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    ‘A idade não pesa’, garante Haroldo Costa, ao chegar aos 95. Já as saudades...

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Jovem, que prazer revê-lo!”

    Com a voz e o sorriso marcantes, Haroldo Costa fez as honras da casa já no portão azul, que ele mesmo abria, surgindo pela porta, com seu metro e oitenta, no meio do muro coberto de hera. Como nas outras visitas, não consegui fingir costume diante de sua figura totêmica, mas bem que tentei. Agradeci pelo “jovem” da saudação de boas-vindas (“Estou a um ano dos 50, mestre...”) e ele, risonho, ajudou a quebrar o gelo: “Mas não se anime, não, que para mim quase todo mundo é jovem.”

    O humor do doce e altivo anfitrião se explica: chegando aos 95 anos neste dia 13 de maio, Haroldo vive o presente sem grande cerimônia. “Sabe que a idade não está me pesando?”, confidencia o veterano ator, produtor, escritor, agitador cultural e diretor de rádio e TV. Queixa mesmo, só dos buracos nas calçadas: “Morro de medo deles”, diz. “Desde um tombo que levei, há alguns dias, só vou à rua de muleta. É ela na mão e os olhos fixos na calçada de pedras portuguesas.”

    Quando está em casa, dedica-se aos últimos ajustes na “História do Brasil na boca do povo”, oitavo livro de sua autoria, que sairá ainda neste ano compilando histórias e personagens que não faziam parte da historiografia oficial até virarem tema de sambas-enredo. Como, por exemplo, “Chica da Silva”, a composição de Anescar Pereira Filho e Noel Rosa de Oliveira que embalou o histórico título da Acadêmicos do Salgueiro em 1963.

    “Foi este samba que me tornou salgueirense”, recorda Haroldo, que naquele ano fazia parte do júri do desfile das escolas de samba. “Eu gostava de todas elas, mas aquilo foi um negócio tão surpreendente, que ninguém ficou imune. A beleza do dia amanhecendo por trás da Candelária, o Salgueiro dando aquele espetáculo na avenida e eu, na minha cabinezinha de jurado, chorando copiosamente. Não deu para controlar.”

    Os olhos chegam a marejar enquanto recorda o primeiro encantamento pela escola que, anos depois, biografou no livro “Salgueiro: academia do samba” (Editora Record, 1984). Antes disso, Salgueiro para ele não passava do morro citado em “Chão de estrelas”, obra-prima de Orestes Barbosa e Silvio Caldas. Ou mesmo a escola que havia levado à avenida “Brasil, fonte das artes”, belo samba-enredo de 1956 de Djalma Sabiá, Nilo Moreira e Éden Silva – o Caxiné, este também autor de “Rosa Maria” (com Aníbal Silva), sucesso de 1948 na voz de Gilberto Alves.

    A fala mansa e pausada com que revive suas memórias contrasta com o vozerio de crianças que vem da Escola Municipal Manoel Cícero, localizada do outro lado da rua pacata onde Haroldo e sua companheira Mary Marinho vivem há mais de 50 anos, numa casa no bairro da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. E assim, em pleno recreio da meninada, nosso contador de histórias rebobina até os dez anos de idade na conversa que se desenrola na mesinha da varanda.

    Haroldo Costa na porta de casa, aos 95 (em foto de Pedro Paulo Malta), e num registro de 1964 (aos 34 anos) do Arquivo Nacional

    Estamos em 1940, ano das primeiras lembranças que ele guarda do carnaval carioca, no bairro boêmio da Lapa, onde a família morava. “Meu pai gostava muito de carnaval, tanto que tinha um bloco que saía da Rua Joaquim Silva, passava pelos arcos e chegava à Cinelândia, onde era o epicentro daquela farra todo”, descreve. “Era o Bloco das Meninas, todo com homens vestidos de mulher, com saia curta. Quem saía neste bloco era o Henricão, primeira pessoa do samba que eu conheci.”

