“A Canção era o encanto dos salões elegantes, aristocrática e refinada. Samba era a alegria ingênua da alma popular. A despeito da desigualdade social, ambos se amam veementemente. Modinha e Lundu, pais da Canção, querem, entretanto, que ela case com um estrangeiro rico e enfatuado. Há várias peripécias que parecem separar definitivamente os namorados. Mas o amor finalmente triunfa e o Samba e a Canção se unem para sempre”.
Enredo de peça teatral? Sim. História da vida real? Novamente sim. O parágrafo acima, transcrito de A Noite Illustrada de 13/09/1933, resume bem o início do romance entre o plebeu Vicente Celestino e a aristocrata Gilda de Abreu naquele ano. A peça era a opereta “A Canção brasileira”, de Luiz Iglezias e Miguel Santos, com música do maestro Henrique Vogeler, estreada em março no Teatro Recreio, próximo à Praça Tiradentes, no Centro do Rio de Janeiro. Gilda, aos 28 anos, debutava nos palcos. Uma estreia atribulada, como ela lembraria mais tarde no livro “A vida de Vicente Celestino” (Editora Cupolo), escrito em 1945.
Francisco Alves havia sido convidado para fazer o Samba; Vicente representaria o Tango. Mas Chico adoeceu, e seu papel foi para Vicente. Gilda, a Canção, deveria ter subido ao palco no dia da première, mas também ficou doente e foi substituída por Ida Equizeto durante 15 dias. Quando finalmente estreou, em abril, parecia, em suas próprias palavras – sempre falando de si na terceira pessoa –, “um fiapo de gente! Muito magra, cara afilada onde só existiam olhos e dentes, parecia mesmo pedir que a auxiliassem”. Foi o que fez um dos seus parceiros de proscênio: “Vicente procurava facilitar o trabalho de sua nova colega, num gesto de proteção intuitiva”, lembraria ela em seu livro.
Ainda segundo Gilda, o maestro da companhia, Bernardo Vivas, teria sussurrado para alguém, no meio da peça: “Qual, ela não faz a segunda sessão”. Mas Gilda faria cerca de trezentas: “A peça, sempre prestigiada pelo público, permaneceu em cena cinco meses justos, deixando o cartaz no fim do mês de julho. Constituía fato raro, na ocasião, uma obra demorar tanto tempo em cena”, como observaria Augusto Maurício no Jornal do Brasil de 26/09/1958. “Durante cerca de cento e cinquenta vezes, Gilda Abreu casou, em cena, com Vicente Celestino”, contou o autor do texto de A Noite Illustrada de 13/09/1933.
Numa das apresentações, a vida acabaria imitando a arte, como lembrariam os dois em diversas ocasiões. Em certo momento da peça, a Canção apoiava a mão no ombro do Samba. Gilda então aproveitou a “deixa” e soltou em seu ouvido: “Vicente, acho que estou gostando de você”. Aí o Samba travou e não conseguiu dizer nada por um tempo – para desespero do homem do ponto, que em vão lhe soprava as falas –, até a encenação seguir adiante, sem que o público percebesse o acontecido.
“À saída do teatro, peguei-o outra vez, mas desta [vez] na calçada. Ele então me perguntou o que eu havia dito, lá dentro. Disse outra vez, mas ele nada respondeu. Como se vê, eu que o conquistei”, revelaria marotamente Gilda a Luiz Alberto Cabral, anos depois (Jornal do Brasil, 23 e 24/04/1967). Na verdade, o interesse de Gilda por Vicente já vinha de muito tempo antes. Teria se iniciado em 1919 – data lembrada por ela em algumas ocasiões, embora não haja consenso entre as diversas fontes que mencionam o episódio.
Fontes que também divergem sobre o que levou o jovem tenor Vicente Celestino a frequentar a residência da cantora lírica e professora Nícia Silva, na Tijuca. Para algumas, ele participava dos ensaios de uma ópera: seria “Izath”, de Villa-Lobos, na opinião tanto de Brício de Abreu, no livro “Esses populares tão desconhecidos” (E. Raposo Carneiro, 1963), quanto de Ary Vasconcelos, no primeiro volume do seu “Panorama da Música Popular Brasileira” (Livraria Martins Editora, 1964), e mesmo na lembrança da própria Gilda (Jornal do Brasil, 03/10/1974). Para outras fontes, Vicente fazia aulas de canto com dona Nícia.
