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    Bacharel de gafieira, batuqueiro, sincopeiro, malandro metafísico nove-ponto-zero: que figurão esse tal de Germano Mathias!

    Fernando Krieger

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    Meu irmãozinho, tamos aí. Cruzá as gadunha legal. Como é que tá, meu tio? Depois de longo e tenebroso inverno estou novamente aqui à tua disposição, vamo nóis. (Germano Mathias – Programa “MPB especial”, TV Cultura, 1975)

    Guenta o tranco que aí vem o Moleque Madusca, corintiano subindo a Mangueira e descendo a pernada nos contratempos da vida, criado no jogo de tiririca e na ginga do batuque, os dedos tamborilando na tampolina da lata de graxa niquelada. Eis o Branquinho Pixaim, malaco da velha Sé, das praças João Mendes e Clóvis Bevilacqua, herdeiro direto de Vassourinha e Caco Velho, sincopando o breque, brecando as dificuldades. Licença para passar o Marlon Brando dos pobres, servidor público de araque, vagau das bocadas, vagolino das rodas de samba e de saia. O Barra Funda. O Sambista Diferente. Agora o papo é reto: abram alas para Germano Mathias, o Catedrático do Samba!

    O primeiro contrato de trabalho, em 1955, indicava: “cantor e executante de instrumentos exóticos”. Quais fossem: tampa de lata de graxa, que ele chamava tampolina da gordura – cuja percussão aprendera com os negros engraxates/percussionistas das praças acima citadas, por onde ele, rapazote, passava no trajeto para a escola –, frigideira, cuíca de boca – especialidade do ídolo maior Matheus Nunes, o Caco Velho –, trombone de boca. “No coração da cidade hoje mora uma saudade / A velha Praça da Sé, nossa tradição / Da praça da batucada, agora remodelada / Só ficou recordação / Até o engraxate foi despejado / E teve que se mudar com sua caixa / Ai, que saudade da batucada feita na ‘Lata de graxa’!”, cantaria em 1958, aos 24 anos, astro do rádio e do disco.

    Antes de chegar lá, muito chão e muito espinho pra pisar. Filho de Zulmira, professora paulistana, e Julio, caminhoneiro carioca, deu as caras pela primeira vez na Rua Santa Rita, no Pari, região central de São Paulo, em 02/06/1934. Lá viveu até os 7 anos. “Aí mudei pro Parque São Jorge. Foi aí que eu me tornei corintiano”, revelou no DVD “Ginga no asfalto” (2007), de Guilherme Vergueiro e André Rosa. O hino do clube está no início do samba “Bronca da Marilu”, de 1958, onde ele declara sua paixão pelo Timão... e também pelo Flamengo do Rio de Janeiro, cidade em que chegou a morar na década de 1960, tocando cuíca por dois anos na bateria da Mangueira – onde travou amizade com Padeirinho, um dos baluartes da agremiação.

    Passeou também pela Cidade Maravilhosa através de várias músicas do seu repertório: “Eliete vedete” – a moça, cantada em 1957 no seu quarto disco de 78 rotações, é uma espécie de precursora da sambista retratada por Chico Buarque em “Quem te viu, quem te vê” –, a esnobe “Amélia grã-fina” – que “frequenta a Praia do Arpoador”, “só vai ao Municipal e mora num palacete em Copacabana” –, de 1959, e “Falso rebolado” (1957), que faz menções às escolas Favela, Portela, Império e Mangueira. Esta composição possui um quê de “Falsa baiana”, samba sincopado de Geraldo Pereira. Ao final da faixa, aliás, Germano – outro expoente do gênero – dá uma aula de síncope, quebrando e requebrando as palavras e frases com total facilidade.

    De onde vinha o talento? Provavelmente do berço. Descendente de portugueses, cresceu escutando fados e viras. Adorava tangos. Mas o paticumbum falou mais alto. “Eu via aquelas batucadas dos engraxates. Aquilo era um verdadeiro folclore de São Paulo. Uma batucada tão bem feita que os engraxates faziam... E eu dizia pra mim mesmo: ‘Eu sei que, se eu entrar nessa roda de sambistas batuqueiros engraxates, eu vou saber me conduzir muito bem. Eu sinto que, nesse meio aí, eu vou me destacar’”, disse em depoimento ao documentário “O Catedrático do Samba” (1998), curta-metragem de Noel Carvalho e Alessandro Gamo.

