Podem raspar a terra quanto quiserem, a raiz sempre brota de novo.
(Inezita Barroso – Gazeta de Pinheiros, 14/01/1989)
“Êta, programa que eu gosto!”. Esse era o bordão que marcou desde o início o programa “Viola, minha viola”, da TV Cultura, cujo primeiro episódio foi ao ar em abril de 1980, apresentado por Moraes Sarmento e Nonô Basílio – e, a partir de agosto, com a saída deste último, por Sarmento e Inezita Barroso, que terminou por apresentá-lo sozinha durante mais de duas décadas. Parece que foi ontem que a gente ligava a TV para vê-la no comando de uma das mais longevas atrações da nossa telinha – mas já faz dez anos que Inezita nos deixou, no dia 8 de março de 2015, em São Paulo, quatro dias após seu aniversário de 90 anos.
Talvez não seja mera coincidência sua partida ter ocorrido justamente no Dia Internacional da Mulher: por toda a vida, ela sentiu a dificuldade de ser uma desbravadora num mundo tipicamente machista, como deixou claro em depoimento a Rosa Nepomuceno para o livro “Música caipira: da roça ao rodeio” (Editora 34, 1999):
“A vida é gozada. Se você canta desde cedo, dizem que você é uma criança prodígio, tem futuro. Aí mete a cara na profissão e ‘ah! ela é muito jovem, ainda não conhece nada de folclore’. Você sabe das coisas, mas não pode abrir o bico porque é uma jovenzinha. Aí vai indo, pega uma carreira de sucesso e ‘ah! ela é uma estrela, não tem tempo de se aprofundar nas coisas’. Aí fica velha. ‘Puxa, ela sabe mesmo, né?’. Então você só tem reconhecimento depois de 60 anos, quando ninguém mais te inveja, você não é mais linda, maravilhosa, cinturinha fina. Isso é horrível”.
O desabafo resume bem a história de vida da moça de nome pomposo, Ignez Magdalena Aranha de Lima, paulistana nascida na Barra Funda há 100 anos, em 04/03/1925, filha de uma família tradicional do estado – mas que de princesa nunca teve nada. “(...) Inezita Barroso nasceu em berço de ouro, numa família quatrocentona paulista, mas nem por isso as coisas foram mais fáceis para ela. Em seu caso, pesava o machismo de seu tempo, que ela teve de romper para viver de música, incluindo o fato de querer se dedicar à viola, até então um instrumento ‘menor’, tocado apenas por peões em fazendas do interior e restrito ao mundo masculino”, escreve Rodrigo Faour na sua “História da música popular brasileira, sem preconceitos” (Record, 2021).
Foi esse instrumento, executado com destreza pelos violeiros das fazendas de sua família no interior de São Paulo – espalhadas por Campinas, Matão, Itapira, Santa Cruz do Rio Pardo... –, onde ela passava as férias, que primeiro a encantou. Era o seu lado roceiro desabrochando. Quanto ao urbano, na Barra Funda, a menina Ignezita foi uma moleca de rua: “Eu odiava boneca. (...). Gostava mesmo era de jogar pião, bola de gude, futebol e voleibol, empinar papagaio, subir em árvores (e cair delas, é claro)”, confessou a Arley Pereira em depoimento para a biografia “Inezita Barroso: a história de uma brasileira” (Editora 34, 2013).
“Sua turminha era a do irmão [Marcos], o que fazia dela a única presença feminina em meio a um pequeno batalhão de meninos, do qual ela era a líder inconteste”, escreve Arley Pereira. Adolescente, ela chegaria a meia-esquerda e capitã do time de futebol local – onde era a única garota –, além de participar de campeonatos de tênis e natação. Já então havia sido fisgada pela música. Não podia aprender viola caipira – qual moça tocava esse instrumento na época? –, mas acabou “forçando” a família a colocá-la numa aula de violão aos sete anos, depois que seus pais, Olyntho Ayres de Lima e Ignez Almeida Aranha, descobriram que ela assistia, escondida, às aulas de violão da tia Carlota e depois pegava o instrumento para tocar.