Fato é que a filha desta, por volta dos seus 14-15 anos, proibida de entrar na sala, ficava observando o moço, dez anos mais velho, pela fresta da porta. “Vi o ensaio e impressionei-me com um rapaz alto, magro, vibrante, de cabelos compridos e uma voz fora do comum”, recordaria Gilda em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio em 1974. Foi na opereta do Teatro Recreio que Vicente e Gilda se reencontraram e se apaixonaram. Em setembro, iriam se casar novamente no palco, desta vez na revista “A casa branca”, de Freire Júnior, como mostrava A Noite Illustrada de 13/09/1933.
O matrimônio para valer viria no mesmo mês, no dia 25, na igreja da Candelária (ou na residência da Tijuca: mais uma vez há divergência entre as fontes). Naquela noite, quando encenavam a peça, realidade e ficção acabariam se misturando, como a noiva recordaria em seu livro sobre Vicente: “Lá pelas tantas, quando Gilda apareceu em cena com o vestido de casamento que usara durante o ato religioso, acompanhada de Vicente, a orquestra atacou a ‘Marcha nupcial’, enquanto que das galerias pombos brancos foram atirados para o palco. Um deles empoleirou-se no ombro de Vicente e olhando-o cara a cara parecia querer dar-lhe os parabéns”.
Vicente e Gilda em três imagens: no cenário de “Juriti”, no Teatro Recreio, em 23-11-1933 (Arquivo Nacional), num momento romântico no suplemento Ilustrada da Folha de S. Paulo (05-06-1979) e com o livro “As canções na vida de Vicente Celestino”, de Gilda de Abreu, no fascículo “História da Música Popular Brasileira” (Abril Cultural, 1982).
Foi o casamento do trovador com a grã-fina, como apontou Leopoldo Oberst na revista O Cruzeiro de 10/05/1952: “Para o antigo menino pobre (...), o amor da moça grã-fina era como um sonho irrealizável”. Gilda, em sua biografia de Vicente, recorda o que se dizia à boca pequena quando o casamento foi noticiado: “Eles vão se casar? Mas é impossível! Não pode dar certo. Não vai dar certo! Eles são tão diferentes um do outro! Vicente é um boêmio! Não dá para esse negócio de casamento!”.
Dona Nícia também tinha dúvidas, revelou o cantor em depoimento a Guido Guerra, publicado no livro “Vicente Celestino: o hóspede das tempestades” (Record, 1994): “Ela temia que não desse certo. Gilda vinha de um mundo diferente. Moça fina, tinha tido a melhor instrução, falava vários idiomas com fluência. Eu vinha de outro mundo, era um homem do povo. A vida cuidou de me ensinar o pouco que aprendi”.
As coisas não foram realmente nada fáceis para esse filho de imigrantes italianos chegados ao Brasil em 1892. Antonio Vicente Felippe Celestino nasceu na Rua Paraíso, no bairro carioca de Santa Teresa, há 130 anos, em 12/09/1894. Com dez irmãos, aprendeu a se virar desde menino: foi vendedor de peixes, jornaleiro, ajudante de bicheiro, aprendiz de pedreiro e trabalhou na fábrica de sapatos do pai. Descobriu sua verdadeira vocação ao escutar pela primeira vez, na rua, uma música tocada num gramofone que pertencia a ninguém menos que Frederico Figner, o empresário que trouxera a engenhoca para o Brasil, em 1900.
Sua estreia em disco (lançado pela Odeon) deu-se com duas valsas, “Os que sofrem” e “Flor do mal”, no mesmo 1915 em que debutaria como corista, no Teatro São José de São Paulo. Rapidamente alcançaria um sucesso tremendo como ator e intérprete de canções, tangos-canção, valsas etc. “Vicente Celestino foi nosso primeiro cantor profissional a se tornar ídolo”, destaca Rodrigo Faour em “História da música popular brasileira, sem preconceitos” (Record, 2021). O lado compositor apareceria apenas em 1930, no 78 rotações da Odeon contendo a canção “Quando te vi” e o samba-canção “Vovô e vovó” (parceria com Atílio Milano).
Cantor de “veleidades operísticas”, Vicente foi o “introdutor das canções neorromânticas de caráter trágico” em nossa música popular, como assinalou José Ramos Tinhorão em “Pequena história da música popular: segundo seus gêneros” (Editora 34, 2013). Seus “arroubos dramáticos e operísticos” teriam sido a raiz da “canção brega-romântica” e da música de fossa que imperou nas décadas de 1950 e 1960, como Faour aponta na sua “História sexual da MPB: a evolução do amor e do sexo na canção brasileira” (Record, 2006).
