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    50 por cento... mas de amor: há 90 anos, Lamartine Babo “taxou” a hoje indesejada alíquota e a converteu numa divertida marchinha

    Fernando Krieger

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    Uma “Campanha dos 50 por cento” dividiu o Brasil, ocupou um bom espaço na mídia, trouxe à tona rusgas ideológicas e, não obstante a seriedade do tema, acabou dando margem também para alguma gozação. Embora possa parecer, essa não é a descrição dos recentes episódios amplamente divulgados e conhecidos por todos: os fatos narrados ocorreram há 90 anos.

    Apesar das semelhanças entre os dois casos – guardadas, lógico, as devidas proporções –, há uma grande diferença: naquele tempo, ao contrário do punitivo e esdrúxulo tarifaço decretado em 9 de julho último pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em vigor desde 6 de agosto, a alíquota era uma justa reivindicação de uma classe das mais importantes, a estudantil. No final das contas, o episódio, se não acabou em samba, resultou numa marchinha feita por um dos mestres neste gênero.

    Para se entender o contexto das solicitações dos alunos, uma ótima opção é a leitura do artigo escrito em 2013 por Dainis Karepovs para a revista Perseu, intitulado “1935: A Manhã e a ‘Campanha dos 50%’”. Conta o autor: “No dia 3 de agosto de 1935, um grupo de estudantes universitários e de preparatorianos cariocas reuniu-se na Casa do Estudante do Brasil para elaborar um manifesto e divulgá-lo na então capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal), e nos principais centros estudantis do país”.

    A ideia, segundo Karepovs, era expor “as imensas dificuldades materiais vividas pelos estudantes para manterem-se em seus cursos” e propor “abatimentos nos meios de locomoção e diversão dos estudantes” – algo bastante comum hoje em dia (a famosa meia-entrada), mas impensável há 90 anos. “Pretendiam desencadear mobilizações para a conquista desses abatimentos, a que intitularam ‘Campanha dos 50%’”, explica Karepovs, prosseguindo: “Cinco dias depois, uma comissão desses estudantes foi até o diário oficioso da então ilegalizada Aliança Nacional Libertadora (ANL), A Manhã, solicitar a divulgação do documento e o apoio do jornal à causa”. No que obtiveram sucesso: o periódico entrou de cabeça na campanha.

    Que, claro, teve opositores. O jornal O Legionário, da direita católica, lembrou em sua edição de 01/09/1935 a greve promovida no final de 1934 pela Frente Única de Luta dos colegiais e o manifesto lançado na época, “a pretexto de conseguir facilidades materiais para os estudantes”. O problema, segundo o órgão, seria que “a origem do movimento, o motor oculto da greve, estava nos centros de propaganda marxista que, infiltrando os meios estudantis, procuravam arrastar a nossa juventude para o caminho da luta social”, através do “trabalho lento de sapa [de abrir trincheiras], próprio da tática comunista” – sim, a ladainha tão familiar aos ouvidos de hoje já existia com força naquela época.

    O redator de O Legionário era taxativo: “Que todo o bom brasileiro preste muita atenção às sutilezas dos inimigos de nossa Pátria e de nossa sociedade: suas armas são discretas, suas intenções parecem puras, mas seus desejos são destruidores”. Deixava claro também quem seriam tais inimigos: “os agitadores da classe estudantil”, que estariam abrindo caminho “para a propaganda extremista mais intensa e para que novas adesões venham reforçar a elite marxista de nossos intelectuais”.

    “Um dos temores dos grupos mais conservadores também era [a] articulação de um movimento estudantil mais forte e organizado”, salienta Laila Maria Galvão em sua tese de doutorado em Direito “Constituição, educação e democracia: a Universidade do Distrito Federal (1935-1939) e as transformações da Era Vargas” (Universidade de Brasília, 2017). Dissertando sobre a “Campanha dos 50%”, a autora explica: “Os estudantes pediam a redução pela metade do preço do transporte público, dos livros e também dos espaços de lazer. Apenas os jornais mais à esquerda deram destaque ao assunto, anunciando que a polícia ameaçara fuzilar os estudantes que saíssem às ruas e que, mesmo assim, a passeata iria ocorrer no Largo da Carioca no dia 23 de agosto de 1935”.