Aluna da professora Mary Buarque, foi pelas mãos desta que ela daria os primeiros passos no rádio paulistano, no programa dominical “A hora infantil” da Cruzeiro do Sul, ainda em 1933, aos oito anos. Era identificada como Ignezita Aranha de Lima nos programas dos eventos beneficentes de que participava com as colegas. Esperta, observava os mais velhos tocando viola nas fazendas da família, como conta Arley Pereira: “Ela olhava os ponteados de viola, memorizava e tentava fazer igual no violão. Seu interesse acabou por convencer os violeiros, que viram na menina da cidade um potencial e um interesse que as moças do local não tinham. Aos poucos, foram ensinando os segredos do instrumento para ela.”
Na Rádio São Paulo, onde se apresentou em 1934 cantando e tocando violão, Ignezita encantou o próprio Capitão Furtado (Ariowaldo Pires), nome de ponta da música caipira. Mas a carreira promissora da menina prodígio – que adorava fazer shows privados para as tias no solar dos Aranha – seria brecada aos 13 anos pelo pai, que a fez aprender piano “a sério”. Em sua primeira viagem ao Rio, com 14 anos (1939), conseguiu assistir, com os tios, uma apresentação de Carmen Miranda e Grande Otelo no Cassino Atlântico, em Copacabana. “Naquele momento surgiu para valer a vontade de ser cantora”, destaca Arley.
A de ser bailarina ficou pelo caminho, como ela revelou à Seção Feminina do Diário de Notícias de 20/05/1956: “por balé tive verdadeira paixão, mas meu pé não me deixou ir além da meia ponta. Eu queria ser bailarina. Ser cantora para mim não representava nada, eu achava fácil, mas ser bailarina era aprender, era vencer dificuldades, e isso me parecia uma forma de ser heroína...”.
Por volta dos onze anos, outra vocação: gostava de catalogar tudo. Não por acaso, em 1946, com 21 anos, concluiu o curso de Biblioteconomia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o que seria útil mais tarde na catalogação do seu próprio acervo, constituído de itens advindos das regiões mais diversas do país. “Minha casa é um museu, principalmente de folclore. Pois sei cada coisa onde está e, se me pedir, localizo imediatamente”, disse ela a Arley. “Como tenho curso de bibliotecária, para mim é fácil fichar e organizar esse material”, declarou ao Diário de Notícias de 20/05/1956.
Três aspectos de Inezita Barroso: a bibliotecária, a pesquisadora e a violeira e cantadora da genuína música caipira brasileira (Fotos da Coleção José Ramos Tinhorão/IMS)
Inezita teve que enfrentar a resistência de uma parte de sua família que não queria vê-la no mundo artístico – e, como bem assinalou o redator d’O Estado de S. Paulo de 27/05/1984, ela “só passou a profissional no exato momento em que a maioria das profissionais de sua época voltavam a ser amadoras”, ou seja, com o casamento. Aos 22 anos, em 23/09/1947, Inezita juntou os trapinhos com o advogado cearense Adolfo Cabral Barroso, de quem adotaria o sobrenome e com quem teria sua única filha, Marta, nascida em 12/12/1949.
Durante o namoro com Adolfo, Inezita confraternizava com os alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Dali sairiam amizades que ela levaria por toda a vida, como Paulo Autran e Renato Consorte, futuros grandes atores. Renato chegaria, em 1954, a tocar atabaque em duas gravações de Inezita: “Roda a moenda” – composição do também ator Haroldo Costa – e “Na fazenda do Ingá”, de Zé do Norte. Apesar da separação em 1956, o enlace com Adolfo foi um período feliz para ela: ele sempre a apoiou e organizava festas e saraus em casa com a presença de vários artistas.
Antes de se tornar cantora profissional, Inezita enveredou com sucesso pela sétima arte. Convidada por outro amigo, Alberto Cavalcanti, ela estreou como atriz no filme “Angela”, lançado em agosto de 1951, onde contracenava com Ruth de Souza, com quem iniciou uma amizade para toda a vida. Depois vieram “Destino em apuros” (1953), o primeiro filme brasileiro a ter cenas em cores; “O craque”, primeira película nacional a ter o futebol como tema central, proporcionando à corintiana Inezita conviver com os jogadores do seu time de coração; “Mulher de verdade” (1954), com roteiro inspirado no famoso samba de Ataulfo Alves e Mário Lago, onde Inezita fazia a protagonista, a enfermeira Amélia, papel que lhe valeu o troféu Saci – maior prêmio da indústria cinematográfica nacional de então – e o Prêmio Governador do Estado, ambos como melhor atriz.
