Carnavalizar quem manda sempre deu pé – presidentes, nobres, militares... Letra curta e fácil de decorar também. Seja por um motivo, pelo outro ou os dois combinados, no carnaval de 1950 não houve refrão mais cantado que o de “General da Banda”, o samba de Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo que alcançou um feito incomum na época: ser lançado simultaneamente em dois discos concorrentes.
Isso há 75 anos, em janeiro de 1950, quando as lojas começaram a vender os 78 rotações de Linda Batista e Blecaute com as primeiras gravações da música. Ela com acompanhamento de conjunto regional e a música identificada como batucada no rotulo do disco – o RCA Victor 80-0632. Ele acompanhado de Severino Araújo e seu conjunto na execução do samba, como classificava o selo do disco – o Continental 16150.
Duas ótimas gravações que logo caíram no gosto popular: a de Linda Batista, feita em 18 de outubro de 1949, com a percussão em primeiro plano, lado a lado com sua voz límpida, contribuindo para o clima festeiro do registro. Já na gravação de Blecaute, realizada em 21 de novembro de 1949, além da batucada, um poderoso naipe de sopros se faz ouvir com a voz sorridente do cantor.
“General da Banda”, no entanto, tinha uma vantagem em relação aos outros sambas que disputavam a popularidade dos foliões em 1950. Ele já corria na boca do povo desde o carnaval anterior, mais precisamente desde “a tarde de segunda-feira gorda”, quando, “à última hora”, tornou-se “o verdadeiro ‘abafa’ do carnaval”, como informou o cronista J. A. n’A Gazeta de Notícias (03-03-1949).
O pernambucano Antônio Maria foi outro que, em sua coluna n’O Jornal (03-03-1949), fez um rescaldo do carnaval de 1949, com uma lista dos destaques musicais daquele ano: “Que samba bom”, “Maior é Deus”, “Jacarepaguá”, “Chiquita Bacana”... “E finalmente um lugar especial para aquele refrão que o povo carioca não se cansava de repetir.”
Chegou o General da Banda ê-ê...
Chegou o General da Banda, ê-á...
Um autêntico pré-lançamento que fez com que o samba já fosse do “imenso agrado do público” (A Manhã, 03-03-1949) quando começou-se a definir o repertório da folia de 1950. Não à toa foi selecionado por duas das vozes mais populares da música brasileira. E não à toa “Chegou o General da Banda” era o nome de uma peça carnavalesca que estreou no Teatro Glória em 13 de janeiro de 1950.
Em cartaz por mais de um mês, batendo a marca de 50 apresentações, foi um dos grandes sucessos da temporada, apesar das resenhas negativas que recebeu na imprensa. Como o crítico Accioly Netto, que não gostou do texto assinado por Freire Junior, Luiz Peixoto e Barreto Pinto, com “uma irritante intenção de propaganda política em favor de Getúlio Vargas” (O Cruzeiro, 04-02-1950).
Henrique Campos, do jornal A Manhã, foi na mesma toada: não perdoou a “ausência de dramaturgia”, os figurinos velhos e o corpo de baile (“25 girls e 12 boys”) desencontrado. Elogiou, no entanto, o repertório “pontilhado de boas músicas carnavalescas e todas com boa interpretação”, como escreveu na edição de 15-01-1950, com destaque para as vozes de Dircinha Batista, Dalva de Oliveira e Jorge Goulart.
Os rótulos dos discos concorrentes de 'General da Banda' no carnaval de 1950: o RCA Victor 80-0632, de Linda 'Baptista', e o Continental 16150, de 'Black-Out'. / Arquivo Nirez
Já em fevereiro, quando os dois discos já estavam na praça e tocando em loop nas emissoras de rádio, foi a vez de outro evento fazer rufarem os tambores para aquele samba-batucada: uma iniciativa do jornal O Radical que, durante semanas, preparou a cidade para uma grande recepção popular ao... General da Banda, “o ditador da folia” que chegaria na cidade às vésperas do carnaval de 1950.
Houve certo mistério em torno de quem encarnaria o personagem central do cortejo: só no dia 15-02 o público descobriu que o “General da Banda” era o cantor Blecaute. Em cima de um carro alegórico e devidamente fardado, o artista seguiu da Praça Mauá pela Avenida Rio Branco cercado por populares e ritmistas das escolas de samba. No fim, comandou um baile popular no Teatro João Caetano, mandando ver no samba-tema da noite:
Mourão, mourão
Vara madura que não cai
Mourão, mourão
Catuca por baixo que ele vai
Depois da recepção popular, Blecaute não só se firmou como a voz de “General da Banda”, como também assumiu o personagem, com direito ao figurino característico que virou uma de suas marcas: “Passou a ostentar em suas apresentações uma colorida fantasia de general da banda, cheia de alamares e dragonas”, como descrevem Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello em “A canção no tempo – vol. 1” (Editora 34, 1997).