Essa tendência para o trágico/tragicômico – a paixão levada às raias do sofrimento e, às vezes, do ridículo – pode ser observada nas letras das canções de seu repertório, invariavelmente grandes sucessos populares, como “Ontem ao luar” e “Patativa” – nome de uma ave de canto mavioso que, por causa de Vicente, acabaria virando sinônimo de pessoas com bela voz. Mas ele não cantaria só agruras, desesperos e padecimentos.
Haveria espaço para um samba de Sinhô, “Que vale a nota sem o carinho da mulher”, para o samba-canção “Linda flor” – considerada a primeira música deste gênero no Brasil, de autoria de Henrique Vogeler, cantada por Vicente com a letra original de Cândido Costa e depois, com versos novos, transformada num megassucesso por Aracy Cortes – e até para “Legal com as duas”, raro momento de humor e descontração em sua obra, que iria se repetir nos anos 1950 com o fox “Lazzarella”.
Sobre esse lado mais desconhecido de Vicente, Gilda conta na biografia que ele, durante apresentação num hospital de Santa Catarina em 1944, “ao ver o efeito que suas dolorosas canções causava, vendo lágrimas escorrerem de quase todos aqueles rostos sofredores”, ele próprio também começando a se emocionar, não teve dúvidas: passou a contar anedotas, “narrou fatos pitorescos de sua longa carreira e teve a satisfação de fazer rir os que havia feito chorar”.
“Gilda tivera uma vida completamente oposta à de Vicente”, escreveu Brício de Abreu. A filha do médico João de Abreu e da soprano Nícia Silva nasceu há 120 anos, no dia 23/09/1904, em Paris – mas sempre se disse brasileira, pois foi registrada na embaixada do país. Na ocasião, sua mãe atuava em “Rigoletto” – conforme diria Vicente a Guido Guerra –, daí ela ter recebido o nome da protagonista da ópera de Verdi. Só viria para o Brasil aos 4 anos. Enfrentando a resistência do avô e do pai, que não a queriam na vida artística, ao fazer 18 anos passou a estudar canto com sua mãe, obtendo medalha de ouro no Instituto Nacional de Música. Apresentou-se em festas de caridade, em concertos e até em óperas.
Seus dois primeiros discos de 78 rotações foram lançados em agosto de 1930 (tinha ela quase 26 anos) pela Odeon. O primeiro trazia duas toadas, “Tenha medo do bicho” e “A baiana tem cocada”; no outro estavam uma valsa, “You’re always in my arms”, e o fox “O kinkajou”, ambos com letra em português de Osvaldo Santiago. No mesmo ano, gravou em duo com ninguém menos que Francisco Alves a valsa-canção “Se estou sonhando”. Voltaria ao estúdio apenas em 1935, já ao lado do marido e em nova gravadora, a Victor: “Ouvindo-te”, tango-canção de Vicente com arranjo de Pixinguinha e o virtuoso contracanto de Gilda dando um colorido especial à voz do tenor, faria enorme sucesso – tanto que a dupla o regravaria duas vezes, em 1950 e 1951.
Uma bela dupla em disco, aliás: Vicente era A Voz Orgulho do Brasil; Gilda, soprano ligeiro, mostrava-se uma discípula à altura de dona Nícia. Juntos, deixariam registrados em 78 rpm pérolas como “Irapuru” (tango escrito pelos dois), “Canção de amor” (só de Vicente), “Viúva Alegre em três minutos” (adaptação de Celestino sobre a ópera de Franz Lehár) e “A Gigolete” (outra versão dele, desta vez em cima do foxtrote “Gigolette”, da opereta “Dança das libélulas”, do mesmo Lehár). As duas últimas músicas seriam os derradeiros registros fonográficos de Gilda nas bolachinhas, feitos em 1954. Ela não chegaria a lançar long-playings; nos álbuns do marido, teria raras participações.
“Não há como negar a ligação direta de Gilda de Abreu com o crescimento de Celestino. Para o que concorreu decisivamente, por vezes, com o sacrifício da própria carreira”, relata Guido Guerra. Ela passaria à história lembrada basicamente como a grande incentivadora de Vicente e a guardiã da sua memória. Mas teve atuação significativa como atriz, cineasta, produtora, roteirista, escritora e teatróloga. Infelizmente seria pouco lembrada como cantora e compositora. Na verdade, as diversas manifestações de arte em sua vida acabariam muitas vezes entrelaçadas.
