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    Futebol em 78 rotações: paixão nacional em ritmo de samba, marchinha, choro e baião

    Pedro Paulo Malta

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    A bola já está rolando no Catar e há quem ainda não tenha entrado no clima de Copa do Mundo. Somam-se aí o fim de um ano difícil, novembro pós-eleitoral e um certo desgaste de símbolos importantes para a pátria de chuteiras, como a bandeira do Brasil e a camisa da seleção. Atualidades do “jogo do pontapé”, como o futebol foi chamado em 1918 pelo escritor Lima Barreto, crítico do caráter segregacionista do English sport que, nas primeiras décadas após a chegada ao Brasil (1901), era passatempo exclusivo dos gentlemen da elite brasileira.

    Mas o fato é que acabou caindo no gosto dos populares e passou a ser praticado por eles – inclusive os negros, como Lima Barreto, que custaram a ser aceitos nos clubs e não tardaram a virar protagonistas nos fields. Quando as Copas do Mundo passaram a ser disputadas (a partir de 1930) e o Brasil começou a fazer sua história na competição, aí não teve nariz torto desse jeito. O futebol e seus cracks viraram assunto nos jornais, nas ruas, nas revistas teatrais, salas de cinema, na literatura e, claro, na música.

    Aqui na Discografia Brasileira é farto o repertório dedicado a ele, inclusive com exemplares que não se limitam a cantar o que se passava no gramado e na arquibancada. Tem até o genial Lamartine Babo – o mesmo que compôs todos os hinos dos clubes cariocas – versando sobre paquera na marchinha “Dois a dois”, de 1934: “Papai é o juiz, mamãe fica perto / E o jogo prossegue incerto...” 

    Há também capítulos da História do Brasil, como por exemplo a eleição de 1930 – seus preparativos estão numa marchinha espirituosa do maestro Eduardo Souto sobre um jogo valendo “a taça oferecida pelo Catete Futebol Clube”, entre os times de “Seu Julinho” (Júlio Prestes, presidente da província de São Paulo) e Seu Tonico (Antônio Carlos, presidente da província de Minas Gerais). A marcha – chamada “É sopa”, de 1929 – só não tinha como prever que no fim das contas a taça ficaria com “Getulinho” (assim citado na letra).

    Mas no futebol em 78 rotações, quem fala mais alto é a paixão clubística – e neste quesito o “mais querido” é também o mais cantado (confira aqui). Seja sozinho numa homenagem solo (como no “Samba rubro-negro”, de Wilson Batista e Jorge de Castro), seja nos clássicos cariocas. Como nos fla-flus que inspiraram tantas composições (entre elas a marchinha “Torcidas renitentes”, de Murilo Caldas), numa tarde infeliz contra o Botafogo (“E o juiz apitou”, de Wilson Batista e Haroldo Lobo) e numa discussão entre torcedores num “Vasco x Flamengo” (Francisco Malfitano e Murilo Caldas). O clube de São Januário também valeu boas gravações em 78 rotações – como as marchinhas “Eu fiz um fado” (Alberto Ribeiro e Janet de Almeida) e “No boteco do José” (Wilson Batista e Augusto Garcez).

    Já em São Paulo, o paraense Billy Blanco brinca com a dificuldade de se achar uma rima para Corinthians (“Campeão do centenário”) numa das muitas homenagens musicais recebidas pelo clube alvinegro do Parque São Jorge, lembrado também numa divertida conversa entre rivais no Pacaembu em dia de “São Paulo x Corinthians”. A rivalidade também se faz presente na marchinha “Palmeiras super campeão” (Coelho de Menezes), em cujo refrão se canta que “acreditaram na baleia, mas o periquito é o campeão”, como que respondendo a “O Santos ganhou” (Nilo Silva, Mazinho e Nandinho), com seus vivas ao “Pelé endiabrado”.

    No Recife os três rivais inspiraram não só uma, mas duas músicas lançadas em discos de 78 rotações. Primeiro foi a vez do frevo “Qual será o escore, meu bem”, composição de Nelson Ferreira e Zilu Mattos que alinha, na voz de Almirante – em gravação de 1941 – a cobrinha, o timbu e o leão – mascotes, respectivamente, de Santa Cruz, Náutico e Sport. Já no famoso rojão “Um a um”, sucesso de 1954 na voz de Jackson do Pandeiro, o compositor Edgar Ferreira evoca o trio de maneira cromática, na mesma ordem: “encarnado, branco e preto”, “encarnado e branco”, “encarnado e preto”. 

    No fim das contas, “todos têm seu valor”, como cantou Carmen Miranda no ótimo “Deixa falar”, samba de Nelson Petersen feito no embalo da Copa do Mundo de 1938, que teve como artilheiro o brasileiro Leônidas da Silva. Com oito gols marcados, o grande atacante foi o “dono da pelota” na competição, como definiram Marino Pinto e David Nasser no samba que leva seu doce apelido, “Diamante Negro”.

    A composição se inscreve na lista de homenagens musicais a craques brasileiros. De “Menino de ouro” (que Ernesto Nazareth compôs dedicado a Zezé, atacante do Fluminense tricampeão carioca de 1917 a 19) ao tributo dançante “Garrincha cha” (Rutinaldo), além do baião “Pelé”, divertida crônica de Gordurinha sobre uma vizinha que anda dando bola. Já em “Maria Espingardina” (Jorge Costa e Zé da Glória), os dribles de Pelé e Garrincha estão entre as vinganças prometidas pelo sujeito aborrecido com a ex.

    Das crônicas para a própria história do futebol, há capítulos importantes dela no repertório popular brasileiro. Como o primeiro título da seleção brasileira – o Sul-Americano de 1919 – que inspirou um choro clássico de Pixinguinha que tem como título o placar da vitória sobre a Argentina no Estádio das Laranjeiras: “Um a zero”. 

    Já a Copa de 1950 pode ser lembrada pelos hinos compostos para embalar o otimismo da época, entre eles a “Marcha da torcida” (Francisco Malfitano e Ari Machado), dando como certa a vitória do “nosso onze”. No Mundial de 1954, foi a vez de “Gol do Brasil” (Alfredo Borba) antecipar a alegria que não veio: o corintiano Baltazar – personagem do samba – até marcou uma vez, mas a seleção deixou a Suíça eliminada pela Hungria. 

    Melhor sorte teve o jinglista paulistano Maugeri Neto, que com o irmão Antonio (vulgo Maugeri “Sobrinho”) e mais Vitor Dagô e Lauro Muller, fizeram a marchinha que antevia o sucesso na Copa de 1958 – só que desta vez com final feliz e o povo cantando o refrão ufanista: “A taça do mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa...”

    Brasil, enfim, campeão do mundo. O jogo bruto estava transformado em jogo bonito (obra de Pelé, Garrincha, Didi e cia.), futebol-arte, coisa de cinema – de preferência ao som de “Na cadência do samba” (Luiz Bandeira). 

    Quem sabe agora, se o jogo bonito voltar a vestir amarelo na disputa pelo hexacampeonato, a torcida acabe fazendo as pazes com a seleção brasileira...?

    Foto: Panoramas, favela com menino jogando futebol (Coleção Marcel Gautherot / Acervo IMS)

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