Em 1958, chegou a gravar uma espécie de prefixo a ser cantado sempre que entrasse em cena, como que firmando o apelido e o personagem: “General está no comando / É nessa jogada que eu vou”, diz um trecho da letra do de “Está chegando o general”, samba de Raul Marques, Carlos de Sousa e Rosa de Oliveira.
Mas a patente, há muito, já tinha dono, como aliás havia alertado o cronista J. A., d’A Gazeta de Notícias (03-03-1949): “Devo dizer que não era estranha para mim semelhante melodia e mesmo parte de sua letra. Conheço-a bastante, através dos terreiros que frequento”, assinalou. “É um autêntico ponto de macumba com que os adeptos salvam Ogum.”
Pois o orixá guerreiro, frequentemente associado às forças armadas, “é militar”, como diz um dos cantos dedicados à manifestação praieira de sua falange, o “Ponto de Ogum Beira-Mar”, gravado em 1955 pelo conjunto Os Irapurus. E assim o General da Banda – ou da Umbanda, como é citado em outros pontos e em pelo menos um samba (“Ogum general de umbanda”) – tornou-se uma das divindades mais populares das religiões de matriz africana no Brasil, sincretizado com São Jorge (no Rio de Janeiro) ou Santo Antônio (na Bahia).
O jornalista Edigar de Alencar informa, no livro “O carnaval carioca através da música” (Freitas Bastos, 1965) que, quando foi gravada em disco, “General da Banda” já era “conhecida em alguns lugares do estado do Rio”. Já o professor e escritor Luiz Antonio Simas, em sua coluna n’o Globo (28-12-2017), alarga suas origens: trata-se de uma “louvação a Ogum e evocação das rodas de pernada e batucadas”.
É que o compositor Alcebíades Barcelos, o Bide, em entrevista ao volume da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira” (Abril Cultural, 1979) dedicado ao Estácio, contou que, após desfilarem no carnaval, a turma de sambistas “ia fazer batucada na Praça Onze”, onde “cantava uns estribilhos, como o ‘General da Banda’, e ficava o tempo todo nisso, acompanhando na palma ou no pandeiro”.
Quem também fazia parte deste núcleo de sambistas do Estácio era Tancredo Silva, figura central do trio de autores de “General da Banda”. Nascido em 1905, na cidade de Cantagalo (RJ), vivia no bairro — mais especificamente no Morro de São Carlos — desde a adolescência, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Com Bide, Ismael Silva, Nilton Bastos e outros, fundou a Deixa Falar (1928), eternizada na história como “a primeira escola de samba”.
Também teve um importante papel religioso: era “o Papa Negro da Umbanda”, como define o sacerdote umbandista e escritor Mario Filho em “Tata Tancredo da Silva Pinto: pequena biografia”, texto de 2010 no qual destaca também a importância do sambista-babalaô como “organizador do culto omoloko no Brasil”, em referência à vertente da umbanda que a reaproxima das origens afro, liderada por ele a partir dos anos 1950.
Pois foi por esta mesma época, quando intensificaram-se as perseguições à umbanda pelo Brasil, que Tata Tancredo – maneira como é chamado com frequência na literatura dedicada ao tema, sendo “tata” o equivalente a pai nos idiomas quimbundo e quicongo – tornou-se uma das principais vozes na defesa dos umbandistas.
Tancredo Silva em três reproduções de retratos da revista O Cruzeiro: da esquerda para a direita, nos cliques dos fotógrafos Ayrton Quaresma (na edição de 12-02-1975), Jorge Roberto (21-02-1973) e Flávio Damm (08-04-1950) / Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Para promover tal defesa, liderou eventos de grande repercussão midiática, como o encontro “Você sabe o que é macumba?”, que reuniu dezenas de milhares pessoas no Maracanã (13-05-1965) e a “Festa da Fusão”, uma gira feita em pleno vão central na Ponte Rio-Niterói (30-04-1975), abençoando a fusão entre os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
E o réveillon da praia de Copacabana — hoje animado por extensa programação de shows (de artistas gospel inclusive) e lotado por milhões de pessoas — começou por iniciativa de Tata Tancredo. Foi nesse mesmo começo dos anos 1950, quando as festas para Iemanjá, antes realizadas em 2 de fevereiro (como em Salvador) passaram a ser feitas em 31 de dezembro. A tradição se manteve desde então e, a partir da década de 1980, enfeitou-se também de fogos de artifícios e outras atrações em voga até os dias atuais.