    Diz Galvão que o prefeito Pedro Ernesto “autorizara a colocação de cartazes ao redor da cidade para divulgar a passeata, mesmo após a ameaça feita pela polícia”. Esta, segundo explica, “não chegou a ‘fuzilar’ estudantes, mas a passeata do dia 23 foi dissolvida com tiros da polícia”. A campanha continuava, chegando às salas de espetáculos: na edição de 13/09/1935, o Correio da Manhã anunciava para a semana seguinte, no Teatro João Caetano, a festa anual do Dia do Artista, cuja matinê teria “desconto de cinquenta por cento para os estudantes e colegiais. Nesse sentido a Casa dos Artistas já se dirigiu à Casa dos Estudantes e aos centros acadêmicos”.

    No mesmo mês, os colegiais cariocas entregaram aos deputados um memorial “relativo a transportes e diversões”, publicado na íntegra em A Manhã do dia 17. No documento, os jovens frisavam que a Campanha dos 50%, “o maior movimento dos moços brasileiros de todos os tempos”, lutava “pelo barateamento do ensino, que não deve ser privilégio dos ricos, mas deve estar ao alcance de todos quantos desejam aprender. (...) A nossa geração, consciente e forte, exige a extinção dessa revoltante seleção econômica. (...) Por intermédio desse memorial, nós vos pedimos 50% de abatimento nas passagens de bondes, trens, ônibus, barcas e navios, e em cinemas, teatros e praças de esporte, em todos os dias e todas as horas”.

    Correio da Manhã, 17/09/1935

    Não era um pedido à toa, explicavam os autores do texto: “Um dos fatores que mais concorrem para o alarmante coeficiente de analfabetos, no Brasil, é indiscutivelmente a dificuldade de transportes e o preço exorbitante das passagens. (...) E, realmente, não se compreende que um jovem brasileiro, faminto de saber, não possa estudar, devido ao elevado preço dos transportes, que, em sua maioria, estão nas mãos de poderosas companhias estrangeiras”.

    Quanto ao lazer, argumentavam: “A mocidade que estuda tem necessidade de divertir-se. As diversões são um complemento natural da instrução: colocá-las ao alcance dos jovens estudantes é colaborar para a formação de uma mocidade culta e alegre, porque, apesar de todos os argumentos contrários, é inegável a influência cultural dos cinemas e dos teatros. (...) As diversões, longe de prejudicarem o ensino, o estimulam”. Karepovs destaca que, “mesmo considerando todo o seu otimismo, esses jovens jamais iriam supor a proporção e os rumos que a ‘Campanha dos 50%’ tomaria em todo o país naquele segundo semestre de 1935, nem tampouco a herança por ela deixada”.

    E onde estaria Lamartine Babo nessa história toda? Em Porto Alegre, como explica seu biógrafo, Suetônio Soares Valença, em “Tra-la-lá: vida e obra de Lamartine Babo” (Funarte, 3ª edição, 2014). Ele conta que, nos dias 3, 5 e 6 de outubro, Lalá e os cantores Francisco Alves e Mário Reis se apresentaram na Rádio Farroupilha (PRH-2), inaugurada em julho daquele ano. Nas noites de 8 e 9, em duas sessões (19h30m e 21h), eles ganharam a companhia de outros artistas – Elisa Coelho, Heriberto Muraro e Roberto Diaz – num evento irradiado pela PRH-2 diretamente do Cinema Imperial (aberto em 1931 na Rua da Praia), “obtendo êxito sem precedentes diante de uma plateia repleta de um público entusiasmado”.

