de músicos acompanhantes – outros participantes da gravação de “Na Pavuna” que passaram em brancas nuvens foram a pianista Carolina Cardoso de Menezes e o bandolinista Luperce Miranda.
Já o parceiro de Almirante aparece como Candoca da Anunciação, pseudônimo com que Homero Dornelas – violoncelista, maestro e arranjador formado no Instituto Nacional de Música – se sentia mais à vontade para assinar a autoria daquele samba, ou melhor, “choro de rua no carnaval”, conforme impresso no rótulo. Seja qual for o significado deste gênero musical (não há registro de outra ocorrência), o fato é que a composição foi iniciada justamente por Dornelas, quando servia no navio Poconé, nos idos de 1924.
“O navio tinha excelente corneteiro, o cabo Clodomiro Marins, sujeito muito brincalhão que costumava levar o instrumento à boca, soprar um sol-sol-dó-dó e, logo em seguida, gritar para os companheiros: ‘Na Pavuna, seus filhos da puta!’”, contam Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa: uma biografia” (UNB, 1990). “Homero nunca entendeu porque Marins dizia aquilo, mas as notas lhe ficaram na cabeça desde aquela época.” Só algum tempo depois, quando foi pela primeira vez à Pavuna (bairro da zona norte carioca), num batizado na casa de parentes de sua noiva, Homero Dornelas lembrou-se do toque de corneta e rabiscou o refrão.
Na Pavuna, na Pavuna
Tem um samba que só dá gente reúna
E aqui faz-se necessário um breque nesta história, por conta da última palavra do segundo verso: diferentemente de Almirante, nos textos que deixou, há quem use (entre eles Carlos Didier e João Máximo), ao transcrever a letra de "Na Pavuna", a palavra "reiúna", que segundo os dicionários era o nome de um tipo de espingarda de cano curto ou, ainda, uma botina que era presa à perna com elástico. Seja como for, Almirante torceu o nariz para a palavra quando ouviu o refrão pela primeira vez.
“É gíria de soldado”, explicou-lhe Homero Dornelas, antes de contar que no verso original a letra dizia “gente turuna”, como os conjuntos pernambucanos – entre eles os Turunas da Mauricéia – que vinham fazendo sucesso no Rio de Janeiro. Mas que, no fim das contas, o dramaturgo Joracy Camargo sugeriu a troca e ele topou. Convencido, Almirante logo juntou-se a Homero na produção da segunda parte, que não tardou a ficar pronta.
Conjunto de muito sucesso no Rio de Janeiro da segunda metade dos anos 1920, os Turunas da Mauricéia eram o modelo do Bando de Tangarás, o grupo de Almirante, formado no fim desta mesma década por jovens brancos de classe média do bairro de Vila Isabel, todos então músicos amadores: Noel Rosa, João de Barro (o Braguinha), Henrique Brito e Alvinho. Já vinham gravando com relativo sucesso naquele ano de 1929 – seis discos no total – quando Homero Dornelas os chamou para mostrar a tal composição inacabada que seria concluída com a colaboração de Almirante.
Gente reúna: os parceiros Almirante (em foto da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS) e Homero Dornelas, o 'Candoca da Anunciação' (reprodução da internet)
“Faltavam os versos da segunda parte e esses foram escritos por mim”, relatou o cantor dos Tangarás no programa “História das Orquestras e Músicos do Brasil”, produzido e apresentado por ele na Rádio Tupi, em fins de 1947. No roteiro do programa – transcrito pelo jornalista Sérgio Cabral na biografia “No tempo de Almirante, uma história do rádio e da MPB” (Francisco Alves Editora, 1990) – ele conta que “Na Pavuna” foi a oportunidade para o conjunto pôr em prática o plano que já vinha “bolando há algum tempo”, de levar para o estúdio a batucada das escolas de samba.
“No dia marcado para a gravação do samba, bem vimos a cara de espanto que o técnico da Odeon, um alemão, fez, ao entrar no estúdio aquele bárbaro material de percussão. Chegou mesmo a balançar a cabeça, incrédulo”, relembrou Almirante, na Rádio Tupi. “Quando fomos ouvir a prova, com espanto geral (maior, naturalmente, do técnico alemão), tudo estava gravado, nitidamente, na cera: os graves respeitáveis do surdo, as batinelas metálicas dos pandeiros, os repinicados saltitantes dos tamborins e os roncos soturnos das cuícas.”