Estreou em 1936 como atriz de cinema em “Bonequinha de seda”, de Oduvaldo Vianna. Além de interpretar o papel da protagonista – que lhe valeu, na época, o título de “A namorada do Brasil” –, compôs (com Narbal Fontes) a valsa-tema da fita e foi sua intérprete em disco, que trazia na outra face mais uma música sua (em parceria com Francisco Araújo e com Mister Evans, diretor da Victor no Brasil), o fox “I love you”. Empenhou-se para fazer do marido o seu par romântico no filme, mas foi voto vencido. Como Vicente contaria mais tarde a Guido Guerra, “o diretor dessa fita, Oduvaldo Vianna, dizia que eu tinha mais pinta de estivador que de galã”.
Celebrada como uma das pioneiras diretoras de nossa terra, Gilda iniciou na função com o pé direito – e com uma das maiores arrecadações do cinema nacional: um filme cuja história foi baseada numa música escrita por Vicente Celestino e levada ao disco em 1936, virando peça teatral em 1942. Pelas mãos de Gilda, em 1946 “O ébrio” foi para a telona, com seu marido no papel-título. Tão brilhantemente defendido por ele – um abstêmio convicto – que o público passou a confundir a vida do Dr. Gilberto Silva, o personagem central, com a do próprio cantor.
À Ultima Hora de São Paulo, Gilda confessaria anos depois (26/12/1968) ter sofrido preconceito: “O pessoal técnico não aceitava a ideia de trabalhar sob a direção de uma mulher. Então, eu era obrigada a trabalhar com roupas de homem e a proceder como tal. Não raras vezes, eu ouvia as críticas contrárias do pessoal”. Mas foi em frente e lançou, em 1947, “Pinguinho de gente”, seu segundo longa-metragem.
Neste mesmo ano, Vicente registrou no acetato a canção “Alma de palhaço”, dele e de Mário Rossi, seu parceiro constante durante cerca de vinte anos. Este também seria o título da “primeira novela musical brasileira” (segundo O Cruzeiro de 31/05/1952), ou “a primeira grande novela musicada” do Brasil (de acordo com a Vida Doméstica de junho daquele ano), escrita por Gilda de Abreu para a Rádio Tamoio, com Vicente, claro, no papel principal.
Gilda não teria tanta sorte com a película seguinte, de 1951, também inspirada num tango-canção – este, sim, um tremendo êxito – de Vicente Celestino, gravado por ele em 1937. Os versos contam a conhecidíssima história – segundo Vicente, baseada numa antiga lenda – do campônio que, instado por sua amada, mata a própria mãe e arranca seu coração como prova de amor; a caminho de levá-lo para a moça, tropeça, quebra a perna e deixa escapar de suas mãos o órgão; este, caído na estrada, implora: “Vem buscar-me, filho, aqui estou; vem buscar-me que ainda sou teu!”.
“Só que no filme, Gilda, autora do argumento, amenizou a tragédia, cancelando o matricídio. Talvez por isso não tenha repetido o sucesso de ‘O ébrio’...”, avaliam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no volume 1 de “A canção no tempo” (Editora 34, 1997). “Coração materno” – com Gilda e Vicente nos papeis principais – sofreu inúmeros contratempos no período das filmagens e da montagem, além de ter recebido críticas devastadoras. “Durante dois anos lutei tenazmente para reconquistar a saúde que aquele filme tanto abalou”, escreveria ela em “Minha vida com Vicente Celestino” (Butterfly Editora, 2003).
Uma alegria o casal teria nesse período, mais precisamente em 1952: a compra do apartamento próprio na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo, bem na altura da Curva da Amendoeira, após muitos anos morando de aluguel. Ainda em 1952, Gilda de Abreu faria mais um registro fonográfico solo, a canção “Moleque da rua”, de Vicente e Luiz Iglezias. Por essa época, Vicente – aceitando uma sugestão da própria Gilda – estava tendo aulas de canto com dona Nícia, para se aprimorar.
“Foram anos de luta, de perseguição, de mesquinharia, de inveja, de maldade...”, recordaria Gilda em “Minha vida com Vicente Celestino”. Eram novos tempos, Vicente procurando se reinventar na década de 1950, emprestando seu famoso Dó de peito a um repertório mais moderno, que incluía os sambas-canção “Vingança” (Lupicínio Rodrigues), “Conceição” (Dunga e Jair Amorim) e “Se todos fossem iguais a você” (Tom e Vinicius) e até um samba-exaltação, “Fantasia carioca” (Alcyr Pires Vermelho e Osvaldo Santiago).
