“Não sou popular no sentido lato, mas sinto que minha música tem persistência, vai ser ouvida no século 21.”
Assim o compositor e pianista Waldemar Henrique imaginava o futuro, como disse ao Jornal do Brasil (01-11-1983), em entrevista sobre sua trajetória artística e sua obra “a meio caminho entre o popular e o erudito”. Imaginou certo: de lá pra cá, a popularidade, no sentido lato, seguiu o ritmo do brega, do tecnobrega e do tecnomelody, entre outras novidades. Mas nem por isso sua música deixou de ser, ainda que passados 30 anos de sua morte, uma das principais expressões artísticas da floresta que lhe serviu de habitat: foi em Belém, há 120 anos (15-02-1905), que nasceu Waldemar Henrique.
Mas, curiosamente, uma parte importante da infância e da adolescência foi vivida longe da Amazônia. O miúdo Zito – como era chamado na família – ainda não tinha dois anos de idade quando ficou órfão da mãe, a paraense de origem indígena Joana da Costa. Já aos cinco foi viver com o irmão na cidade do Porto, sob os cuidados dos avós paternos, a quem os meninos foram entregues pelo pai, o português Thiago Joaquim Pereira, que permaneceu em Belém, às voltas com negócios e o segundo casamento.
Só aos 13 anos, quando retorna à capital do Pará, Zito começa a se entender com o piano, primeiro batucando no instrumento da madrasta, depois em aulas regulares de música – além do piano, aprende bandolim (ensinado pelo pai), flauta, violino e violoncelo. Além do encontro com a música, o período ficou marcado pelo encanto com a Amazônia e sua “natureza maravilhosa”. “Me tomei de um grande amor por essa natureza, porque chegava em casa, depois de muitos anos fora”, conta no documentário “Waldemar Henrique canta Belém” (Miguel Faria Jr., 1977). “Porque em Portugal não me sentia em casa.”
Até que as notas dissonantes no boletim escolar levam o pai a suspender as aulas de piano do rapaz, que ainda assim persiste. Aos 17 anos, faz a “Valsinha do Marajó” (originalmente intitulada “Olhos verdes”), primeira de muitas composições, como as que passa a criar para o teatro. À noite, toca na Pensão Zezé – famoso cabaré da Belém dos anos 1920 – com um violinista que, à luz do dia, era seu colega no Banco Moreira Gomes & Cia. Emprego formal, como ditava Thiago Joaquim ao filho artista: “Piano não é para homem, é para moça. Vamos trabalhar”, exigia o velho, como se lê em “Waldemar Henrique: o canto da Amazônia”, de Claver Filho (Funarte, 1978):
Felizmente, foi acolhido pelo maestro italiano Ettore Bosio, que em 1929 assumiu a direção do Conservatório Carlos Gomes, onde nosso projeto de bancário tornou-se ainda mais pianista. Em agosto de 1933, ao dar o primeiro recital com repertório inteiramente de sua autoria, encheu os olhos da plateia que lotava o Palace Teatro e do crítico E. Souza Filho, do jornal A Semana, que considerou vitoriosa a apresentação de Waldemar Henrique. “Se em vez de musicar aqui, desse expansão a seu gênio criador nas plagas sulistas, já estaria gravando o nome em letra de forma por toda parte.”
Waldemar Henrique em três partituras: a primeira composição ("Valsinha do Marajó"), a primeira lenda amazônica ("Foi boto, sinhá!") e o primeiro sucesso ("Minha terra") . Reproduções da internet
Waldemar, que já vislumbrava a possibilidade de mudança para o Rio de Janeiro desde junho de 1930, quando visitou a então capital do país, entendeu o elogio como um recado. Em novembro de 1933, muda-se enfim para “as plagas sulistas”, instalando-se num apartamento na Cinelândia, onde defende seu sustento como professor de piano. Aos poucos, torna-se conhecido pelos cariocas, seja como compositor cantado por Gastão Formenti na Rádio Mayrink Veiga, seja nos recitais que passa a fazer pela cidade com a irmã caçula, a cantora Mara da Costa Pereira.