Tamanho foi o entusiasmo, que Almirante propôs que a nova música furasse a fila das outras que já estavam prontas para serem gravadas pelo Bando de Tangarás. “Olha, Noel... Acho que ‘Com que roupa’ vai ter que esperar até o outro carnaval”, teria dito o líder do conjunto, conforme diálogo transcrito por Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa: uma biografia”. O Poeta da Vila quis saber o motivo e Almirante foi direto: “Porque este vai ser o carnaval do ‘Na Pavuna’.”
Estava certo. No carnaval de 1930, “a nota de sensação seria dada pelo ‘Na Pavuna’”, como definiu Edigar de Alencar em seu fundamental “O carnaval carioca através da música” (Livraria Freitas Bastos, 1965). O jornalista destaca no livro que a inovação percussiva não era a única bossa daquele samba. “Os versos consagradores de um subúrbio carioca também seriam novidade logo imitada”, ressalta Alencar, antes de sublinhar outro ineditismo, pescado da segunda parte: “Ao que parece, pela primeira vez era usada a expressão batucada (não registrada nos dicionários de então) no texto poemático.
Um malandro que só canta com harmonia
Quando está metido em samba de arrelia
Faz batuque assim
Com seu tamborim
Com seu time enfezando o batedor
E grita à negrada
Vem pra batucada
Que de samba na Pavuna tem doutor
Depois da segunda parte, Almirante cantarola uma bossa sobre a melodia tocada ao piano por Carolina Cardoso de Menezes, citando um sucesso do cantor Bahiano lá do início do século 20: “Olá... Seu Nicolau quer mingau?” Em seguida, volta ao refrão com o coro dos Tangarás e, então, canta a segunda letra que escreveu para a segunda parte do samba:
Na Pavuna tem escola para o samba
Quem não passa pela escola não é bamba
Na Pavuna tem
Canjerê também
Tem macumba, tem mandinga e candomblé
Gente da Pavuna
Só nasce turuna
É por isso que lá não nasce muié
“A referência contida no último verso de Almirante é motivada pelo fato de naquela ocasião não figurarem mulheres nas escolas de samba, ou pelo menos na maior parte delas”, explica Edigar de Alencar, contextualizando o arremate misógino da letra que exclui as mulheres da Pavuna, onde afinal só tem “gente turuna” (valente).
Sobre a inauguração dos sambas bairristas, Almirante observou em seu livro “No tempo de Noel Rosa” (Francisco Alves Editora, 1963), que “‘Na Pavuna’ foi o germe da intensa movimentação que levou Noel Rosa a produzir sambas em louvor a Vila Isabel.” Mais adiante, ele perfila os sambas surgidos na sequência de sua parceria com Homero Dornelas, cada um exaltando um recanto da cidade: “No Sarguero”, “Na Aldeia” (Campista), “No Grajaú, iaiá” e “Na Gamboa”, este último classificado por Almirante como “o mais lamentável carbono”, afinal é uma “cópia da melodia, do ritmo e do estribilho”.
Já o professor e musicólogo Carlos Sandroni salienta, no artigo “Dois sambas de 1930 e a constituição do gênero” (publicado no volume 4 dos Cadernos do Colóquio, da UniRio), que “o principal fator de sucesso da gravação de ‘Na Pavuna’ foi de fato a batucada. E principalmente as três batidas do surdo que se seguem ao título no estribilho, tão marcantes que foram incorporadas ao próprio título: o samba era referido popularmente como ‘Na Pavuna, bum-bum-bum’.”
Ainda segundo Sandroni, “Almirante conta como os ouvintes tinham dificuldade de entender as palavras entoadas pelo coro, mas ‘entendiam’ perfeitamente as batidas: assim o samba era chamado de ‘Caradura, bum-bum-bum’, ‘Lá vai uma, bum-bum-bum’, e até ‘Amapola, bum-bum-bum’”, esta última em referência a uma gravação do tenor italiano Tito Schipa que vinha fazendo sucesso naquela virada entre as décadas de 1920 e 30.