    O Moleque Madureira – apelido que veio de “Chorou Madureira (Paulo da Portela)”, que Aracy de Almeida gravou e ele entoava aos quatro cantos –, menor de idade frequentador de gafieiras e salões de dança (Amarelinho, Caçamba, Paulistano, Royal), tocador de tamborim e frigideira nas escolas Rosas Negras e Lavapés, se virava na camelotagem e aprendia com os bambas o jogo da tiririca: brincadeira de rasteiras (semelhante à capoeira) onde dois jogadores, no meio de uma roda de batucada, tentavam derrubar um ao outro com pernadas. “Eu aprendi a jogar tiririca, só que mais era derrubado do que derrubava”, disse em entrevista a Tárik de Souza em 2013.

    26 de outubro de 1955. Germano cravou a data como sendo a do seu início profissional. Já se atrevera antes como calouro na Rádio Nacional paulista, primeiro prêmio no programa “Aí vem o pato”, mostrando seu samba “Na Barra Funda”. Então foi catado pelo Exército – não se apresentara no prazo devido – e, ao sair do quartel, tentou a sorte novamente. Rádio Tupi de São Paulo, programa “Caravana da alegria”, quadro “À procura de um astro”: “Estavam à procura de um sambista, porque eles tinham que chamar os sambistas do Rio de Janeiro, e aí ficava muito mais caro pra rádio”, contaria em 1998. Eram trezentos candidatos e Germano ganhou o concurso, assinando um contrato de quatro meses (aquele dos “instrumentos exóticos”), renovado depois para dois anos. Na ocasião, cantou ao microfone uma música sua, “Minha nega na janela”, parceria com Doca (pseudônimo de Firmo Jordão).

    Foi o primeiro disco, o primeiro sucesso... e o primeiro vacilo musical do malaco (malandro), este samba lançado em 1956. Letra de cunho racista, super cancelada nos dias de hoje. Incrível que mestre Gil o tenha interpretado em 1978 no long-playing “Antologia do samba-choro – Gilberto Gil e Germano Mathias” (que, aliás, nunca foram lídimos representantes de samba-choro nenhum). Décadas depois, Germano deixaria de cantá-lo, justificando no DVD de 2007: “Porque ficou racista a música, né? Naquela época todo mundo dava risada, mas hoje em dia eu não canto mais”. Não ficou racista, sempre foi. E com o agravante da violência contra a mulher, presente também na ameaça feita à protagonista de “Minha pretinha”, outra face da bolachinha.

    Perfeito na interpretação, na afinação, nas síncopes, no ritmo que tirava da fiel frigideirinha/tampinha de graxa, nos instrumentos produzidos com a boca. Imperfeito em algumas atitudes, como todo ser humano. Forjado no underground paulistano, íntimo de trapaceiros, malandros, meretrizes, punguistas, ele aprenderia gírias, maneirismos, piadas. Estas não raro de péssimo gosto, chulas, vulgares. Que continuaria reproduzindo mesmo octogenário. Machismo, sexismo, violência doméstica infelizmente fariam parte de seu repertório: a agressão contra a mulher iria se repetir outras vezes, como em 1958 com “Sabão na panela”, dele e de Antoninho Lopes. Ou no LP “O Catedrático do Samba” de 1968, quando lançou “Minha nega, minha máquina”, samba machistíssimo de Carlos Imperial.

    Porém (ai, porém) – vida feita de yins e yangs – Germano tinha outras facetas, como revelou o redator da revista InTerValo de novembro de 1966: “Ele é o malandro: camisa listrada, tampinha de graxa, sapato branco, chapéu de aba curta e a gíria misturada com adjetivos pomposos (...). Mas, de repente, ei-lo numa livraria, empolgado com uma obra de Allan Kardec. Preocupado com problemas como a reencarnação, a multiplicidade dos mundos, a evolução espiritual... ‘Malandro de araque’, malandro de grupo, esse Germano Mathias com tê-agá”.

    “Eu sou de uma personalidade paradoxal. Eu sou completamente o oposto daquilo que aparento”, confessou a Tárik de Souza em 2013. Geminiano Mathias – dupla personalidade? À InTerValo de 1966, o bacana apaixonado por filosofias metafísicas, crédulo na lei do Karma e na reencarnação, já confessava: “Não bebo, não fumo, não jogo e só como carne quando não tenho jeito mesmo (...). Meu único defeito nesta fase, se é que alguém pode considerar isso um defeito, é continuar gostando de um papo firme com as filhas de Eva” – mulherusco irremediável que era.

