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    Cadê J. B. de Carvalho...? Algumas lembranças do ‘Rei da Macumba’ nos 120 anos de seu nascimento

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Ele ficou conhecido como o “Batuqueiro Famoso”, o “Feiticeiro do Ritmo”, o “Rei da Macumba”.

    Daí a estranheza dos 120 anos do nascimento de J. B. de Carvalho, completados no último dia 26 de abril, terem passado praticamente em branco na mídia e redes sociais. Um esquecimento que contrasta com o tamanho e a expressividade de seus lançamentos entre as décadas de 1930 e 1970 – só em discos de 78 rotações são 151 músicas assinadas por ele como autor e outras 220 como intérprete. 

    Sem contar o Conjunto Tupi, liderado por ele em 80 gravações entre 1931 e 1943 e em apresentações badaladas nos teatros cariocas da época. Como contou o jornal Correio da Manhã (10-08-1932), sobre o show deles, na verdade uma “cerimônia, de rito pagão, em que se evocam espíritos de além-túmulo. Para que toda gente saiba em que consiste uma ‘macumba’ é o que o conjunto Tupi, que ora trabalha no palco do Eldorado, apresenta em cena uma autêntica, com todos os seus característicos, os seus cantos, a sua música bárbara, a sua encenação típica."

    Foi com o Tupi que J. B. de Carvalho alcançou seus primeiros sucessos, a começar pelo batuque “Cadê Vira Mundo”, que, assinado por J. B. de Carvalho, saiu em setembro de 1931, regravado dois meses depois pelo Conjunto da Guarda Velha, de Pixinguinha e cia. O sucesso foi tanto que a música foi uma das mais cantadas na folia de 1932, que não à toa seria lembrada como o “carnaval da macumba”.

    Entre os destaques da primeira gravação de “Cadê Vira Mundo” estão a abertura dos trabalhos na voz de J. B. (um “salve” à Ave Maria) e a introdução com um “extraordinário banjo”, como escreveu Lúcio Rangel na Revista de Música Popular (março de 1955). O cronista foi desde sempre entusiasta de J. B. de Carvalho, “um dos nossos grandes cantores, imprime uma dramaticidade impressionante em tudo o que canta”.

    Outra gravação do Conjunto Tupi que mereceu elogios públicos foi a de “No terreiro de Alibibi”, macumba assinada por Gastão Viana (mas com parceria de Pixinguinha comprovada no catálogo de obras do compositor) e lançada em disco em agosto de 1932. Uma gravação que, segundo Vasco Mariz (no livro “A canção brasileira”), foi exaltada por Villa-Lobos, pelo “ambiente de macumba tão bem representado”. Já o escritor e pesquisador Mário de Andrade a classificou como uma “verdadeira vitória da gravação Victor, talvez, como disco, obra mais perfeita da gravação nacional”, disse, numa conferência que deu no Instituto Nacional de Música, em outubro de 1933. “Não me furto ao prazer de citar essa maravilha. A melodia solista, duma incrível pureza, enunciada primeiro pela mulher e repetida depois pelo homem, é constituída na escala em semitons.”

    A cantora citada pelo pesquisador é Zaíra de Oliveira, soprano de destaque na música brasileira, como intérprete tanto do repertório erudito quanto do popular, como os sambas de Pixinguinha, João da Baiana e Donga – este último seu companheiro até sua morte (1951). O compositor Herivelto Martins foi outro ilustre que passou pelo Conjunto Tupi e que, como intérprete ou acompanhante de J. B. de Carvalho, fez gravações emblemáticas. 

    Entre estas estão a macumba “Mironga de moça branca” (Gastão Viana e J. B. de Carvalho), o maracatu “Bagé” (Raimundo Ferreira e Odilon Carvalho), o samba “Fica no mocó” (J. B. de Carvalho), o jongo “Pomba girá” (J. B. de Carvalho e Jorge Nóbrega) e o jongo-batucada “Suará” (dos mesmos autores), este último com melodia semelhante à de “Sonho meu” (Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho), sucesso de Maria Bethânia em 1978.

    Se, mesmo assim, o nome do “batuqueiro famoso” permanece invisível nos dias atuais, uma feliz exceção é a obra Sou da macumba e no feitiço não tenho rival – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupi (1931-1941), dissertação de Leon Araújo no mestrado em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Nela, o autor não só repassa os momentos importantes da trajetória do artista como também recupera antigas matérias que nos ajudam a preencher lacunas de sua biografia (acesse aqui).

