Completam-se, neste dia 28 de dezembro de 2025, nada menos do que 130 anos da primeira vez que o público assistiu a uma sessão de cinema. Mais precisamente 33 pessoas, que, pagando um franco pelo ingresso, compareceram ao Salão Indiano do Grand Café de Paris para conferir o novo invento dos irmãos Lumière. “É uma invenção sem futuro”, teria resmungado Auguste (1862-1954), dois anos mais velho do que Louis (1864-1948), descrente na viabilidade comercial do tal cinema. Nem mesmo a reação dos presentes, que inclinaram o corpo para o lado, como que desviando da locomotiva que aparecia em “A chegada de um trem à estação de La Ciotat”, um dos dez curtas exibidos na sessão, animou Lumière. Foi preciso que o tempo se encarregasse de mudar sua primeira impressão.
Aqui no Brasil, a novidade do momento só pôde ser conhecida a partir de 8 de julho de 1896, quando o público foi à sede do Jornal do Commercio – Rua do Ouvidor, nº 57, Centro do Rio de Janeiro – para assistir a oito filmetes, de um minuto cada, com cenas da vida cotidiana na Europa. Era o marco inicial do cinema na terra de Glauber Rocha, Carmen Miranda, Oscarito e Grande Otelo, mas naquele dia o cara era belga: Henri Paillie, o exibidor itinerante que produziu o evento, frequentado sobretudo pela grã-finagem carioca, pois os ingressos, com preço de 500 a mil réis, eram caros para a época.
Com o tempo, vieram o primeiro filme brasileiro (“Chegada do trem em Petrópolis”, de Vittorio di Maio, em 1897), a primeira sala fixa de projeção (o Salão de Novidades Paris, também na Rua do Ouvidor, aberto no mesmo ano) e, aos poucos, o cinema entrou na programação cultural dos cariocas. Ou melhor, o cinematógrafo, como se dizia na época, a partir do nome do aparelho inventado pelos irmãos Lumière que funcionava como câmera, revelador e projetor de filmes. Com a popularização, virou assunto nas páginas de jornais, nas charges, mesas de café, revistas teatrais e também nos discos.
Como na música “Margaridas e cravos”, uma valsa instrumental lançada em 1912 pelo conjunto Choro Malaquias com tiradas que são ditas ao longo da gravação. Numa das falas, o tema é a “epidemia do cinematógrafo no Brasil”, comparada com a febre amarela. Era a época do cinema mudo, na qual a projeção na tela era acompanhada com música ao vivo, que podia ser tocada por um pequeno conjunto ou um pianista. Como Ernesto Nazareth, que fez do nome de um de seus locais de trabalho, o “Odeon” (na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Sete de Setembro), sua composição mais conhecida.
O Grand Café de Paris e os irmãos Auguste (em primeiro plano) e Louis Lumière / Reproduções da internet
Francisco Mignone foi outro que tocou piano “No cinema”, fosse em salas de projeção no Rio de Janeiro ou em sua São Paulo natal. Ele também chegou a compor músicas para filmes a partir da década de 1930 e, mais adiante, nas produções da Vera Cruz, já no começo dos anos 1950. Os filmes sonorizados, aliás, já eram parte de outro capítulo importante desta história: o cinema falado, novidade surgida em 1927, tendo como marcos iniciais os longas-metragens estadunidenses “O cantor de jazz” (parcialmente sonorizado) e “Luzes de Nova York” (integralmente sonorizado), este do ano seguinte.
Por aqui, a novidade deu o que falar e, a julgar pelo que diz o cômico Genésio Arruda em “Cinembra falado” (1930), também entraram na moda as expressões Vitaphone (sistema que permitia a gravação/reprodução de imagem e som) e cinema sincronizado: “A moda pegou tanto que tem uma vendinha lá perto de casa que deu agora em vender sanduíche sincronizado. Ih! Tem uma saída colosso! Vende que é uma barbaridade, porque é bão. A gente come o sanduíche e dali em meia hora, ó: vem o sincronismo, que é uma beleza”, disserta Arruda, que ainda canta um tanguinho – com melodia e letra sincronizadas – após a fala.
