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    Há 80 anos, uma baiana sincopada e cheia de bossa deu a Geraldo Pereira o seu primeiro (e maior) sucesso

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    ‘Falsa baiana’ (1944): obra-prima e maior sucesso de Geraldo Pereira, tornou-se o samba-paradigma de seu estilo.
    (Jairo Severiano – “Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade”. Ed. 34, 2008)

    “Variante do samba-choro, de fraseado sinuoso, rico em notas, presente principalmente na obra de Geraldo Pereira, (...) um dos compositores preferidos de João Gilberto”. Assim mestre Nei Lopes, em seu “Sambeabá: o samba que não se aprende na escola” (Casa da Palavra/Folha Seca, 2003), define o que seria um samba sincopado. Luís Filipe de Lima, no livro “Para ouvir o samba: um século de sons e ideias” (Funarte, 2022), continua: “Surgido no final da década de 1930 e consolidado na década seguinte, o samba sincopado é normalmente emoldurado por regional de choro, orquestra de gafieira ou formações híbridas entre essas duas”.

    Luís Filipe esmiúça o conceito de síncope musical: “um deslocamento da acentuação rítmica de uma frase ou célula qualquer. Tomando-se por base que as células rítmicas pressupõem tempos fortes – chamados muitas vezes no jargão musical de ‘chão’ ou ‘cabeça’ –, a síncope é qualquer articulação de tempo executada fora dessas cabeças, por antecipação ou retardo”. Na prática, é aquilo que se escuta nas gravações de Miltinho, Cyro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Leny Andrade, Elza Soares, Germano Mathias, Caco Velho... Ou o que se ouve nas criações de compositores como Geraldo Pereira (1918-1955), um dos principais cultores do samba sincopado.

    Mineiro de Juiz de Fora, cria do Morro da Mangueira, autor de vários sucessos da nossa música popular, Geraldo “entraria na década de 1940 para a história do samba, gênero que revigorou em escassos quinze anos de atividade. Talvez pelo caráter inovador de sua obra, que inclui até certas resoluções harmônicas inusitadas na época, Geraldo Pereira não foi suficientemente valorizado em vida”, afirmam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no primeiro volume de “A canção no tempo” (Ed. 34, 1997). Não foi Geraldo o inventor do samba sincopado, mas ele acabaria se tornando um de seus maiores representantes.

    Segundo José Ramos Tinhorão, no fascículo da História da Música Popular Brasileira da Abril Cultural (1982) dedicado ao sambista, as músicas de Geraldo Pereira “apresentavam-se ritmicamente com uma certa ginga que lembrava o próprio pisar dos malandros, em seu andar quebrado de corpo herdeiro do hábito de permanente desconfiança e alerta, oriundo do exercício da capoeiragem nas rodas de batucada”. Tendo estreado em disco em 1939 com um samba carnavalesco, “Se você sair chorando” (parceria com Nelson Teixeira), na voz de Roberto Paiva, Geraldo mostraria sua vocação para esta “ginga” rítmica, como assinalou Tinhorão, já em composições como “Acabou a sopa” (1940) e “Lembras-te daquela zinha” (1941), ambas feitas com Augusto Garcez.

    Mas foi somente em 1944 que Geraldo conheceria seu primeiro sucesso – o maior deles, na opinião de muita gente. E que só veio a existir graças a uma musa inspiradora, Isaura Alves da Silva, segunda mulher do compositor Roberto Martins (homenageado por nós neste post de fevereiro deste ano). A história, encontrada em diversas fontes, aparece com mais riqueza de detalhes tanto na biografia escrita por Lauro Gomes de Araújo – “Roberto Martins: uma legenda na música popular” (Fundação Ubaldino do Amaral, 1995) – quanto no depoimento dado pelo próprio Martins a Luís Fernando Vieira, cujo áudio pode ser escutado no quarto capítulo da série “Eu também tô aí – Os 100 anos de Geraldo Pereira”, produzida pela Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, e apresentada por Pedro Paulo Malta e Rodrigo Alzuguir.