Também em 1954 estaria no elenco de “É proibido beijar” e, no ano seguinte, de “Carnaval em Lá maior”. Inezita participaria ainda do filme “O preço da vitória” (1958), que pegava carona na primeira conquista de uma Copa do Mundo pela seleção brasileira, na Suécia. Anos mais tarde, faria apenas mais duas aparições na telona: no documentário “Isto é São Paulo” (1970) e na ficção “Desejo violento” (1978).
Estando no Nordeste em 1951, “onde passei dois meses colhendo material folclórico” – explicou ao Diário de Notícias de 20/05/1956 –, foi convidada pelo compositor Capiba para participar de um recital no Teatro Santa Isabel em 13 de outubro, quando recebeu seu primeiro cachê, por três apresentações. Em seguida, viu-se contratada por uma semana pela Rádio Clube do Recife – o que marcaria o início de sua carreira profissional. Só depois de passar por várias cidades pernambucanas, voltaria a São Paulo, onde, em maio de 1952, passaria a fazer parte do cast da Rádio Nacional. Sua primeira aparição na televisão foi em 1954, no programa “Afro”, da Tupi, e logo estaria na Record (onde ficou por oito anos) apresentando o “Vamos falar de Brasil”, o “primeiro programa da televisão brasileira inteiramente dedicado à música – antes, cantores apareciam apenas em programas de variedades”, conta Arley Pereira.
No “Afro”, Inezita mostrou em frente às câmeras o “Funeral d’um Rei Nagô”, de Hekel Tavares e Murilo Araújo, uma das duas faixas do seu primeiro disco, lançado em outubro de 1951 – do outro lado havia a canção amazônica “Curupira”, de Waldemar Henrique. Foi a estreia fonográfica de Inezita, cuja carreira excepcional se estenderia por décadas. Em 78 rotações, ela gravou 31 discos entre 1951 e 1963, mais um jingle político, “J. B. com o povo”, para a campanha de José Bonifácio Coutinho Nogueira, candidato ao governo de São Paulo em 1962. Na época dos long-playings, segundo informação publicada no livro de Arley Pereira, até dezembro de 2012 a contabilidade era de quatro discos em 10 polegadas (um deles, uma coletânea de suas gravações em 78 rpm) e 23 vinis de 12 polegadas (sendo cinco coletâneas), mais 14 compactos, 15 CDs e participações em discos e DVDs diversos.
Após debutar no acetato em 1951, ela voltaria a gravar apenas em abril de 1953, na bolachinha que trazia o baião “Catira” numa das faces. Em agosto do mesmo ano, Inezita entrou em estúdio para emprestar sua voz a dois de seus mais estrondosos sucessos, lançados num único 78 rpm. Em um dos lados, uma autêntica moda de viola que a acompanharia vida afora: “Marvada pinga”. No outro, um marco da história do samba de São Paulo que Inezita gravou primeiro: “Ronda”, de Paulo Vanzolini, cuja história foi contada neste post.
Samba não era novidade para a paulistana: fã confessa de Noel Rosa, podia ficar horas cantando seus clássicos – chegou a dedicar toda a segunda parte de um recital que fez no Teatro Brasileiro de Comédia, em 05/03/1951, às composições do Poeta da Vila Isabel. “Billy Blanco, Garoto, Dick Farney, essa era a minha turma no Rio. Pessoal bacana que respeitava, gostava da música brasileira”, disse a Rosa Nepomuceno. Também conviveu com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Antônio Maria e Ary Barroso – este costumava brincar que era seu parente. Por isso tirou de letra os seis sambas que gravou em 78 rotações, quatro deles de Billy Blanco – dos quais três, lançados por ela, fariam um enorme sucesso: “Os estatutos da gafieira” (1954), “Moleque Vardemá” (1955) e “Estatutos de boate” (1956).
“Maracatus, cocos, modas de viola, canções praieiras, lundus, valsinhas, toadas, pagodes caipiras e xotes do melhor da música popular conviveram em harmonia no seu repertório (...)”, observa Rosa Nepomuceno. O ecletismo de Inezita também é destacado por José Ramos Tinhorão no Jornal do Brasil de 16/05/1975: após afirmar que “(...) chega a ser quase incrível a fidelidade de uma artista como Inezita Barroso às tão desvalorizadas raízes da criação musical brasileira”, ressalta que tal fidelidade a levaria “a assumir a imagem de ‘cantora de folclore’ – quando o mais exato seria classificá-la apenas de cantora de gêneros brasileiros”. Um de seus maiores êxitos, por exemplo, é uma valsa: a linda “Lampião de gás”, de Zica Bergami.