Pois Mara, que era filha do segundo casamento do pai de Waldemar, acaba sendo uma figura decisiva na projeção da obra do irmão. Não só pela “magia de sua voz privilegiada”, como por ser “a mais legitima cantora da música regional” amazônica, como definiu o crítico Fernando Tasso n’O Estado do Pará (18-08-1933). Com ela, o compositor percorre o circuito radiofônico da capital, com apresentações recorrentes nas rádios Clube, Philips e Cruzeiro do Sul, mostrando “a magia, o feitiço bem brasileiro” de seu repertório, como anotou Benjamin Lima no Jornal do Brasil (20-11-1934).
Quando não está trabalhando, Waldemar segue empenhado nos estudos musicais, agora com mestres como Newton Pádua (harmonia, contraponto e fuga), Lorenzo Fernandez (composição) e Barroso Neto (piano). Aprimora a base de concertista que seguirá com ele tanto nos recitais quanto em suas composições, frequentemente descritas como fronteiriças entre a música de concerto e o folclore. Já os estudos de regência serão menos aproveitados do que gostaria, mas por limitações físicas: sofria de artrite nas mãos e era “tremendamente míope”, como se define no documentário de Miguel Faria Jr.
“Waldemar Henrique é o primeiro compositor que tem a ousadia de fazer-se garimpeiro do rio-mar. Em sua obra sente-se toda a beleza misteriosa, inquietante da Amazônia, principalmente quando é Mara, uma cantora irmã do compositor, que a interpreta”, publicou a revista O Cruzeiro (05-10-1935), em texto não assinado, como que dando sentido à missão da qual o pianista se dizia portador ao chegar na cidade – ser o “mensageiro da Amazônia”.
“Constatei que a Amazônia, já naquela época, era uma curiosidade universal”, dirá Waldemar ao Diário do Pará (15-02-1990), ao relembrar o interesse crescente das plateias que os aplaudiam nos cassinos – o Atlântico, o Urca e o Copacabana – onde ele e Mara viram atrações cada vez mais frequentes. “Eu não gostava dessa vida, mas nos dava nome”, dirá o pianista ao JB (14-04-1979). “Nem o Theatro Municipal, na época, tinha o gabarito dos cassinos.”
Além da noite carioca, Mara e Waldemar excursionam com sucesso pelo Brasil e pela Europa: em maio de 1949, apresentam-se em Lisboa, no Porto, em Madri e Paris, sendo que nesta última cidade chegam a ser convidados a ficar de vez. “Eu tinha um emprego na Rádio Roquete Pinto e fiquei com medo de perdê-lo. E ela danada, porque eu deixara Paris por um empreguinho vagabundo”, contou o pianista (JB, 14-04-1979), que nessa ocasião vinha retomando os trabalhos com a irmã, cada vez mais afastada da música desde 1939, quando se casou com o corretor de imóveis Jayme Ferraz.
A cantora Mara num retrato da revista O Cruzeiro (05-10-1935) e na capa do único disco em que gravou composições de Waldemar Henrique (reprodução do site Discogs)
Curiosamente, o único 78 rpm gravado por Mara (1937) não tem composições do irmão, mas de Capiba – não fosse pelo dez polegadas “Brésil, nos amours”, lançado pelo selo francês CID com o dueto em quatro faixas, simplesmente não haveria qualquer registro fonográfico de composições de Waldemar Henrique na voz de sua principal cantora. No mesmo ano do lançamento deste disco (1955), quando o compositor retornou à Europa para se apresentar em Lisboa, Madri e Paris, já tinha outra partner, a cantora carioca Maria d’Apparecida.
Outras vozes, no entanto, se fizeram presentes na discografia do compositor paraense, a começar pelo carioca Jorge Fernandes – um arquiteto de formação que seria descrito na imprensa como “o homem que tem uma lágrima na voz”. É dele a gravação do primeiro sucesso de Waldemar Henrique, a canção “Minha terra”, que o maestro Heitor Villa-Lobos incluiria entre as dez canções mais populares do Brasil. Saiu em disco em 1934, mesmo ano em que outras seis composições do pianista paraense lançadas em 78 rpm marcaram sua estreia fonográfica.
