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    Amália Rodrigues no Brasil: há 80 anos, a gravadora Continental lançava os primeiros discos da Rainha do Fado

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Português, sim senhor. Mas nascido no Brasil.

    O fado, antes de se tornar a expressão máxima da alma de Portugal, foi muito cantado, tocado, dançado e querido por aqui, do outro lado do Atlântico. Assim nos ensinam pesquisadores-escritores especialistas no tema, como o brasileiro José Ramos Tinhorão, no livro “Fado: dança do Brasil, cantar de Lisboa – o fim de um mito” (Editorial Caminho, 1994), e, mais recentemente, o lisboeta Rui Vieira Nery, autor dos fundamentais “Por uma história do fado” (O Público/Corda Seca, 2004) e “O dengoso fadinho brasileiro” (Museu do Fado/EGEAC, 2025). Este último estabelece como marco inicial da prática fadista em Lisboa as décadas de 1830/40, quando no Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras já se conhecia bem “o legítimo fadinho nacional, a característica dança brasileira” (A Gazeta de Notícias, 19-11-1878).

    Tal afirmação, baseada em farta documentação colhida por Vieira Nery em centenas de periódicos e livros daqui e de lá, desafia a maneira como esta história vem sendo contada ao longo dos anos: o fado teria se originado no período da expansão colonial portuguesa dos séculos XV e XVI, como expressão musical da saudade que Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães e outros navegadores sentiam de Portugal ao singrar oceanos e descobrir terras por toda parte. Uma versão que, segundo o professor, seria uma construção artificial, assim apresentada e difundida de modo a inserir o fado entre os mitos formadores da nacionalidade portuguesa.

    Já quando o assunto é a artista mais conhecida do fado, não há polêmica. Foi no Brasil que Amália Rodrigues fez sua estreia fonográfica, com oito discos de 78 rotações lançados pela gravadora Continental ao longo de 1945 (e no início de 1946). Mas a relação de Amália com o país vinha já do ano anterior, quando a cantora esteve no Rio de Janeiro pela primeira vez, no último trimestre de 1944, quando foi contratada para uma temporada de seis semanas no Golden Room do Copacabana Palace. No entanto, tamanho foi o sucesso da “fadista-ídolo de Lisboa” (Jornal do Brasil, 14-12-1944), que a temporada durou, por fim, dois meses e meio – de meados de outubro ao fim de dezembro daquele ano.

    “Trata-se de uma cantora portuguesa de raros predicados, de nome famoso no broadcasting d’além-mar, e que iria, com a sua arte, mostrar ao público do Rio uma característica da alma de Portugal”, avaliou A Manhã, em sua edição de 17-11-1944. “Foi o bastante para encher, todas as noites, o Golden Room.” Dali a três semanas, o mesmo periódico informava que a artista seguia “encantando a fina e elegante plateia do Copacabana Palace com a sua voz adoravelmente sentimental”, pois, segundo o texto d’A Manhã (10-12-1944) “não é qualquer cantora que dá expressão ao fado”, pois “não é suficiente cantar certo”.

    De fato, a jovem Amália da Piedade Rodrigues já vinha cantando muito mais do que certo desde 1939, quando despontou no Retiro da Severa, tradicional casa de fados de Lisboa onde se apresentou por seis meses. Com o sucesso, aos 19/20 anos, já era atração disputada por outras casas, como o Solar da Alegria, o Café Mondego e o Café Luso, onde, remunerada com “valores nunca antes pagos a um fadista”, segundo o verbete da cantora no site do Museu do Fado, deixava de vez no passado os ofícios com que vinha ajudando no orçamento da família: aprendiz de costureira, operária de uma fábrica de doces e vendedora de frutas.

    Entre cachês e aplausos na noite lisboeta veio a estreia teatral, na peça musical “Ora vai tu!”, encenada em abril de 1940, no Teatro Maria Vitória, dando início a uma série de participações bem sucedidas em revistas e operetas. Logo viriam também as apresentações internacionais, a começar por uma em Madrid (19-02-1943) e, no ano seguinte, a primeira temporada carioca. Não espanta que, nesta última, seu nome aparecesse em letras garrafais nos anúncios de jornal que listavam as atrações – junto com Sílvio Caldas, Quatro Ases e Um Coringa e outros artistas – do cassino do Copacabana Palace.