    O impacto deve ter sido grande para Haroldo: justamente neste comecinho da década de 1940, Henricão emplacava seus dois maiores sucessos de compositor – ambos feitos em parceria com Rubens Campos e lançados em 1942. Um deles “Está chegando a hora”, samba de carnaval com a melodia de “Cielito lindo” (canção do folclore mexicano) e o outro “Só vendo que beleza”, clássico do samba-choro muitas vezes regravado. “Quem lançou esses dois sambas foi a Carmen Costa, grande cantora que fazia dupla com ele e também conheci por essa época.”

    Haroldo veio morar na Lapa quando chegou de Maceió, onde foi criado desde os dois anos de idade, quando, após a morte de sua mãe, D. Eurides, foi entregue pelo pai viúvo aos cuidados dos avós paternos e de sua tia Isabel, todos católicos fervorosos. “Missa era coisa muito séria e fui sacristão na Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes. Faltou pouco para o seminário”, revela Haroldo, hoje praticante do candomblé.

    Tinha dez anos na volta ao Rio de Janeiro, onde se juntou à nova família do pai, Luís Costa, então alfaiate na Rua Joaquim Silva, nº 97, onde moravam todos. “Já viu como eu andava arrumadinho, né?”, salienta Haroldo, ao relembrar os tempos em que vivia como o “Tarzan” da obra de Noel Rosa e Vadico.

    Nos momentos de descanso da alfaiataria – onde Heitor dos Prazeres era habitué – o programa preferido da família era ir ao Cinema Colonial, ali perto, onde hoje está a Sala Cecília Meireles. Gostava especialmente dos filmes musicais, “aqueles que quase sempre tinham a mesma história: um sujeito endinheirado que chegava em algum lugar e procurava artistas para montar um show”, salienta Haroldo, que assim via artistas do rádio como Francisco Alves – estrela do longa “Laranja da China” (um dos mais vistos de 1940) – cantando sambas como “Despedida de Mangueira”.

    “O jornaleiro da banca em frente ao Colonial me emprestava gibis e esse era outro passatempo que eu adorava: ler ‘Popeye’ e ‘Flash Gordon’ na escada do cinema, antes de começar a sessão”, conta nosso anfitrião, que também exercitava a imaginação ouvindo rádio: quando o aparelho estava sintonizado na Nacional, divertia-se ouvindo o humorista Silvino Neto interpretando a personagem Pimpinela em quadros humorísticos como “Um drama caseiro”, felizmente registrado em disco.

    Gostava tanto de rádio, que volta e meia desviava-se do rumo do Colégio Pedro II, onde estudava, para comparecer, de uniforme e tudo, em seus auditórios preferidos: os da Nacional, da Tupi e da Mayrink Veiga. Outras vezes, escapulia até o Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, para ver in loco o “Trem da alegria”, programa de variedades apresentado por Héber de Bôscoli, Yara Salles e Lamartine Babo, o genial autor de tantos sambas, marchinhas e petardos românticos como “Eu sonhei que tu estavas tão linda”, sua valsa preferida.

    Já da velha “Praça Onze”, cuja destruição deu origem a um dos sambas mais cantados de 1942 e por onde chegou a bater pernas antes das primeiras marretadas, Haroldo não guarda recordações. Lembra-se, isso sim, do amigo Grande Otelo, autor daquele samba (com Herivelto Martins) e, em suas palavras, “um dos seres humanos mais brilhantes que conheci”. E não só pelo talento em cena: “Otelo era muito ciente do valor de sua arte. Não permitia que levassem vantagem sobre ele ou sobre seus companheiros de trabalho. Um líder nato.”

    A definição é próxima à que Vinicius de Moraes escreveu num texto sobre o próprio Haroldo Costa: “A compostura do seu comportamento humano e artístico, aliado a uma inteligência arejada e despreconcebida, fazem dele, também, um autêntico líder de sua gente”, define o poeta no livro “É hoje!” (1978), no qual os textos de nosso multiartista nonagenário acompanham os magníficos desenhos do cartunista Lan sobre o carnaval carioca.