    No Carnaval de 1944, Roberto Martins combinara de se encontrar com Isaura à meia-noite (algo nada aconselhável nos dias de hoje...) na porta do Teatro João Caetano, onde havia um famoso baile à fantasia. “Ela fez uma baiana muito bonita, gastou um dinheirão... Era a primeira vez que ela se vestia de baiana, pra me fazer uma surpresa, pra me esperar”, contou ele no bate-papo com Vieira. Mas Roberto passou antes no Café Nice, tradicional ponto de encontro de artistas na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro, e agarrou numa conversa com Geraldo Pereira.

    Só por volta das duas e meia da manhã foi se lembrar de Isaura e do encontro que havia marcado. Subiu a Rua da Carioca com o amigo e, ao chegar à Praça Tiradentes, avistou a companheira com a fantasia bonita de baiana, “mas toda murcha, claro, cansada de estar em pé ali”. Ao se aproximar com Geraldo, e para ganhar “um habeas corpusinho” – como disse a Vieira –, tentou fazer uma graça. Virou-se para o amigo e disse: “Aí a ‘Falsa baiana’, toda murcha em vez de ficar alegre...”. Roberto e Isaura terminaram voltando para casa, sem desconfiar de que aquele episódio acabaria em samba. Porque Geraldo ficou com aquela expressão na cabeça.

    Isaura Alves da Silva, a companheira do compositor Roberto Martins que foi 'musa' de 'Falsa baiana'
    Foto do acervo de Jorge Roberto e Leila Martins

    “Passado o Carnaval, mais precisamente na quinta-feira”, como conta Lauro Gomes de Araújo em seu livro, “Geraldo perguntou a Roberto se a frase era de alguma coisa que ele estivesse fazendo. Roberto explicou-lhe que o que dissera fora apenas uma piada que lhe ocorrera no momento e que não estava presa a qualquer ideia de composição. Geraldo, então, convidou-o para fazer a segunda parte de um samba que já havia começado, mas Roberto declinou dizendo que a música estava muito boa e que ele próprio, Geraldo Pereira, acabasse o samba”. O que de fato foi feito.

    Finda a composição, era preciso batalhar a gravação. Geraldo procurou seu amigo Roberto Paiva, o primeiro a levar, anos antes, uma música sua ao disco. Em depoimento a Jairo Severiano – que também pode ser escutado na série de programas da Rádio Batuta –, Paiva relembrou o episódio. Disse que estava num jogo de cartas em Vila Isabel quando Geraldo chegou com o violão, por volta de uma da manhã, já meio “calibrado”, parando o carteado. Contrariado, Paiva foi ao jardim ver o que Geraldo queria, e este mostrou o samba que havia feito.

    “Então cantou a primeira parte”, recordou Paiva. “Muito bem. Cantou a primeira, repetiu... Quando ele foi cantar a segunda parte... Mas quebrava, complicava, o acorde tava errado... E ele já tava meio ‘chumbado’... Então eu disse: ‘Olha, Geraldo, você não leva a mal. A primeira parte eu entendi. Agora, a segunda parte, sinceramente, eu não entendi, e eu tenho a impressão de que você ainda não burilou... Você termina a segunda parte, completa, bonitinho, direitinho, caprichado, depois você volta e me mostra’. Eu acho que ele se magoou (...). Ele não deve ter gostado da minha assertiva e não me procurou mais”.

    “Mais tarde, Roberto Paiva seria o primeiro a reconhecer que o que ele considerava não estar certo era exatamente a grande contribuição que Geraldo Pereira estava apresentando ao chamado ‘samba tradicional’, produzido em massa naquele tempo com mero objetivo comercial pelos compositores dos meios do rádio e das gravadoras. E, de fato, logo após o lançamento da música na interpretação de Cyro Monteiro, o que faria o sucesso de ‘Falsa baiana’ era aquela jogada malandra das síncopas, por meio do deslocamento da acentuação rítmica. Exatamente aquilo que Roberto Paiva não pudera compreender (...)”, escreve Tinhorão no fascículo da Abril Cultural.