    Na segunda sessão do dia 9, diz Suetônio, o cinema “ofereceu 50% de abatimento à classe estudantil, que já há algum tempo iniciara intensa campanha, que acabaria por ganhar dimensão nacional”. Conta o biógrafo que, assim que desembarcara na capital gaúcha, “Lamartine logo se mostrou simpático à reivindicação estudantil, e em sua edição de quinta-feira, 10 de outubro de 1935, à página 10, o jornal Correio do Povo noticiava a adesão total do Lalá à campanha dos 50%, com a publicação de sua ‘Crônica pela metade...’, que ele datou dos dias 1-3 daquele mês”.

    Na matéria, o periódico fazia uma revelação: “Desde a sua chegada a nossa capital, o popular humorista e autor musical Lamartine Babo tem andado em estreito convívio com os estudantes. Logo nos primeiros dias da sua estadia, compôs de improviso uma linda marchinha, denominada ‘Cinquenta por cento’, que vem sendo cantada com sucesso no microfone da Rádio Farroupilha pelos craques do samba: Francisco Alves e Mário Reis. Ontem, logo após o espetáculo de radioteatro no Cine Imperial, Lamartine Babo foi abordado por uma turma de estudantes aderentes à campanha para dizer algumas palavras sobre o movimento”.

    Retrato de Lamartine Babo na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    O Correio publicava então a “Crônica pela metade...” escrita por Lamartine, que assim se expressava – a sério: “A campanha dos 50% é uma necessidade para os que estudam e até mesmo para os que não estudam mais... (...) Os estudantes precisam de tranquilidade para estudar, e não há tranquilidade possível quando falta o descontinho indispensável, quer nos gêneros de primeira necessidade, como sejam: feijão, arroz, aipim, mandioca... quer nos gêneros de segunda qualidade, como sejam: cinema, teatro, futebol, sem falar no ensino, com suas taxas que ferram o magro orçamento do estudante”.

    Sendo Lamartine quem era, não poderiam faltar os chistes humorísticos: “sem abatimento, o povo pode ficar seriamente abatido. (...) Por essas e outras, caríssimos estudantes, eu sou francamente apologista dos 50%. 50% em tudo! E os outros 50% ficam para quando houver verba. a) Lamartine Babo, diretor irresponsável do Farroupilha Jornal”. Ele, Chico Alves e Mário Reis ainda se apresentariam na PRH-2 em 12 e 13 de outubro e fariam um último espetáculo no Cine Imperial – novamente com transmissão da emissora – em dois horários na noite do dia 16, com plateia lotada.

    Assim surgia, em Porto Alegre, a despretensiosa marchinha de Lamartine, na qual ele deixava de lado as questões reivindicadas pelos estudantes para falar – à sua maneira irreverente – das questões do amor:

    Cinquenta por cento de amor pra iaiá (iaiá)
    Pra iaiá (iaiá), só pra iaiá
    E os outros cinquenta por cento de amor (ôôôô)
    Iaiá divide com ioiô

    Ioiô, ioiô, vou dividir o amor
    O amor assim tem muito mais valor
    Comprei, ioiô, em vinte prestações
    Um milhão de corações

    Ioiô, ioiô, quero você porque...
    Porque você tem bangalô, ioiô
    O meu amor pertence aos “coronéis”
    Um sorriso, cem-mil réis

    Apesar de lançada em terras gaúchas pelos ases Francisco Alves e Mário Reis, seria através de uma voz feminina que ela se tornaria conhecida nacionalmente. Em dezembro de 1935, a jovem Alzirinha Camargo (1915-1982), uma “menina oxigenê” – loura oxigenada, na linguagem de Lamartine e Hervé Cordovil, que compuseram uma marcha com este título –, paulistana do Brás, estava completando 20 anos de idade. Havia chegado ao Rio de Janeiro naquele mesmo 1935 atrás de oportunidades. Logo estreava no cinema, na comédia musical “Fazendo fita”, de Vittorio Capellaro. E seria através da tela grande que lançaria a marchinha de Lamartine, no longa “Alô, alô, Carnaval”, de Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, rodado no final do ano (veja a participação da cantora aos 43’30’’), onde ela aparece acompanhada por uma orquestra sob a regência de Hervé Cordovil.