Mas logo houve também quem se enchesse dessa mania, como cantava Iolanda Osório na toada “Peso do pesado”, outra de 1930, de autoria de João Alves: “Esse cinema falado vamos deportar daqui / Nós agora só queremos os sambas do Cariri.” Afinal, tinha malandro que vinha deixando de sambar – dando pinote – pois só queria saber de dançar o foxtrote, como citou Noel Rosa em “Não tem tradução”, com seus versos irretocáveis sobre “essa gente” com “mania de exibição” que não entendia o beabá do samba: “Tudo aquilo / Que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro / Já passou de português,” cantou Francisco Alves em 1933.
Dois anos antes, o humorista Plínio Ferraz já tinha versado – em “Cinema falado” – sobre o assunto, neste diálogo impagável entre matutos sobre o inglês, “essa língua desgracionada” que agora o povo vinha dando pra falar: “‘Como vai você’, ‘como tá tu’, agora é ‘alô, boy’.” E o afiadíssimo Lamartine Babo, também em 1931, compôs sua charge musicada de como ficou o inglês à brasileira no fox “Canção para inglês ver”, lançado na voz marota do próprio Lalá: “I love you / To have Steven via Catumbáy / Independence lá do Paraguai / Studebaker Jaceguai / Yes, my glass / Salada de alface / Fly talks my till / Standard Oil...”
O novo programa da sociedade — ir ao cinema — também virou assunto no nosso cancioneiro popular. Fosse em letras que perfilassem os tipos variados na “Plateia de cinema”, como cantou Noel Carlos já em 1964. Fosse jogando luz sobre os mais recorrentes e duradouros destes tipos: os namorados que no escurinho do cinema — como no “Flagra” de Rita Lee — estão menos interessados no filme do que em investidas como o “Splish splash” de Roberto Carlos, mesmo que na tela apareça um “Pica pau”. Ou que haja “uma velha metida no meio”, como diz o mordaz Alfredo Albuquerque em “O namoro no cinema”, cena cômica de 1929.
Cinema eclético: em sentido horário, Rita Lee, Lamartine Babo, Roberto Carlos e Noel Rosa / Reproduções da internet
Mas nem sempre a história termina com final feliz. Seja pela chegada inesperada do vagalume (ou lanterninha), como no fox “Iremos ao cinema”, que o Trio Nagô gravou em 1955. Ou porque a mocinha, desacompanhada no cinema depois que o namorado disse que tinha que estudar, flagrou o mesmo na fileira da frente, e ainda por cima acompanhado de sua melhor amiga, como choramingou o Trio Esperança em 1962, na música “Filme triste”, versão de “Sad movies (Make me cry)”, baladinha que chegou ao 5º lugar na parada de sucessos dos Estados Unidos em 1961, na voz de Sue Thompson.
Mais intenso e menos açucarado é o enredo de “Bala com bala” (1972), um dos sambas cinematográficos de João Bosco e Aldir Blanc, a dupla que no fim da mesma década partiu de um dos personagens mais queridos da telona – Carlitos, o vagabundo interpretado por Charles Chaplin – para compor seu maior sucesso, “O bêbado e a equilibrista” (1979), ambas consagradas na voz de Elis Regina.
Final feliz é o que também não se vê em “Filme de amor”, samba de 1954 em que Orlando Correia canta as desventuras de uma “história bem urdida” que, projetada na “grande tela da vida”, chega ao “fim da fita” exibindo “a nossa desdita”. Uma sequência de metáforas cinematográficas como em tantos outros enredos amorosos, entre eles “Ska” (Herbert Vianna), o rock de cotovelos doídos que os Paralamas do Sucesso emplacaram em 1984. E também “Fita de cinema”, a marchinha espirituosa que Cida Tibiriçá gravou – com sua voz gaiata – lá em 1937: “Tu és o mocinho, eu sou a pequena e o bandido é o filho do vizinho, de bigodinho aparadinho.”
Outra boa crônica é a de “Vem cá, Jurema” (1941), o samba em que Joel e Gaúcho convidam a moça para “brincar de cinema” – “você de atriz, eu de grande ator” – com um certo Joaquim, “que vou convidar pra trabalhar de bandido contra mim”. Já no fox “Cinema bossa nova” (1955), que por acaso não tem nada a ver com o gênero musical de João Gilberto, Tom Jobim e cia. (mas inaugura a expressão a três anos de seu marco inicial), é uma cantada que se ouve na voz de Carlos Henrique: “Vamos fazer / Cinema todo bossa nova, meu bem / Vai ter mocinho e mocinha também / Somente vilão não tem...”