Este sol, este luar
Estes rios e cachoeiras
Estas flores, este mar
Este mundo de palmeiras
Tudo isto é teu, ó meu Brasil
Deus foi quem te deu
Ele por certo é brasileiro
Brasileiro como eu
Jorge Fernandes foi também o cantor das primeiras gravações de outras obras de Waldemar Henrique, como a chula marajoara “Quiriru” e o “Coco peneruê” (ambas de 1943), e outras duas lançadas em disco em 1950: o ponto “Abaluaiê”, que une motivos folclóricos a um tema de candomblé, e “Trem de Alagoas”, canção – classificada como “Impressão de viagem” no selo do disco – com versos do folclorista pernambucano Ascenso Ferreira.
Mas o intérprete mais recorrente nesta fornada inicial de gravações da obra de Waldemar Henrique é o já citado Gastão Formenti, paulista de Guaratinguetá cujo nome é presente também nas artes visuais, como autor de pinturas e vitrais. Pois é sua a voz que se ouve na gravação original de “Boi bumbá” (1935), batuque que o patrono da pesquisa musical brasileira, Mário de Andrade, classificou como “a mais bela canção folclórica do Brasil”.
Também no canto seresteiro de Formenti foram lançadas as românticas “Cabocla malvada” (com letra de Vladimir Emanuel), “Meu último luar” e “Noite de São João”, todas em 1934. Do mesmo ano é o batuque “Tem pena do nego”, gravado com acompanhamento da Orquestra Victor Brasileira (dirigida por Pixinguinha) e composto para uma peça de Antônio Tavernard, autor da letra, com o nome original de “Tem pena da nega”. Já em 1937 saiu a primeira gravação de “Chorinho”, híbrido de choro com seresta letrado por Bruno de Menezes.
Nesta leva inicial de lançamentos fonográficos estavam também as lendas amazônicas – conjunto de músicas que, a exemplo das canções praieiras de Dorival Caymmi, formam a porção mais expressiva da obra de Waldemar Henrique. Uma série iniciada ainda em Belém, com a toada amazônica “Foi boto, sinhá!”, outra da parceria com Antônio Tavernard. Quem a lançou em disco foi Gastão Formenti (1934), que também deu voz à canção “Cobra grande” (1935), esta composta já no Rio de Janeiro e considerada a segunda das lendas amazônicas.
Quem se entusiasmou com tais novidades amazônicas foi Mário de Andrade, que Waldemar conheceu em 1935, numa excursão que fez com Mara a São Paulo, e por quem foi incentivado a aprofundar seu olhar sobre “as raízes do folclore brasileiro, deixando de ser subserviente ao folk americano”, como contou ao JB (14-04-1979). “Tive um contato grande com ele, espécie de professor de nacionalismo na música”, recordou. “Percebi como suas ideias eram inteligentes e fiz uma grande pesquisa de âmbito nacional, em especial na Amazônia.”
Ainda assim, não precisava recorrer a livros ou outras fontes quando criava novos temas amazônicos. “Quando fui me dedicar à composição, aquelas coisas todas fluíam em mim sem muito esforço”, contou à repórter Marlicy Bermeguy no especial “Waldemar Henrique da Costa Pereira" (TV Cultura/PA, 1989), ao relembrar os passeios de barco que, na infância, costumava fazer pelo rio a convite de um tio, que aproveitava para lhe contar histórias como a do uirapuru, do boto e da matintaperera, entre outras lendas. “Tudo era verdadeiro para nós.”
O comprometimento com a música nacional e a valorização dos símbolos e mitos do país serão outra marca de sua obra. Não por acaso, o musicólogo Vasco Mariz, no livro “A canção brasileira de câmara” (Livraria Francisco Alves, 2002), alinha seu nome aos de Radamés Gnattali e Camargo Guarnieri, entre outros, na lista dos compositores da terceira geração nacionalista.
O berço amazônico também reaparece entre as memórias que ficaram registradas no livro “Waldemar Henrique: só Deus sabe porque” (Fundação Cultural do Pará, 1989): “Estou perto do folclore apenas porque desde criança me acostumaram a gostar dos folguedos juninos, dos pastoris natalinos, dos cocos e emboladas praieiras, das chulas marajoaras, dos carimbós, dos bumbás”, elenca o compositor. “Puseram-me agoniado com as histórias de cobra grande, uiara, curupira, atraíram-me para os arraiais do Divino, pescarias, enfim, toda aquela magia fantasmagórica em que vivemos atolados na Amazônia daquele tempo.”