Já era então considerado velho e ultrapassado por boa parte da mídia e da crítica musical – mas não por seu fidelíssimo público, para quem ele faria shows em teatros, cinemas, circos e auditórios de inúmeras cidades pelo interior do Brasil até o fim da vida. Jairo Severiano, em “Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade” (Editora 34, 2008), afirma que ele “constituiu-se num dos casos de maior longevidade artística em nossa música popular, mantendo-se ativo, com um bom número de fiéis admiradores, por mais de meio século”.
Lançou o último disco de 78 rotações em 1963, contendo o fox “Um sonho e nada mais” (dele e de Jaci Moraes) e o bolero “Viver para te amar” (Roberto Martins e Osvaldo Santiago). Desde a década anterior gravava também long-playings: o derradeiro – com Vicente então enfrentando problemas de saúde – seria lançado em 1968, “Obrigado meu Brasil” (cuja música-título, que já predispunha uma despedida, é de autoria de Gilda de Abreu e Marina Ghiaroni).
Convidado a aparecer num programa de TV com Caetano Veloso – que havia interpretado seu clássico “Coração materno” no LP “Tropicalia ou Panis et circensis”, lançado em meados de 1968 –, Vicente participou do ensaio na gafieira Som de Cristal, em São Paulo, no dia 23/08/1968, onde aconteceria a gravação horas mais tarde. Após jantar no Hotel Normandie, começou a se vestir para a apresentação, mas teve um colapso cardíaco fulminante no quarto e morreu nos braços de Gilda, aos 74 anos. Dali a oito dias, Vicente receberia, no Teatro Record, seu primeiro Disco de Ouro, que acabou sendo entregue a uma desolada Gilda.
Livros de Gilda de Abreu na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
“Quando perdi Vicente, perdi a parte mais importante de mim. Minha alma foi com ele”, disse a Norma Marzola (Fatos e Fotos, 21/08/1969). Para Marisa Raja Gabaglia (O Globo, 08/09/1971), detalhou sua vida conjugal: “Marisa, nós fomos felicíssimos. Nunca houve entre nós uma palavra áspera, uma discussão, uma mágoa. Éramos os dois, acima de tudo, amigos. (...) Quando viajava, Vicente telefonava a qualquer hora da noite ou da madrugada, e eu punha mil bilhetinhos nos seus ternos e sapatos. Quando os descobria, o Vicente ficava felicíssimo”.
Em “Minha vida com Vicente Celestino”, Gilda se recorda de uma entrevista na qual descrevia Vicente como “o companheiro dos momentos amargos, o amigo em que realmente se confia e também como um filho muito amado. O Vicente representa, para mim, o filho que eu não tive e que tanto desejei (...)”. Embora o casal não tenha deixado descendentes – Vicente teve Vitório, fruto de um relacionamento anterior –, consideravam o jovem tenor José Spintto como um filho espiritual. Foi ele quem amparou Gilda na viuvez, fazendo-lhe companhia e casando-se com ela em 1977.
Com os mesmos 74 anos que tinha Vicente quando faleceu, Gilda finalmente partiu ao seu encontro em 04/06/1979, sendo sepultada ao seu lado, no cemitério São João Batista, em Botafogo. Deixou como legado, além das peças teatrais, dos longas-metragens e das gravações em disco, diversos livros publicados, alguns deles adaptações romanceadas das canções-filmes que ela e Vicente eternizaram: “Bonequinha de seda”, “O ébrio”, “Coração materno”, “Alma de palhaço”. Também deixou para a posteridade depoimentos ao Museu da Imagem e do Som do Rio em 1974 – sete anos após o do marido – e, em 1977, ao Serviço Nacional de Teatro.
Gilda fez estrear, no Cine Paissandu, também em 1977, o último tributo feito por ela ao seu eterno Vicente, com quem fora casada por 34 anos e 11 meses: o curta-metragem “Canção de amor”, título de um dos números musicais cantados por ambos no filme “Coração materno”. Pela homenagem, e por tudo que Gilda representou na vida dele, é bem provável que Vicente, de algum lugar no infinito, tenha agradecido à sua amada do jeito que sempre costumava fazer: “Obrigado, Flor das Flores”.
Na foto principal: Vicente Celestino e Gilda de Abreu na revista O Cruzeiro (10-05-1952)