    Não fugia de assuntos sérios, temas que o comoviam. Caso de “Problema infantil”, samba-canção de Jorge Costa e Canarinho, gravado em 1958 por Victor Rafael em 78 rpm e por ele no álbum “Samba é comigo mesmo”, de 1971: “É de cortar o coração / Uma criança estender a mão / (...) Doutor, o senhor que teve a sorte de ser educado / Tenha pena do menor abandonado”. Ou deste samba de 1958, onde ele dava voz aos desvalidos: “Eu vou pedir ‘Audiência ao prefeito’ / Porque não está direito com a favela acabar”. Da lavra do ídolo maior – a quem dedicou um CD inteiro em 2005, “Tributo a Caco Velho” – é o clássico “Mãe preta”, parceria com Piratini (que Germano mostra aqui em dueto com Rolando Boldrin).

    Do amigo Padeirinho – em dupla com Aldacir Louro – veio um grande sucesso de Germano em seu terceiro disco, um samba que lhe proporcionou dois prêmios em 1957, Roquette-Pinto e Guarani: “A situação do Escurinho”, continuação do famoso “Escurinho” de Geraldo Pereira. No ano seguinte, recebeu dos cronistas de São Paulo uma medalha pelo sambaço “Guarde a sandália dela”, primeira parte dele e a segunda de Sereno (Inácio de Oliveira), que Elis Regina e Jair Rodrigues recriariam em 1966 no LP “Dois na bossa número 2”. O rapazote chegou chegando na década de 1950: um raro choro, “Batatinha e cocada”, e muito, muito samba e suingue: “Rua”, “Não volto pra casa”, “Tem que ter mulata”, “Sinfonia da goteira”, “Tempestade de verão” – este último de Germano em parceria com Príncipe Indu (José Dias).

    Brincou de astro do cinema em 1959. Dois filmes: em “O preço da vitória”, de Oswaldo Sampaio, ficção inspirada na conquista da Copa do Mundo de 1958 pela seleção brasileira, com alguns jogadores no elenco (foi a estreia nas telonas do rei Pelé), ele samba muito, batuca na tampolina, dá (e leva) pernadas e canta “Lata de graxa”. Já em “Quem roubou meu samba?”, de José Carlos Burle e Hélio Barroso, Germano contracena com o comediante Ankito e mostra – sempre castigando a rodelinha – “Figurão”, dele e de Doca, faixa do LP “Em continência ao samba” (1958).

    Dezenove cinco nove: ano de um mega êxito. De autoria de Zé Keti, que Germano conhecera em 1958 na Cinelândia, Centro do Rio. Quem narra o encontro é Caio Silveira Ramos no tijolivro “Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias” (A Girafa Editora, 2008). Zé Keti se apresentou a ele: “Você não é aquele sambista que está fazendo sucesso em São Paulo?”. Germano então cantou três sambas do carioca, “Amor passageiro”, “Leviana” e “A voz do morro”. Zé Keti ofereceu: “Quer gravar um samba meu?” Cantarolou, mas deu a dica: “Quer pegar direito? Vai no cinema ver o ‘Rio Zona Norte’ do Nelson Pereira dos Santos. Meu samba tá lá, botaram na tela no ano passado”.

    Conta Caio: “Germano já tinha visto, ouvido e gostado, mas voltou, viu três vezes mais (...)”. Na tela grande, foi lançado em 1957 pelas vozes de Grande Otelo e Ângela Maria. Em 78 rotações, a primazia foi de Germano, dois anos depois: “Morreu ‘Malvadeza Durão’ / O criminoso ninguém viu”. De Zé Keti, gravaria 8 composições no total, quatro de uma só vez no disco “Samba de branco” (1965): “Nega Dina”, “Opinião”, “Diz que fui por aí” (parceria com Hortêncio Rocha) e “O assalto”. Uma delas, “Regenerado”, que ele levaria mais tarde ao vinil, teria – segundo contava – sofrido censura. A letra oficial diz: “Arranjei uma dona, sou papai, agora me manquei / Até de beber a minha cachacinha já deixei”. Mas o verso original (e proibido) de Zé Keti seria lembrado por Germano em diversas ocasiões – e entre muitos risos: “Até de fumar a minha maconhinha já deixei”.

    A figura do “malandro regenerado” tinha dado pinta em 1957 em “Senhor delegado”, de Jaú e Antoninho Lopes, este último companheiro de farras de Germano e um dos seus compositores preferidos, de quem gravou apenas cinco músicas (segundo levantamento feito na página do Instituto Memória Musical Brasileira – IMMuB). Outros parças mereceram destaque em seu repertório fonográfico: do alagoano Jorge Costa, hoje bastante esquecido, foram nada menos que 25 músicas na voz de Germano, entre elas “Maria Espingardina”, em dupla com Zé da Glória – com menção aos craques da bola Canhoteiro, Chinesinho, Garrincha e Pelé, e o Mathias na maior sincopagem depois do intermezzo instrumental –, o sucesso “Baile do Risca-Faca” (parceria de Jorge com Germano, que utilizou o pseudônimo Durum Dum Dum) e “Lar sem pão”, de Jorge com Venâncio (Marcos Cavalcanti de Albuquerque).