    A cantora Alzirinha Camargo em duas edições da revista O Cruzeiro: em 22/02/1936 e 14/11/1936 (reproduções da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) 

    Quando o filme estreou no Cinema Alhambra, na Praça Mahatma Gandhi, Centro do Rio, a 20 de janeiro de 1936, a música já havia chegado ao disco (Victor 34025), gravada por Alzirinha no dia 8 daquele mês. O rótulo traz como acompanhante o conjunto Diabos do Céu, informação contestada pelo pesquisador Abel Cardoso Junior: no encarte do CD “Carnaval – Sua história, sua glória, volume 21”, da Revivendo, ele enfatiza: “Foi acompanhada na gravação pelos Diabos do Céu, segundo o selo do disco, e pela Orquestra de Hervé Cordovil, segundo a partitura, o correto”. Mas o próprio livro de registros da gravadora Victor (1929-1939) informa que o acompanhamento foi mesmo feito pelos Diabos do Céu.

    Cardoso Junior informa ainda que Lamartine dedicou sua “marchinha escolar” – classificada no livro da Victor como “marchinha cambial” – “ao mundo estudantil de Porto Alegre”. Do outro lado do disco vinha o samba “Você vai se arrepender” (de Kid Pepe, Germano Augusto e Alberto Fadel). O 78 rotações chegou às lojas em fevereiro de 1936, marcando a estreia fonográfica de Alzirinha, que gravou bem pouco em sua carreira. Ela deixaria apenas 20 registros, todos em 78 rpm: seis em 1936, quatro em 1937, dois em 1938 e, após um longo hiato, mais seis em 1955 e os últimos dois em 1962.

    O disco de estreia de Alzirinha Camargo no livro de registros da Victor (Arquivo Nirez)

    Apesar da afirmação feita por Ruy Castro – no livro “Carmen: uma biografia” (Companhia das Letras, 2005) – de que a marcha de Lamartine fez bonito no Carnaval, a gravação de “Cinquenta por cento” de Alzirinha é a única existente até hoje, de acordo com pesquisa feita no Instituto Memória Musical Brasileira na internet. Vamos encontrar a música tendo uma sobrevida na Argentina em 1937: A Batalha, em sua edição de 2 de fevereiro, informava que, poucos dias antes, na Radio El Mundo de Buenos Aires, Julia Emma Roca interpretara, “com graça e sutileza, nada mais nada menos do que a marchinha de Lamartine Babo: ‘Cinquenta por cento’”.

    Outras “porcentagens”, no entanto, seriam contabilizadas na matemática da MPB: canções basicamente orbitando – cada uma à sua maneira – em torno do tema “amor”, como fizera Lamartine. Em 1943, Marino Pinto e Silvio Caldas mostrariam seu samba “Cinquenta por cento” na voz de Aracy de Almeida; o saxofonista Dionysio de Oliveira aumentaria a aposta na instrumental “Cem por cento”, faixa que abria seu long-playing “Romance no Texas Bar”, de 1959; a saudosa Cristina Buarque, no seu LP de estreia, “Cristina” (1974), resgatava um samba antigo (e inédito) de Vinicius de Moraes, também intitulado “Cem por cento”, composto em 1951; e, em 1975, Antônio Carlos e Jocafi, no álbum “Ossos do ofício”, baixavam a tarifa para “Trinta por cento”.

    A tarifa de Trump também acabou baixando no tocante a alguns produtos – e, ao contrário das piores previsões, e não obstante o futuro ainda incerto, depois de dois meses de tarifaço o Brasil continua firme, forte e soberano, com queda de preços e do dólar (que chegou ao seu menor patamar desde junho de 2024) e a busca de novos parceiros comerciais. Não se pode dizer que o episódio acabará em samba, mas, estivesse Lamartine entre nós, ele provavelmente não deixaria passar a oportunidade de alfinetar o mandatário estadunidense com uma marchinha. Ou, quem sabe, faria novas letras para algumas de suas antigas produções apenas para aproveitar os títulos, alguns bastante adequados às feições trumpistas, como “Seu Abóbora”, “Moleque indigesto”, “Ride, palhaço”...

    Na foto principal: Lamartine Babo na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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