E só mesmo uma cantada cinematográfica para alinhar a Blitz de Evandro Mesquita – com “Pipoca na memória” (1999) – ao Rei da Voz, Francisco Alves, que lá em 1930 cantou seus galanteios no fox romântico “Um filme falado de você”: “Se falado eu tivesse por você / Lindo filme em que houvesse só você / Eu havia de ficar noite e dia a escutar / Sempre que você dissesse: meu amor...” A letra, escrita por Osvaldo Santiago, é uma versão de “If I had a talking picture of you”, sucesso do longa “Um sonho que viveu” (“Sunnyside up”), em cartaz nos cinemas daqui em 1929.
Carmen Miranda em cena do filme 'Sonhos de estrela' (1945) / Reprodução da internet
As versões brasileiras de sucessos do cinema estadunidense acabaram se tornando um capítulo à parte do nosso cancioneiro — muitas delas gravadas pelo próprio Chico Alves. Mas às vezes era em inglês mesmo que se gravava por aqui o repertório de lá: como o Bando da Lua fez na “Seleção do filme ‘Meu maior desejo’”, enfileirando duas canções no idioma de Bing Crosby, astro da referida comédia musical, que no original se chamava “Here is my heart” e foi exibida nos cinemas em 1934. E pelo inglês que se ouve na gravação do Bando, nota-se que já estavam prontos para a aventura que teriam a partir de 1939, acompanhando Carmen Miranda nos filmes e discos que fez nos Estados Unidos.
O sucesso da Pequena Notável por lá, inclusive, serviu de mote para os compositores de cá, como em dois lançamentos bem-humorados de 1941. No samba “Baiana em Hollywood”, Alvarenga e Ranchinho reafirmam — risonhos e ufanistas — o papel diplomático da cantora e seu tabuleiro de quitutes: “Greta Garbo gostou do vatapá, Clark Gable repetiu o abará e Seu Popeye, que é guloso pra chuchu, jogou fora o espinafre e entrou no caruru.” Já os concorrentes Jararaca e Ratinho, numa faixa mais proseada do que cantada, abrem a conversa num ótimo texto sobre Carmen para, em seguida, falarem de Dorothy Lamúria (Lamour), Bela Gulosa (Lugosi) e outros astros de Hollywood no português matuto que se ouve em “Amor cinematográfico”.
Os nomes estropiados seguiam a mesma linha de “Caipira em Hollywood”, a moda de viola de 1938 em que Alda Garrido e Ariovaldo Pires (vulgo Capitão Furtado) proseiam sobre estrelas como “Leonel Barro Mole” (Lionel Barrymore) e “Maurício Chevrolet” (Maurice Chevalier), entre outros. Este último, aliás, havia sido citado – como Maurício Chevalier – por Lamartine Babo em “Janete”, a simpática marchinha de 1936 em que Lalá galanteia a atriz e cantora Jeanette MacDonald, par romântico de Chevalier numa série de filmes, entre eles “A viúva alegre”, blockbuster de 1934.
Também de longe, Lucinha Lins e o quarteto humorístico Os Trapalhões acenaram às estrelas da telona – “Ói nós aqui!” – em 1981 em “Hollywood”, fox de Chico Buarque com o italiano Sergio Bardotti e o argentino Luís Enriquez Bacalov, com quem assina as músicas do filme “Os Saltimbancos Trapalhões” (1981): “Eu que nem sonhava conhecer o tal Recife / Pobre saltimbanco trapalhão / Hoje sou mocinho, sou vizinho do xerife / Dou rabo de arraia em tubarão”, diz a letra de Chico, também autor de “Ela faz cinema” (2006) e diversas músicas para filmes, como “Bye bye Brasil” (com Roberto Menescal, 1980), “Eu te amo” (com Tom Jobim, 1980) e “Quando o carnaval chegar” (com atuação do próprio Chico, em 1972).
Já Noel Rosa pegou carona num dos personagens mais famosos do cinema nos anos 1930 para, com seu parceiro Vadico, criar uma de suas melhores crônicas em forma de samba. É que, com o sucesso dos filmes de Tarzan, a partir de 1932, todos passaram a querer ser Johnny Weissmüller, o ex-nadador multicampeão olímpico que interpretava o personagem. Só que, no tempo em que não se tomava bomba, a solução dos fracotes foi apelar para os alfaiates – e assim veio a febre dos paletós com ombreiras e dela a inspiração para “Tarzan (o filho do alfaiate)”, samba-choro gravado por Almirante em 1936.