    “Foram 75 dias de grande alegria, trabalhando num luxuoso cassino perante a melhor sociedade carioca, a qual ficou deliciada com seus fados”, noticiou a agência Associated Press, em texto reproduzido n’O Jornal (04-01-1945), sobre o sucesso brasileiro, apresentações na Rádio Globo – no programa Horas Portuguesas – e no Teatro João Caetano. Neste último, em noite dedicada à Força Expedicionária Brasileira, deixou o palco entre “aplausos delirantes” e pedidos de bis que pareciam “nunca mais terminar”, como se leu no JB (20-12-1944). Assim que retornou a Lisboa, na virada para 1945, nem bem tinha acabado de desfazer as malas e já se falava no retorno de Amália ao Brasil.

    JB, 16-12-1944

    Pois este, de fato, não tardou: em março de 1945 a cantora já estava de volta no Rio de Janeiro, gravando na Continental as músicas de seus primeiros discos, com acompanhamento da Orquestra Portuguesa de Guitarras, dirigida pelo guitarrista Fernando Freitas. Logo chegaram às lojas cariocas os primeiros 78 rotações de Amália Rodrigues, que, surpreendentemente, ainda era inédita no mercado fonográfico de seu próprio país. Isso porque seu empresário, José Melo, era terminantemente contrário à ideia, por temer que o público, uma vez satisfeito em ouvi-la nos discos, simplesmente deixasse de ir aos shows.

    Pois foi no Brasil, onde o fado já se fazia presente desde os primórdios da fonografia e contava com o sucesso recente de intérpretes como os portugueses Manoel Monteiro e Joaquim Pimentel (ambos muito atuantes desde a década de 1930), que o canto de Amália pôde, pela primeira vez, ser ouvido nos toca-discos. A começar pelo 78 rotações que é considerado o primeiro da grande fadista, o Continental 20.002, que trazia no lado A sua interpretação para o fado “Perseguição” (que já havia sido lançado em disco pela cantora Maria Alice) e, no B, o primeiro registro fonográfico do fado “As penas”.

    São bem felizes as aves
    Como são leves, suaves
    As penas que Deus lhes deu
    As minhas pesam-me tanto
    Ai, se tu soubesses quanto
    Sabe Deus e sei-o eu

    Este último, aliás, nasceu de um poema encontrado por Amália num jornal. Os versos estavam erroneamente atribuídos a Guerra Junqueiro (Fernando Caldeira é seu verdadeiro autor) e assim foram creditados no selo do disco, tendo como parceiro o guitarrista José Bacalhau — nome artístico de José Antônio Augusto da Silva, gráfico e taberneiro de profissão. “As penas” é também considerado um marco do encontro do fado com a poesia — a partir daqui, acredita-se que o gênero popular passou a contar com versos mais rebuscados em seu repertório.

    “Os primeiros versos de mais qualidade que cantei foram ‘As penas’”, afirmou a fadista, segundo o jornal Público (27-12-2002). “Vi aquele poema publicado num jornal, gostei e cantei”, relata Amália. “Como o meu poder de escolha era maior, comecei a roubar fados dos livros de poesia.”

    Curiosamente, o outro lado do primeiro 78 rpm de Amália também trazia um erro na autoria: no rótulo do disco, “Perseguição” tem como compositores Carlos da Maia e Adriano dos Reis. Este segundo, no entanto, resulta provavelmente de um erro de edição, já que os versos desta composição são sabidamente — conforme as principais fontes de referência do fado — de Avelino de Sousa, operário, poeta, dramaturgo e autor do livro “O fado e os seus censores” (1912), sobre o papel do popular gênero musical lusitano na difusão dos ideais revolucionários comunistas e anarquistas.

    Ainda a propósito da autoria de “Perseguição”, há outro nome a ser mencionado nesta história: o de Pedro Theotónio Pereira, o embaixador de Portugal na Espanha, que, no show de Amália em Madri (1943), escreveu uma terceira estrofe alternativa depois que ela se recusou a cantar a original, de Avelino, com versos subservientes demais para seu gosto:

    Como sentinela alerta
    Noite e dia sempre esperta
    Na posição de sentido
    Eu sou a todo o instante
    Sentinela vigilante
    Da honra do meu marido

    Já no segundo 78 rotações da série, o Continental 20.003, Amália fez as primeiras gravações dos fados “A tendinha”, do bandolinista Raul Ferrão, e “Sei finalmente”, de Armando Freire (o Armandinho, guitarrista consagrado) e João Linhares Barbosa, o Príncipe dos Poetas, torneiro mecânico de profissão e fundador, em 1910, do jornal Guitarra de Portugal, impresso especializado em fado. O crítico Jorge Júlio Popper, d’O Jornal (25-03-1945), gostou dos “dois fados harmoniosos” cantados por Amália, cujo “gosto na seleção do repertório é conhecido”. “A Continental zelou por uma gravação de primeira classe.”