    De Elzo Augusto, gravou 19 músicas (nenhuma em 78 rotações). Do bróder carioca Padeirinho foram dez, incluindo “Barra pesada”, dele com Moacir da Mangueira. De acordo com o IMMuB, Germano contabiliza 15 álbuns de carreira, somando-se LPs e CDs: onze entre 1957 e 1974 e quatro entre 1999 e 2012. Na época dos 78 rotações, foram 17 discos (num total de 34 músicas, 8 delas tendo o próprio Germano como coautor), contendo em sua maioria composições bem-humoradas, como o samba-novela “Grito de socorro”. Seu último disco de 78 rpm, lançado no início de 1963, trazia “Você não é de nada”, com Germano arrasando na sua indefectível cuíca de boca, e “Perdi você”.

    Anos 60. Últimos momentos do gingapura em seu auge. Garoto-propaganda de diversos produtos. Programas de televisão na Record (ao lado da fabulosa Elza Soares) e na Paulista (Globo). Diploma de bacharel da Ordem da Palheta Dourada, outorgado pela escola de samba X-9, de Santos. Randal Juliano, apresentador do programa “Astros do disco”, da TV Record, entendeu tudo: quem é bacharel tem cátedra. E sapecou-lhe a alcunha de Catedrático do Samba, que viraria título de dois LPs de Germano – detalhe: discos homônimos lançados por duas gravadoras diferentes, CID e Cantagalo! Por fim, a Bienal do Samba de 1968, defendendo “Sandália da mulata”, de Donga e Walfrido Silva.

    “(...) no tempo do rock, twist, cha-cha-cha, iê-iê-iê e outros bichos, ele era um dos poucos que andava por aí gritando aos quatro ventos que o samba existia, chegando a brigar em sua defesa”, escreveu J. Muniz Jr. no jornal Cidade de Santos de 03/06/1972. Germano bradou contra a Jovem Guarda e o Tropicalismo, mas foi atropelado pelos novos sons da juventude. Continuava em grande forma, como mostrou no “MPB especial” da TV Cultura exibido em fevereiro de 1975. Ali, passou sua carreira a limpo, não faltando os obrigatórios instrumentos exóticos: cuíca de boca, trombone de boca e tampinha de graxa – ele “toca” tudo quase simultaneamente em “Joga a chave”, mostrando ser também um craque ao interpretar um samba “liso” (mais tradicional, sem síncopes) de Adoniran Barbosa e Osvaldo França.

    Samba que as gravadoras quiseram impor a ele: chega de entortar tudo. Engessado somente nos discos; nos palcos – nunca deixaria de fazer shows – continuaria endiabrado como sempre. Sobreviveu a um acidente de carro em 1975. Foi arranjado numa bocada, ops, numa carreira de oficial de justiça que arrumaram pra ele em 1976 – não duraria seis meses no cargo. Tempos de ostracismo, vacas magras, esquecimento. Fez o personagem Nivaldo – um malandro, óbvio – na novela “Brasileiros e brasileiras”, do SBT, em 1990. Chegou o neto Bruno (Vuquinha) em 1994, alegria do velho sambista.

    Que seria enfim redescoberto com o documentário de 1998. Nos anos 2000, muitos shows – como o de 2005 em São Luís do Maranhão, quando aposentaria para sempre a tampolina da gordura após levar um tombo no palco e colocar pinos no ombro –, aparições em televisão, DVD, diversas homenagens. E até um derradeiro disco, o CD “Raiz e tradição”, de 2012.

    Na letra de “Metamorfose”, avisou: “Todo mundo morre, só eu não / Não vou morrer / Vou ficar para a semente / Cá no meu modo de ver”. Então certamente não foi ele quem cantou para subir em Franco da Rocha, no ano passado, dia 22 de fevereiro – uma Quarta de Cinzas –, aos 88 anos. Provavelmente arrumou algum zé mané para ir em seu lugar. Deve estar por aí, ouvindo os jogos do Coringão e fazendo palavras cruzadas – não o incomodem nesses momentos, que ele pode ficar furibundo!

    Foto:  Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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