    Cyro Monteiro compreendeu direitinho. E na manhã do dia 03/04/1944, no estúdio da gravadora Victor, na Praça da República, levou ao disco a obra-prima, acompanhado pelo regional de Benedito Lacerda: Benedito, Dino 7 Cordas, Meira, Canhoto, Popeye do Pandeiro e Raul de Barros. O mesmo conjunto registraria no acetato, naquela mesma tarde, outra composição de Geraldo, desta vez na Continental, na Avenida Rio Branco: o samba “Onde está a Florisbela”, parceria com Ari Monteiro, gravada por Batista de Sousa. Este, em depoimento que também pode ser escutado – pela voz de Rodrigo Alzuguir – no quarto capítulo da série da Rádio Batuta sobre Geraldo Pereira, recordou o desfecho desse dia:

    “Depois da gravação, nós saímos pra festejar: o Geraldo, o Cyro e eu. Meu Deus! O Cyro, meu compadre, nesse tempo era da Mayrink [Rádio Mayrink Veiga] e já era muito popular. O Geraldo tinha gravado dois sambas no mesmo dia e eu tinha gravado meu primeiro disco. Nós saímos do Nice pra Lapa pra festejar e fomos amanhecer na Taberna da Glória. O Geraldo tava alegre e comandou a noite toda: ‘Canta meu samba, ô Cyro! Agora o outro, Batista!’”. O de Cyro, claro, era este:

    Baiana que entra na roda, só fica parada
    Não canta, não samba, não bole nem nada
    Não sabe deixar a mocidade louca
    Baiana é aquela que entra no samba de qualquer maneira
    Que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras
    E deixa a moçada com água na boca

    A falsa baiana, quando cai no samba, ninguém se incomoda
    Ninguém bate palma, ninguém abre a roda
    Ninguém grita: “Oba! Salve a Bahia, Senhor!”
    Mas a gente gosta quando uma baiana quebra direitinho
    De cima em baixo
    Revira os olhinhos e diz: “Eu sou filha de São Salvador”
    (Eh, eh, meu Senhor!)

    “Este samba... naquela época era o 78 [rotações] que imperava; pois bem, meus amigos: este samba vendeu seis mil! Seis mil 78. E aquilo era o maior sucesso, quando vendia: ‘ih, vendeu seis mil’! Era um negócio!”. O depoimento de Cyro Monteiro em 1972 ao programa “MPB Especial”, da TV Cultura – transcrito no livro “A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes”, volume 1 (Sesc, 2000) –, dá uma boa medida do êxito da composição, que naquele mesmo 1944 começou a correr o Brasil: em 29 de dezembro, o Diário de Pernambuco registrava “Falsa baiana” numa apresentação de Carmen Costa no Recife. E os jornais catarinenses A Nação e A Cidade, ambos em 15/04/1945, anunciavam o samba no repertório da banda de música do 32º Batalhão de Caçadores.

    Não demorou para que ele ultrapassasse as fronteiras do país. “Marion, a graciosa cantora do rádio e do cinema brasileiro, está fazendo sucesso no palco, no [Teatro] Maipú, de Buenos Aires. Seu número mais aplaudido pelo público portenho é ‘Falsa baiana’”, dizia a legenda da foto da cantora publicada em A Cena Muda de 20/05/1947. A Rádio Visão de 15/08/1947 confirmava: abaixo de uma imagem de Marion Duarte vestida a la Carmen Miranda, o texto dizia que ela vinha “conseguindo um sucesso ruidoso” na revista “Los honrados comerciantes”, onde cantava o samba de Geraldo Pereira. No ano seguinte, os Anjos do Inferno e a estonteante rumbeira cubana Ninón Sevilla – também a caráter – apareciam interpretando a música no filme mexicano “Señora tentacion”, de José Díaz Morales.

    Não se pode afirmar que Geraldo Pereira tenha tomado conhecimento dessas andanças pelo mundo de sua afamada criação. Certo é que ele não chegaria a acompanhar a infinidade de regravações que “Falsa baiana” receberia após o seu falecimento, como mostra a página do Instituto Memória Musical Brasileira. Muitas sofreriam pequenas alterações na letra e na melodia, se comparadas com a versão original de Cyro Monteiro. Foram várias a partir de 1956, ainda na época dos long-playings de 10 polegadas. Em 78 rotações, houve apenas mais três: a de Guio de Moraes, que lançou em 1957, com seu conjunto, uma versão instrumental e suingada, gravada em novembro de 1956; e duas em 1963, a de Célia Reis e mais uma instrumental, com Clóvis Pereira e seu conjunto salpicando uma pitada de bossa nova no clássico samba. E por falar em bossa nova...