Já a lenda de “Tamba tajá”, editada em partitura em 1934, só em 1949 foi lançada em disco, pela cantora lírica – também violinista – Antonieta Fleury de Barros. Regravada por vozes diversas nas décadas de 1950, 60 e 70, a música – considerada a número 3 das lendas amazônicas – seria mais um sucesso de sua obra, especialmente depois do relançamento na voz de Fafá de Belém, que deu o nome da música a seu LP de estreia, lançado em 1976.
Tamba tajá me faz feliz
Assim o índio carregou sua macuxi
Para o roçado, para a guerra, para a morte
Assim carregue o nosso amor a boa sorte
Também em 1949 saiu a primeira gravação da canção “Senhora Dona Sancha”, parceria de Waldemar com Gastão Vieira interpretada pela mesma Antonieta Fleury de Barros no lado B do disco de “Tamba tajá”. E em 1951 foi a vez do lançamento fonográfico da sexta lenda amazônica, “Curupira”, levada ao disco pela indispensável cantora, violeira e pesquisadora Inezita Barroso. No restante da década de 1950 predominaram as regravações de obras do compositor, exceto pelo samba “Cartaz”, cantado por Carlos Bruno (1955), e a cantiga “Hei de morrer cantando”, que Roberto Amaral lançou em 1957.
Outras gravações originais de obras de Waldemar Henrique também saíram na década de 1950, mas só em LP. Como “Matintaperera”, lenda amazônica de número quatro, lançada em 1956 em um disco todo de composições do pianista cantadas pelo incansável Jorge Fernandes. E “Uirapuru”, a quinta das lendas, que antes de se tornar uma das composições mais regravadas de Waldemar, saiu do ineditismo fonográfico em 1958, num disco da cantora Vanja Orico.
Depois do disco-tributo de Jorge Fernandes, só em 2001 seria lançado outro álbum todo de obras de Waldemar Henrique: “Fiz da vida uma canção”, da cantora paraense Andréa Pinheiro. Antes disso, suas composições ocuparam sete das 16 faixas do disco “O canto da Amazônia”, da soprano Maria Lúcia Godoy (MIS, 1969), e entraram em duas homenagens divididas: nos LPs “Nova História da Música Popular Brasileira – Waldemar Henrique / Hekel Tavares” (Abril Cultural, 1979) e “Radamés Gnattali / Waldemar Henrique – 80 anos de música brasileira” (BASF, 1986).
O veterano Waldemar Henrique / Reprodução da Rede Pará
Durante as três décadas vividas no Rio de Janeiro, jamais deixou o Pará, que seguiu inspirando novas obras e recebendo suas visitas para recitais ou prêmios. Até que em 1964, após um convite oficial recebido do governador, encarregou-se de organizar o coral do estado do Pará e a saudade bateu diferente. “Pensei em ficar um ano e estou há treze. Até hoje”, contou ao JB (14-04-1979). A mudança de mala e cuia se deu nos primeiros meses de 1966, quando assumiu a direção do Theatro da Paz, o principal de Belém, onde permaneceu até 1981.
Antes disso, em 1979 foi homenageado com a inauguração do Teatro Experimental Waldemar Henrique, instalado no edifício do antigo Cinema Radium, próximo ao Theatro da Paz, com capacidade para 240 pessoas. Nunca se afastou das atividades musicais ou da cena musical de Belém, apesar dos problemas de audição que, com o avanço da idade, somaram-se aos de visão, piorados com o tempo. “Gostaria de escrever uma peça importante. Um bailado ou uma ópera”, confessou ao repórter Mauro Bonna em sua última entrevista, em 1994. “Mas isso tudo são sonhos. O que fica mesmo, na realidade, é que Deus me ajudou muito.”
Quando faleceu, pouco depois de completar 90 anos (27-03-1995), os obituários ressaltaram os serviços prestados à música brasileira e, em especial, à paraense. “Assim como Luiz Gonzaga, que colocou o Nordeste no mapa da música brasileira, Waldemar Henrique fez a Amazônia chegar aos ouvidos do Sudeste”, destacou o JB (29-03-1995), não sem ressaltar o contraste entre a grande obra deixada pelo compositor e a volatilidade da música comercial naquele fim de século 20: “Deixou um legado regionalista entre o erudito e o folclórico hoje atirado à margem pelas pororocas do mercado.”
Imagem principal: Waldemar Henrique em 1949 / Reprodução da internet