Super-heróis: os cartazes dos primeiros filmes de Tarzan (1932), Batman (1966) e do Super-Homem (1979) / Reproduções da internet
Algumas décadas depois, foi a vez dos super-heróis – trazidos dos quadrinhos para o cinema – inspirarem a música popular brasileira. Como Batman, trazido por Jards Macalé para o Festival Internacional da Canção de 1969 com “Gotham City”. Já Gilberto Gil, uma década depois, veio com a primorosa “Super-Homem, a canção” (1979), composta depois de assistir às façanhas do Homem de Aço no filme de Richard Donner. Também de sua autoria é “Cinema novo”, a list song da parceria com Caetano Veloso que gravaram juntos no disco “Tropicália 2” (1993).
Caetano, que tem o cinema entre suas referências mais queridas, trouxe a sétima arte para sua obra de diversas maneiras. Como nome/conceito de um de seus álbuns, “Cinema transcendental”, de 1979. Em composições diversas estruturadas como filmes – como “Alegria, alegria” (1967) – ou com referências explícitas, entre elas homenagens à atriz “Giulietta Masina” (1987) e ao cineasta Michelangelo Antonioni (2000) e uma coletânea de saudades em “Cinema Olympia” (1969). Caetano também dirigiu um filme, “O cinema falado”, em 1986.
Das memórias da sala escura vieram outras tantas composições da música popular brasileira. Como a “Sessão das 10” de Raul Seixas (1974), o “Cine Baronesa” de Guinga (2001) e o “Cinema Paradiso” que Dori Caymmi compôs para o repertório do disco inteiro que fez com temas de filmes estadunidenses, “Cinema, a romantic vision” (Atração Fonográfica, 1998).
Vivendo nos Estados Unidos entre 1989 e 2017, Dori não só trabalhou com grandes nomes da música de lá (como Sarah Vaughan, Henri Mancini e outros) como se dedicou a compor e escrever arranjos para cinema. Um caminho que, aqui no Brasil, teve antecessores de peso, como o maestro Heitor Villa-Lobos, autor da música de “O descobrimento do Brasil” (1937), filme de Humberto Mauro, que contou com Radamés Gnattali para compor as músicas de “Ganga bruta” (1933) e outros longas que dirigiu. Já Pixinguinha só em 1963 estreou na telona, como autor das músicas de “Sol sobre a lama”, de Alex Viany.
Caubói e à paisana: Moreira da Silva entre as capas do LP "Mo Ringo Eira" (Continental, 1970) e do compacto duplo de "O rei do gatilho" e "O último dos moicanos" (Odeon, 1966)
Já Moreira da Silva juntou cinema, Lapa e Velho Oeste ao encarnar Kid Morengueira, o justiceiro de bangue-bangue que contava as próprias façanhas em sambas de breque como “O rei do gatilho” (1962) e “O último dos moicanos” (1964). Seu autor é Miguel Gustavo, ou “Michael Gustav”, como se ouve na abertura cinematográfica das duas gravações em que Moreira, na pele do “mais temido pistoleiro de Wichita”, troca o panamá pelo chapéu de caubói. Se estivesse no sertão da Bahia, é provável que usasse chapéu de cangaceiro para cantar “Se entrega, Corisco!”, refrão do galope “Perseguição”, composição de Sérgio Ricardo para “Deus e o diabo na terra do sol”, obra-prima de Glauber Rocha, também de 1964.
E como não se lembrar da música de Jorge Benjor em “Xica da Silva” (1976), de Cacá Diegues? De Tom Jobim e Gal Costa arrebatadores no romance musicado que ele compôs para o filme “Gabriela, cravo e canela” (1983), de Bruno Barreto, inspirado na obra de Jorge Amado? Ou do Barão Vermelho cantando o rock “Bete Balanço” (Cazuza e Frejat), feito para o filme homônimo de Lael Rodrigues, em 1984. Ou da cena de abertura de “Rio 40 graus” (1955), o filme de Nelson Pereira dos Santos que tinha Zé Kéti e “A voz do morro” entre suas atrações principais.
Memórias do cinema na música brasileira que, felizmente, vão muito além das enumeradas neste texto e que estão longe, muito longe, de se esgotarem nos créditos finais e no acender das luzes de nosso post.
Na imagem principal: poster feito por Henri Brispot em 1896 anunciando as exibições dos irmãos Lumière / Imagem em domínio público reproduzida da plataforma Wikipedia.