O Bando de Tangarás em dois retratos: numa imagem captada do filme em que cantam 'Vamos falá do Norte' (Paulo Benedetti, 1929) e numa charge de Antônio Nássara (reproduções da internet)
Pois a trinca de ases da percussão por pouco não seguiu para sempre no anonimato, como no rótulo do disco (Parlophon 13089) de lançamento de “Na Pavuna”. Em maio de 1989, quando Sérgio Cabral escrevia o já citado “No tempo de Almirante”, João de Barro, último remanescente do grupo, já “não se lembrava dos ritmistas”, como o jornalista informa no livro. Nem mesmo de Canuto, seu parceiro em “Vou à Penha rasgado”, entre outras composições, ele se recordava. Felizmente, o meticuloso Almirante — que além de cantor, compositor e radialista foi grande pesquisador musical — deixou suas anotações sobre ele no livro “No tempo de Noel Rosa”.
“Preto magro, alto, calmo, afinadíssimo, cantando baixinho, com ‘sentimento profundo’, segundo ele mesmo declarava”, segundo a descrição de Almirante, “era lustrador de móveis e nascera com sobrenome pomposo: Deocleciano da Silva Paranhos.” Já aqui na Discografia Brasileira ele pode ser encontrado como J. Canuto, como assina as onze composições que teve gravadas, com outros parceiros além de João de Barro. No samba “Já não posso mais”, a autoria é dividida com Almirante, Noel Rosa e Puruca. Este último, que Almirante chama de “Curuca”, participou na histórica gravação de “Na Pavuna” tocando surdo – instrumento do qual era “exímio executante”.
Completava o trio “um preto forte de apelido Andaraí”, este “tão compenetrado em seu instrumento, que tocava tamborim de olhos fechados, como em êxtase”, segundo as memórias de Almirante. De acordo com o biógrafo Sérgio Cabral, o próprio Almirante teria engrossado a batucada tocando pandeiro “na altura da perna”, para não interferir na captação da voz.
No ano seguinte, a percussão mais uma vez foi tema central de um disco do Bando de Tangarás, que cantou em coro a marchinha “Lataria”, de Almirante, Noel Rosa e João de Barro. A gravação é iniciada com uma conversa pitoresca de integrantes do grupo com o maestro Eduardo Souto, que arremata a prosa dispensando o uso de pandeiros: “Lata véia tá aí à beça!” De fato, a batucada – feita pelo próprio conjunto – com latas de querosene e (segundo Edigar de Alencar) até um urinol contribuiu para o resultado de “Lataria”, que fez sucesso, mas sem a repercussão do samba mais cantado do carnaval de 1931, “Com que roupa”, lançado em disco na voz de seu compositor, Noel Rosa, com acompanhamento dos Tangarás.
Já “Na Pavuna” seria para sempre lembrado não só pela repercussão que teve no carnaval de 1930, mas também como prefixo sonoro de Almirante ao longo de sua bem sucedida carreira no rádio – especialmente na Tupi, onde, sempre que seu nome era anunciado, a orquestra atacava os primeiros compassos de seu maior sucesso.
A música também seria incluída em coletâneas dedicadas à história do carnaval e regravada algumas vezes, sobretudo no formato instrumental. Como em 1955, quando Carolina Cardoso de Menezes reencontrou o samba – agora como solista – num dez polegadas da Odeon. Pela mesma gravadora saíram outros registros de destaque, como uma do maestro Copinha e seu conjunto, em 1956, e outro no dueto do violino de Fafá Lemos com o violão de Luiz Bonfá, em 1958.
Menos ortodoxa é a versão do conjunto O Rappa, que em 1995 revisitou o antigo samba no especial “Carnaval é Legal”, da MTV, tendo como novidades o acompanhamento de guitarra, baixo e bateria, o sumiço da segunda parte e o refrão cantado em ritmo de reggae pelo vocalista Marcelo Falcão, que, aos pulos, abre a cantoria com um chamado ao passado: “Alô, Almirante!!!”
Sorte dele que o eterno tangará, falecido em 1980, já não tinha como responder.
Na imagem principal: o rótulo do disco Parlophon 13089, pertencente à Coleção Leon Barg/IMS, em foto de Fernando Krieger.