“O furdunço não excluía ninguém. Era bonito ver a orla ocupada pelos terreiros e a noite iluminada por velas”, observa Luiz Antônio Simas, ainda em sua coluna no jornal O Dia. “Conheço ateus, católicas, crentes, budistas, flamenguistas, tricolores, bacalhaus e botafoguenses que, por via das dúvidas, garantiam ano bom recebendo passes de caboclos e pretas velhas nas areias, com direito a cocares, charutos e sidra de macieira.”
Pois todas estas iniciativas — e tantas outras — estavam ligadas à Confederação Espírita Umbandista do Brasil, que Tancredo fundou em 1952, “com a finalidade de restabelecer a tradição antiga, em toda sua força e pureza primitiva, ou seja, a origem africana da umbanda”, na definição de Mario Filho. A história desta fundação está ligada a outra, da Federação Brasileira das Escolas de Samba, que ele ajudou a criar em 1947. O episódio foi contado por ele a Ornato José da Silva, que transcreveu sua fala no livro “O culto omoloko: os filhos de terreiro” (Rabaço Editora, 1983):
“Esse episódio passou-se na casa da minha tia Olga da Mata. Lá arriou Xangô, no terreiro São Manuel da Luz, na Avenida Nilo Peçanha, 2.153, em Duque de Caxias. Xangô falou: – ‘Você deve fundar uma sociedade para proteger os umbandistas, a exemplo da que você fundou para os sambistas, pois eu irei auxiliá-lo nesta tarefa’. Imediatamente tomei a iniciativa de fazer a Confederação Umbandista do Brasil, sem dinheiro e sem coisa alguma.”
Os primeiros recursos vieram justamente com “General da Banda” e o sucesso do disco de Blecaute, “que me deu algum dinheiro para dar os primeiros passos em favor da Confederação Umbandista do Brasil”, como contou Tata Tancredo, ainda no depoimento a Ornato José da Silva. Se ele compôs o ponto (depois samba) no Estácio da década de 1920 ou, mais provavelmente, se resgatou o velho refrão tradicional, dando-lhe acabamento para ser gravado, não se sabe.
Sabe-se, no entanto, que o samba – assinado por Tancredo em parceria com seu grande amigo José Alcides (vulgo “Rosa Branca”) e o maestro Sátiro de Melo – voltou à boca do povo. No concurso de músicas carnavalescas promovido pela Prefeitura no Teatro João Caetano (06-02-1950), “General da Banda” esteve entre os sambas premiados pelo júri, classificado em 3º lugar, em empate com “A Lapa” (Herivelto Martins e Benedito Lacerda) e “Se é pecado sambar” (Manoel Ferreira).
Resultado, aliás, que foi tema da coluna de Antônio Bento na edição de 09-02-1950 do Diário Carioca. Ao contrário da disputa entre as marchinhas, vencida por “Daqui não saio” (Paquito e Romeu Gentil), que ele avaliou como “aceitável”, o resultado dos sambas lhe pareceu injusto, pois os três sambas classificados em 3º lugar eram nitidamente superiores ao vencedor (“Nega maluca”, de Fernando Lobo e Evaldo Rui) e ao vice-campeão (“A coroa do rei”, de Haroldo Lobo e David Nasser).
No fim das contas, todas as músicas, de alguma forma, saíram vitoriosas na medida em que foram os maiores sucessos do carnaval de 1950 e, ao longo do tempo, permaneceram na memória dos foliões, mesmo com tantas novas concorrentes lançadas a cada ano. E “General da Banda” seguiu relembrada tanto no repertório dos bailes carnavalescos, quando pelas regravações que teve, com destaque para as de Astrud Gilberto (1972), Elis Regina (1973) e Ivan Lins (1974).
Também andou citada nos obituários. Primeiro no de Tancredo Silva (1979), entre os feitos de sua trajetória de sambista e líder religioso. Depois no de Blecaute, com referências ao samba em manchetes de jornais do dia seguinte a sua morte (10-02-1983), como a Ultima Hora (“Morreu o General da Banda”), o Jornal do Commercio (“Carnaval fica sem o seu General da Banda”) e a Tribuna da Imprensa, com direito a um sarro com a já então moribunda ditadura militar (“Morre Blecaute, general de respeito”).
Também não sai do repertório de terreiro, cantado nas giras enquanto houver tambor sendo batido para Ogum, este que é “vara madura que não cai” e segue na ativa.
* Post produzido com a colaboração generosa do pesquisador Barão do Pandeiro.
Imagem principal: o ‘general’ Blecaute devidamente paramentado em registro fotográfico de 1973 reproduzido do Fundo Correio da Manhã / Domínio Público – Acervo Arquivo Nacional.