    O tom elogioso de Jorge Júlio Popper se manteve na crítica ao disco Continental 20.004: “As duas faces agradam, pois as gravações sublinham bem o timbre fino dos meios vocais da artista”, anotou o crítico n’O Jornal de 08-04-1945, sobre as interpretações de Amália para o “Fado do ciúme”, de Frederico Valério (um dos precursores do fado-canção moderno), e para o canto flamenco “Ojos verdes”, composição do cubano Nilo Menendez identificada no selo do disco como “Olhos verdes”. “A sua voz, não volumosa, mas simpática, dispõe dos elementos básicos para tais apresentações, ou sejam, temperamento e estilo.”

    O “Fado do ciúme”, ou “Fado ciúme”, era um dos números de Amália na revista “Boa nova”, encenada pela primeira vez em 1944, em Lisboa, e reeditada no Rio de Janeiro no segundo semestre de 1945, quando foi levada à cena no Teatro República, com roteiro totalmente modificado. Se por aqui a repercussão do espetáculo não foi das melhores (“Por notícias que recebemos, que a ‘Boa nova’ não agradou”, informou o periódico lisboeta Vida Mundial Ilustrada, em 06-12-1945), foram boas as impressões que ficaram da jovem fadista, “uma criatura profundamente simpática”, segundo a crítica do Diário Carioca (31-08-1945).

    Amália, o 'talk of the town', segundo a Revista Rio (dezembro de 1944)

    Pois a série de lançamentos na Continental prosseguiu com Amália cantando os fados “Mouraria”, de autoria desconhecida, “Carmencita”, de Frederico de Brito (ambos no disco 20.006), este também autor de “Passei por você” (com Alfredo Duarte), que ela gravou no 78 rotações 20.007, que trazia, do outro lado, “Los piconeros”, um couplé flamenco dos espanhóis Mostago (Juan Mostazo Morales), Moleda (J. Muñoz Moleda) e Parelé (Ramón Perelló y Ródenas). “O couplé mostra-nos a artista como intérprete de um número alegre e devemos afirmar que gostamos. Timbre, fraseamento, charme, tudo está representado”, avaliou o arrebatado Jorge Júlio Popper n’O Jornal (06-05-1945).

    Já os fados “Troca de olhares”, de João Linhares Barbosa (aqui creditado com seu pseudônimo, Martinho d’Assunção), e “Duas luzes”, de autoria do guitarrista João da Mata com José Marques do Amaral, foram gravados pela intérprete no 78 rotações 20.012 da Continental, o penúltimo da série brasileira.

    Até que, no disco 20.017, vieram gravações de dois sucessos de Amália Rodrigues. Uma delas a primeira de “Sardinheiras”, mais um fado de João Linhares Barbosa, aqui parceiro do diretor musical dessas gravações, o guitarrista Fernando Freitas. No outro lado estava um fado que se tornaria um clássico de seu repertório, “Ai, Mouraria”, de autoria do já citado Frederico Valério com seu parceiro mais constante, o poeta e dramaturgo Amadeu do Vale.

    Ai, Mouraria
    Dos rouxinóis nos beirais
    Dos vestidos cor-de-rosa
    Dos pregões tradicionais
    Ai, Mouraria
    Das procissões a passar
    Da severa em voz saudosa
    Na guitarra a soluçar

    “Ai, Mouraria” foi também um dos pontos altos da temporada carioca da opereta “A rosa cantadeira”, espetáculo que era assinado justamente por Amadeu do Vale (texto) e Frederico Valério (direção musical). Entretanto, diferentemente da revista “Boa nova”, a opereta – que também já havia sido encenada na Lisboa de 1944 – agradou no Teatro República. “E quando chega Amália à cena, toda a plateia fica suspensa, empolgada com a atenção voltada para ela”, anotou o crítico Maurício Ricardo no Jornal do Brasil (20-10-1945). “E Amália canta. Canta de forma singular, como nenhuma outra fadista já cantou.”

    Amália, que também aproveitou a segunda temporada brasileira para se apresentar em seu já conhecido Copacabana Palace, ainda fez mais um disco nesta fornada brasileira: o Continental 20.018, que saiu já em 1946, com mais dois fados da parceria Vale-Valério: “Saudades de ti” (deles com Raul Ferrão) e “Maria da Cruz”. Nestas gravações, assim como no disco anterior (Continental 20.017), a cantora é acompanhada não mais pela Orquestra Portuguesa de Guitarras, mas por Gonçalves Dias (viola) e pelo fiel Fernando Freitas (guitarra).