Desde a época dos 78 rotações, Inezita sempre passeou com muita graça e desenvoltura por ritmos diversos, como o “Coco do Mané” de Luiz Vieira, a “Dança de caboclo” de Hekel Tavares e Olegário Mariano, a famosíssima toada “Fiz a cama na varanda”, de Dilu Melo e Ovídio Chaves, e a dolente “A voz do violão”, de Francisco Alves e Horácio de Campos, onde a cantora pode mostrar, com sua voz potente e grave, seu lado de seresteira, acompanhando-se ao violão.
Pesquisadora incansável, Inezita não poderia mesmo deixar de fora do seu repertório peças folclóricas, como “Taieiras” – a mesma “Virgem do Rosário”, com pequenas modificações na letra, que Olga Praguer Coelho levara ao disco em 1935. Do folclore de Minas Gerais veio “Minêro tá me chamano”; do Rio Grande do Sul, as conhecidíssimas “Balaio” e “Pezinho”, ambas recolhidas pelos folcloristas gaúchos Luiz Carlos Barbosa Lessa e João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes. Outra canção popular famosa, a toada “Meu limão, meu limoeiro”, foi adaptada por João Carlos Burle, cuja versão se tornaria bastante conhecida nas vozes de Sílvio Caldas em 1937 e de Wilson Simonal em 1966.
A cantora iria acabar mesmo se notabilizando pela autêntica música caipira – e não “sertaneja”, como ela costumava frisar – que ela, agarrada à sua viola, mostraria pelos quatro cantos do Brasil desde a época dos 78 rpm. Sabendo, como ninguém, qual é “O gosto do caipira”, Inezita desde o início levou ao acetato pérolas como “Baldrana macia” – uma deliciosa moda campeira –, a “Moda da onça” (adaptada por ela mesma) e a “Moda do bonde camarão” – um grande sucesso de Cornélio Pires e Mariano, sobre o bonde de cor avermelhada que marcou época em São Paulo –, entre outras. Com Raul Torres – que ela conhecia desde pequena, pois o lendário compositor havia trabalhado com seu pai na Companhia Estrada de Ferro Sorocabana –, lançou um disco em 1961, com “Desafio” (do próprio Torres) e “É balaiá” (dele com Anacleto Rosas Júnior). O último 78 de Inezita chegaria às lojas em 1963, trazendo a famosíssima moda “Cavalo preto”, de Anacleto, e o arrasta-pé “Mineirinha”, de Torres.
“(...) naquela época ser uma mulher desquitada não era fácil. Inezita não só era desquitada, como fumava, dirigia, gostava de sair à noite e ainda por cima se sustentava sozinha!”, revela Arley Pereira. Em 1957, a intrépida Inezita meteu-se numa viagem com o ex-cunhado, o ator Maurício Barroso, e o amigo Nelson Camargo para, durante três meses, rodar o Nordeste fazendo pesquisas para um filme que acabaria não sendo feito. Detalhe: de jipe. Outro detalhe: com ela própria ao volante! “Uma das coisas importantes entre tantas outras que rapidamente aprendi e compreendi foi a origem do machismo nas manifestações folclóricas brasileiras. Mulher quase não canta, só bate palmas. (...) Nas rodas de cateretê, por exemplo, cantando ou tocando, mulher não tem vez”, diria anos depois a Arley.
Inezita e seus LPs em fotografia de Nagib Allit
(Coleção José Ramos Tinhorão / IMS)
Das pesquisas da viagem resultariam os originais do livro “Roteiro de um violão”, que Inezita acabaria queimando, desgostosa com os novos tempos. Nos anos 1960, a Bossa Nova, a Jovem Guarda e os ritmos estrangeiros não dariam espaço para música caipira. Foi um período de vacas magras para Inezita, que pensou até em desistir da carreira e virar bibliotecária de vez. Também as décadas de 1970 e 1980 trariam dificuldades, com o aparecimento da “música sertaneja moderna”. Felizmente as apresentações dela continuaram, pelo Brasil e no exterior. Passou a dar aulas de violão – por ironia, ensinando a seus alunos o que eles desejavam aprender: as músicas de Roberto Carlos. Chegou a abrir um conservatório para o ensino de piano e violão, que não deu certo e foi transformado na Casa da Inezita, um restaurante de comida caseira com música (caipira e chorinho) ao vivo – este sim um sucesso, que durante um ano ajudou a equilibrar as contas.