    Uma liderança construída desde os tempos da política estudantil – do grêmio do CPII à Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (a AMES), que chegou a presidir, e desta ao Teatro Experimental do Negro, onde iniciou sua trajetória nas artes cênicas, na segunda metade dos anos 1940. Até que, com outros dissidentes, funda o Teatro Folclórico Brasileiro (1950), depois rebatizado como Brasiliana (1953). Com este grupo, faz um espetáculo sobre o folclore brasileiro que, numa turnê entre 1950 e 55, percorre 25 países da América do Sul e da Europa.

    Na bagagem vieram novidades como a canção “Roda a moenda”, sua estreia de compositor, feita para um dos quadros do show itinerante, cantada em cena por Nelson Ferraz. Já em disco quem cantou pela primeira vez foi Inezita Barroso, ainda turbinada pelo sucesso recente de “Ronda”. Durante a meia-década na estrada Haroldo também fortaleceu sua relação com Maria Luiza – em artes Mary (das Irmãs) Marinho, passista que ele namorava desde o fim dos anos 1940, ao som de “Moonlight serenade” e outros embalos com os quais a Orquestra Tabajara animava os bailes nos clubes cariocas.

    No mesmo ano em que se casaram (1956), Haroldo ganhava o maior papel de sua carreira de ator: o protagonista de “Orfeu da Conceição”, peça de Vinicius de Moraes que transpunha o mito grego de Orfeu para uma favela carioca. “Eu era amigo de Vinicius desde Paris, onde ele servia como adido cultural na embaixada brasileira quando passamos por lá com a Brasiliana”, lembra o artista, voltando a 1954. “Durante uma feijoada que ofereceu ao elenco, ele me levou até o escritório dele e me mostrou um texto. Era o ‘Orfeu’, que eu não fazia ideia de que dali a algum tempo faria parte da minha vida.”

    Entre as alegrias da temporada, realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, estava a companhia de um ídolo no elenco da peça: Ciro Monteiro, que interpretava o pai de Orfeu, Apolo, segundo Haroldo “um papel que não exigia muito, mas que ele fez com a maior dignidade”. “Eu o conhecia desde a Rádio Mayrink Veiga, onde trabalhei como datilógrafo, lá no início da minha vida profissional e ficava vidrado ouvindo-o cantar sucessos como ‘Se acaso você chegasse’. Para mim, é o maior cantor de samba de todos os tempos.”

    Outra convivência inesquecível da temporada de “Orfeu da Conceição” foi a que teve com Luís Bonfá, o compositor e ás do violão que tocava na orquestra do espetáculo. Alguns anos depois, os dois se tornariam parceiros em “Rancho do Orfeu”, feita por eles para o “Violão de Bonfá”, atração dominical da TV Continental. O programa foi um dos muitos que Haroldo dirigiu em sua longa trajetória televisiva – com destaque para os primeiros programas da TV Globo e “A buzina (depois Cassino) do Chacrinha”.

    Haroldo Costa no traço de Carlos Scliar e caracterizado como Orfeu, em fotografia de José Medeiros /  Reproduções do 'Cancioneiro Orfeu' (Jobim Music, 2003)

    Já em sua única experiência como diretor de cinema – “Sou cineasta de um filme só”, brinca – marcou outro golaço. Para uma das cenas do longa “Pista de grama”, no qual trabalhou também como roteirista, Haroldo encomendou ao amigo Vinicius uma música para ser cantada por Elizeth Cardoso. O poeta, que vinha trabalhando com Tom Jobim para um disco a ser lançado pela cantora naquele mesmo ano de 1958 (o icônico “Canção do amor demais”), respondeu com “Eu não existo sem você”, ainda cheirando a tinta, que Elizeth interpreta no filme acompanhada por João Gilberto ao violão.