    Pois ela estava recém chegada a Portugal quando, entrevistada pela revista lisboeta O Século Ilustrado (09-02-1946), falou desta segunda temporada brasileira, da qual saiu satisfeita. Ou melhor: “deslumbrada com a forma como me trataram no país irmão”, como contou ao periódico, que também publicou suas lembranças do primeiro Natal passado longe de Portugal (“foi terrivelmente triste e melancólico”) e da boa acolhida que o público carioca deu ao “Fado do ciúme” e a “Ai, Mouraria”. “Andavam trauteando esses fados pela rua e pediam-me que os cantasse em toda a parte”, confidenciou, entre a queixa e a ironia. “Era um suplício. Uma autêntica praga.”

    Ambos seguiram cantados por Amália ao longo de sua trajetória, juntamente com novos fados que foi acrescentando ao repertório das apresentações que seguiu fazendo em Portugal e no exterior. No entanto, só em 1951 voltou a fazer discos, desta vez em seu país natal, na gravadora Melodia, pela qual lançou oito fados de Frederico Valério, acompanhada pelo próprio com orquestra.

    Amália e o Brasil: a capa do disco gravado com Vinicius de Moraes (reproduzida do Instituto Memória Musical Brasileira) e o fado que o poeta lhe dedicou (Acervo Digital Vinicius de Moraes).

    A relação com o Brasil, no entanto, seguiria por toda a carreira. Foi no “país irmão” que conheceu seu segundo marido, César Seabra, o engenheiro português com quem se casou em 1961, no Rio de Janeiro, e com quem viveu até a morte dele, em 1997. E entre os amigos brasileiros que fez, um dos mais queridos foi Vinicius de Moraes, com quem inclusive dividiu a gravação de um LP, “Amália / Vinicius”, feito a partir do registro sonoro de um sarau caseiro na residência da cantora, em Lisboa, em dezembro de 1968.

    No disco, lançado em 1970 (e proibido pela censura do Brasil, então comandado pela ditadura militar), está a primeira gravação do fado “Saudades do Brasil em Portugal”, dedicado pelo poeta carioca – aqui parceiro de Homem Cristo (pseudônimo do compositor luso Carlos de Morais e Vasconcelos) – à amiga fadista.

    O sal das minhas lágrimas de amor são como o mar
    Que existe entre nós dois a nos unir e separar
    Às vezes, meu amor, eu julgo não ter fim
    A dor desta saudade não tem pena de mim
    Ausência tão cruel, saudade tão fatal
    Saudade do Brasil em Portugal

    A fadista regravou a música no LP “Um amor de Amália – gravado ao vivo no Canecão” (EMI Odeon, 1973), que traz o registro de mais uma apresentação no Rio de Janeiro, desta vez em meio ao corre-corre entre aeroportos, hotéis e palcos pelo mundo – somente em 1973, ela esteve também em Estocolmo, Barcelona, Paris, Beirute, Turim, Perugia, Palermo, Catania, Milão... Ou melhor, estiveram – ela e o fado, a embaixadora e sua embaixada. Os mesmos que continuaram baixando aqui pelo Brasil, e lotando teatros e casas de espetáculos até os anos 1990.

    Amália Rodrigues fez suas últimas apresentações públicas na primeira metade desta década, com destaque para os shows memoráveis que apresentou no Olympia, de Paris (1992), e no Coliseu dos Recreios, em Lisboa (1994), antes de se submeter a uma cirurgia para retirada de um tumor no pulmão esquerdo, em 1995. Quando faleceu, de causas naturais, em sua residência na Rua de São Bento, em Lisboa (aos 79 anos, em 06-10-1999), a comoção não ficou restrita a Portugal, como era de se esperar.

    “O mundo inteiro, e não apenas o de língua portuguesa, chora a morte de Amália Rodrigues”, escreveu Hélio Fernandes na Tribuna da Imprensa (08-10-1999). “Foi a rainha do fado, a sua grande dama e maior intérprete. O fado saiu de Portugal e invadiu o resto do mundo pela voz maravilhosa de Amália. Era uma lenda, um mito, uma personalidade extraordinária. No Brasil, era reconhecida e reverenciada como no seu país.”

    * Com agradecimentos ao professor e pesquisador Rui Veira Nery e a Mariana Bonfim, doutoranda em Música pela Universidade de Aveiro.

    Para saber mais:

    >> Site do Museu do Fado

    >> Site da Fundação Amália Rodrigues

    >> Blog Amália Rodrigues: a vida é um longo adeus

    >> “O fadinho nacional legítimo, genuíno e de pura cana: um olhar sobre o fado brasileiro no século XIX”, artigo de Rui Vieira Nery na Revista Brasileira, da ABL, pág. 160

    Foto principal: reprodução do site da Cidade das Artes

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