Com o “Viola, minha viola”, do qual seria a anfitriã até quase o final da vida, Inezita voltaria aos holofotes. No início dos anos 1990, chegaria a apresentar três programas de uma vez: o citado “Viola”, da TV Cultura, aos domingos; o “Mutirão”, toda sexta-feira, na Rádio USP FM (de 1988 a 1993); e o “Estrela da manhã”, de segunda a sexta, na Rádio Cultura AM (entre 1990 e 1999).
Ainda nos anos 1980, ela se tornaria professora universitária, lecionando folclore em Pouso Alegre (MG), em Mogi das Cruzes (SP) e também na sua cidade natal, na Unicapital, da Mooca, onde recebeu em 2005 o título de Doutora Honoris Causa – uma das incontáveis premiações que acumulou em toda a sua carreira. Não há nesse post prateleiras suficientes para exibir todas – basta dizer que, só de Roquette-Pinto, foram sete troféus! Fora o Tupiniquim, o Sharp, a Ordem do Mérito Cultural, a Ordem do Ipiranga (nos graus de Comendadora e Grande Oficial)...
Dos alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP e de Jornalismo da PUC-SP, ganhou o documentário “Inezita Barroso, a voz e a viola” (2009/2011). Mais recentemente, Hélio Goldsztejn celebrou a grande artista com outro documentário, “Inezita” (2018). Homenagens mais do que merecidas para quem sempre militou pela autêntica música regional de nossa terra.
“Ela defende com unhas e dentes – se necessário, com baionetas e canhões – a cultura popular do Brasil”, escreveu Assis Ângelo no D. O. Leitura de janeiro de 1990. Mário Júlio, na Revista do Rádio de 10/07/1954, já havia percebido: “Se está em casa, ou numa roda de amigos, é divertida, risonha, amável, até o momento em que se começa a falar de música. Desde aí, muda completamente. Tem ideias firmes sobre música e procura impô-las em tom de quem não admite réplica. E como sabe o que está dizendo e do que está falando, não encontra quem a contradiga seriamente”.
Foi o que ela, aos 73 anos, mostrou em seu depoimento a Rosa Nepomuceno, soltando o verbo contra os artistas de “tcheque, tcheque, olerê” que tomaram conta da Festa do Peão em Barretos: “(...) acho ridículo brasileiro cantar com aqueles gestos, com aquela dancinha idiota”. Mas a defensora da autêntica música brasileira não era intransigente, como diria a Mara Caballero (Jornal do Brasil, 14/07/1977). “Eu não sou contra o progresso. Sou contra a importação de rebotalho, que entra no país como cultura, praticamente de graça, é impresso em série, vende horrores e impede as nossas manifestações autênticas”.
“(...) a própria Inezita, com toda a defesa que faz da música brasileira, não admite que se coloque uma cortina na fronteira e que não se permita admirar o que os outros povos fazem”, ressaltava o redator de O Estado de S. Paulo de 27/05/1984. Nessa mesma ocasião, Inezita foi taxativa: “Música e cultura não têm fronteiras geográficas”. Através de suas frases sempre personalíssimas, Inezita dava aulas de cultura brasileira – e, por tabela, fazia confissões sobre si mesma.
A respeito de suas atividades de pesquisadora e cantora, por exemplo, explicou a Mara Caballero que preferia ambas: “Quem só pesquisa não transmite, e quem só canta fica bitolado”. Sobre o canto do brasileiro, aliás, disse à mesma jornalista, com propriedade: “A voz sussurrada não é Brasil. O Brasil é a voz aberta, é pregão, é boiadeiro, é voz para fora”. Já a Rosa Nepomuceno, declararia – com toda a razão: “É triste ver que o Brasil é o único país do mundo onde se tem que brigar para cantar a música da terra”.
Foto principal: Inezita Barroso na capa da revista O Cruzeiro (16-06-1956)