    Em 1971, como explica Pedro Paulo Malta no programa da Rádio Batuta, “Falsa baiana” passou a ser regravada com frequência. “E a gravação que desencadeia tudo isso é a da verdadeira baiana Gal Costa, se acompanhando ao violão no lendário show ‘Fa-tal – Gal a todo vapor’”, diz ele. A saudosa cantora já tinha interpretado o samba no LP “Legal”, de 1970. Gal contava que aprendeu “Falsa baiana” com um conterrâneo que ela considerava seu guru: João Gilberto. Este só lançaria a sua própria versão no álbum “João Gilberto”, de 1973, repetindo a dose ao lado do saxofonista estadunidense Stan Getz no disco “The best of two worlds”, de 1976.

    “Depois das gravações do João Gilberto, a baiana ficou internacional”, observa Pedro Paulo no programa da Rádio Batuta, complementando: “É interessante notar que a maioria das gravações que ‘Falsa baiana’ vai ter pelo mundo todo, elas vão ser calcadas na performance do João, inclusive introdução, harmonização, bossas, o jeito de emitir a voz...”. O papa da bossa nova chegou inclusive a conhecer Geraldo Pereira. O fascículo da História da Música Popular Brasileira da Abril Cultural (primeira série, de 1971) dedicado ao sambista traz um depoimento de João sobre ele, publicado originalmente na revista Veja de maio de 1971:

    “Era um malandro bem suave, falava manso, tinha aquela ginga certa de quem não tem pressa e sabe das coisas. Mas nem por isso ele perdia o velho estilo dos valentes da Lapa. Um dia, enquanto a gente estava tomando alguma coisa num bar da Lapa, passaram alguns sujeitos que ficaram olhando para nós. Ele reagiu logo: ‘Que é que vocês estão olhando? Isto aqui é gente minha’. Geraldo Pereira não tinha consciência disso, mas foi um inovador de nossa música”.

    “Falsa baiana” promoveu encontros antológicos, como o de Cyro Monteiro, lançador do samba, acompanhado pelo violão de Lúcio Alves, e o dueto feito pelos dois príncipes do samba: Roberto Silva e Paulinho da Viola. Nos discos, passeou por interpretações tão distintas quanto as de Elis Regina e Wilson Simonal, Abdias dos 8 Baixos, Cauby Peixoto, Pedrinho Rodrigues, Som Três, Paulinho Moska – presente na trilha sonora do filme “Sabor da paixão”, de Fina Torres (2000) –, Joyce Moreno e Roberta Sá, além de versões instrumentais como as de Bola Sete, de K-Ximbinho e de Zé da Velha e Silvério Pontes. A Rainha do Fado em pessoa, Amália Rodrigues, também se rendeu aos encantos da baiana de Geraldo Pereira, assim como as japonesas Noriko Ito e Kayoko Abe. Existe até uma versão em norueguês! “Ensom parade” é uma adaptação feita e gravada por Hilde Hefte.

    Por um bom tempo, a expressão “falsa baiana” seria usada – na imprensa inclusive – como sinônimo de algo enganoso, dissimulado. No Carnaval, virou fantasia – quando usada por foliões e folionas não nascidos na Bahia, obviamente. No montanhismo militar, de acordo com a definição extraída da Revista da Semana de 29/04/1950 – que também publicou a imagem dos recrutas em ação –, a “falsa baiana” é um exercício que consiste em “duas cordas paralelas, numa das quais [os alunos] seguram e noutra prendem com os pés, a 3 metros do solo, e pelas quais têm que percorrer 10 metros, enquanto os instrutores balançam-nas, procurando fazê-los cair”.

    Para a música popular brasileira, no entanto, “Falsa baiana” é um dos seus clássicos absolutos. Uma “pérola do samba sincopado”, nas palavras de Luís Filipe de Lima. Ou, como resumiu Luís Pimentel na Última Hora de 29/07/1983, “o samba que é considerado por todos como a consagração definitiva do talento criador de Geraldo”.

    Foto: Rótulo do disco da gravação original de 'Falsa baiana', o 78 rpm Victor 80-0181 / Acervo Nirez 

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