    “Elizeth Cardoso era uma artista incrível, uma pessoa maravilhosa e um grande caráter”, define Haroldo, que a conheceu por meio de uma tia paterna de Mary, Carminha (Carmem Marinho), muito amiga de Elizeth e tantos músicos da época. “É minha cantora preferida – basta ouvi-la interpretando ‘Canção da manhã feliz’ para concordar comigo”, desafia. “Sem contar que é corajosa: teve a coragem de gravar um samba meu, ‘Mar vermelho e branco’, de parceria com Sílvio Cesar.”

    Por intermédio de Carminha – a Carminha Rica, personagem desbocada de tantas crônicas de Hermínio Bello de Carvalho – conheceu também Pixinguinha, “um tipo caladão, mas bastava um uisquezinho para desandar a falar, inclusive com os braços”. “E como era bonito o som que ele tirava do saxofone, fosse no ‘Carinhoso’, fosse nos outros choros maravilhosos que ele fez”, salienta Haroldo, que pôde estreitar sua relação com o mestre do choro durante os anos em que trabalhou como produtor e apresentador da Rádio Mec, à frente de programas como o musical “Estampas Brasileiras”.

    Foi também a tia de Mary quem o encaminhou para um dos templos da boemia carioca na década de 1950. “Assim que eu voltei da Brasiliana, ela me apresentou ao Fernando Lobo, que me levou ao Villarino, onde conheci todo mundo que você possa imaginar: do Tom Jobim, que nessa época vivia de um lado para o outro cheio de partituras debaixo do braço, ao Pablo Neruda, com quem conversei lá”, gaba-se. “Sérgio Porto, que também conheci lá, também virou um bom amigo, a ponto de me convidar para substituí-lo durantes suas férias, escrevendo – no estilo dele – a coluna ‘Stanislau Ponte Preta’, na Ultima Hora.”

    Por indicação de Sérgio Porto chegou também à TV Rio, onde atuou como diretor e produtor do programa Noite de Gala. “Num dia 13 de maio fizemos uma edição do programa com o elenco inteiramente negro e o resultado foi incrível. Teve figurinos inspirados em Debret, o sociólogo Guerreiro Ramos entrevistando o líder da Revolta da Chibata, João Cândido, o Almirante Negro”, enumera, orgulhoso, Haroldo Costa. “E ainda diversos números musicais, entre eles Ataulfo Alves, com aquela elegância toda, cantando com suas pastoras.”

    Do amigo Ataulfo, Haroldo pegou emprestado o nome de um de seus sucessos, “Na cadência do samba” (parceria com Paulo Gesta), como título de um dos livros – publicado pela editora Novas Direções no ano 2000 – em que conta a história do samba. Como em 2021, quando fez “A história do samba em quadrinhos”, na esperança de que a saga do gênero musical – aqui ilustrada pelo cartunista Ykenga – aguce a imaginação do público infanto-juvenil na mesma medida em que os gibis aguçavam a sua, lá no comecinho da década de 1940.

    “Contar histórias é um trabalho permanente, desses que precisam ser feitos de tempos em tempos, para que essas histórias não se percam. Assim como elas ainda serão contadas outras vezes no futuro”, ensina Haroldo. “É assim também na militância antirracista, uma luta de que participo há muito tempo. Claro que ainda há muito a ser feito, mas felizmente já tivemos avanços: hoje ofensas são julgadas no rigor da lei e há uma consciência dos nossos direitos como não havia no passado, quando éramos ‘os diferentes’ e ficava tudo por isso mesmo.”

    Até que o vozerio das crianças ficou mais alto e entendi que o horário de saída delas podia ser o meu também, afinal nosso entrevistado, já meio cansado, ainda tinha que voltar ao texto do novo livro. “Gosto de chegar a essa idade ativo, com afazeres, prazos a cumprir e conversas como essa nossa, que reavivam a memória”, arrematou o anfitrião. “Só é chato sentir saudade de tanta gente, porque gente querida é o que não falta na memória de quem chega à idade que eu cheguei.”

    “Algum plano para os cem?”, arisquei, de leve, já a caminho da porta.

    “Quem sabe a gente toma uma birita?”, rebateu, ágil. “Te convido para um uisquezinho.”

    Foto principal: Pedro Paulo Malta

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