    Numa delas, publicada pela revista Carioca em 9-3-1940, ficamos sabendo que J. B. (João Paulo Batista de Carvalho) era carioca da Rua Silveira Martins, vizinho do Palácio do Catete, então habitado por Manuel Ferraz de Campos Salles, presidente da República na época de seu nascimento (26-4-1901). Sabemos também que tinha seis anos quando se mudou com a família para o bairro da Saúde e que trabalhou como estivador, mecânico e motorista de carro e ônibus. Também foi lutador de boxe, conhecido por “Maciste”.

    “Depois J.B. visitou a Favela”, descreve o texto da Carioca. “Sentiu, de perto, toda a sonora influência dos cantores de morro. Bebeu-lhes, em noites cheias de lua, o mistério rítmico de suas melodias típicas. E desceu, então. Desceu, trazendo nos ouvidos esse ruído buliçoso, de que ele havia de ser o mais legítimo intérprete, na cidade.”

    Em outra entrevista à mesma revista (15-1-1938), J. B. de Carvalho conta que o babalaô e cantor Getúlio Marinho, o Amor, é o verdadeiro compositor dos sucessos “Cadê Vira Mundo” e “Pomba girá”, ambos lançados como sendo de autoria de J. B. (o segundo com Jorge Nóbrega). Conta também que foi Marinho, pioneiro da música de terreiro nos discos (leia aqui postagem sobre ele), que o iniciou na vida artística, levando-o à gravadora Victor quando era “absolutamente desconhecido”.

    No repertório de J. B. de Carvalho há pelo menos outras quatro composições de seu padrinho musical, todas assinadas pelo próprio: o jongo “Ê timbetá”, o batuque “Macumbembê” e as macumbas (assim identificadas no selo do disco) “No fundo do mar” e “Caboclo do mato”, ambas em parceria com João da Baiana.

    Mais conhecido pela fundação do Conjunto Africano, Marinho também participou da criação do grupo de J. B. de Carvalho, como Leon Araújo conta em seu texto. “Ao que parece, Amor atuou diretamente no lançamento dos dois conjuntos, o Africano e o Tupi. O primeiro lançado em meados de 1931 na Odeon mas sem alcançar tanto êxito nas vendagens, e o segundo lançado no final de 1931 na Victor, esse com uma sonoridade mais ‘abrasileirada’ alcançou o sucesso no carnaval de 1932, e o Conjunto Tupi se manteve por um bom tempo no mercado do entretenimento carioca.”

    Fora do repertório religioso J. B. de Carvalho também emplacou gravações de sucesso como cantor, como os sambas “Juro” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), um dos mais cantados do carnaval de 1938, e “Com a vida que pediste a Deus” (Ismael Silva). Dessa mesma época são marchinhas que tiveram boa repercussão em sua voz, como “Flauta de bambu” (Sátiro de Melo e João Bastos Filho), “Alô boy” (Homero Marques, Kid Pepe e J. Piedade) e “Vaca preta” (do próprio J.B. de Carvalho com Jorge Nóbrega).

    Se como cantor J. B. de Carvalho se aventurou por outros terreiros além do religioso, em sua carreira de radialista – outra atuação de destaque – a ênfase foi quase sempre no ritual. Desde “A voz de outro mundo”, que ele começou a produzir e apresentar em 1938, na Rádio Cruzeiro do Sul (depois em outras emissoras), até “A Carioca nos Terreiros”, que ele comandou na Rádio Carioca, com grande audiência, já na década de 1970.

    “Se esse desaparecimento do nome dele fosse um fenômeno recente talvez pudéssemos atribuir à perseguição religiosa, mas não. Já na época da morte dele, há mais de 40 anos, praticamente não houve a notícia”, reflete a pesquisadora Renata Leitão, que é estudiosa das letras de cânticos afro-religiosos e desde o ano passado divulga este repertório no canal “Música de Terreiro”, criado por ela no YouTube. “Talvez tenha faltado a ele, a partir de um certo momento da história, ser mais palatável para o gosto do mercado e do grande público.”

    Quando faleceu, aos 78 anos, em 24 de agosto de 1979, só não passou totalmente em branco nos obituários por conta de notas como a que o jornalista Tárik de Souza publicou no Jornal do Brasil (17-9-79), destacando sua atuação como mediador. “Era uma espécie de intermediário entre os terreiros, os pontos e o mercado tradicional do disco. Digo tradicional, porque a umbanda constitui (como as race records nos Estados Unidos) um mercado à parte, marginal, quase clandestino, com grande movimento, selos e astros próprios, além de um circuito bastante movimentado, ignorado pelos hit parades da vida.”

    Renata, que vem se debruçando na transcrição detalhada dos pontos gravados por J. B. de Carvalho não só em 78 rotações, mas também em LPs (“Até aqui já são mais de cem páginas!”), espera que com seu trabalho colabore para iluminar o legado do “Feiticeiro do Ritmo”. “Ele é um dos grandes da música de terreiro, como os pioneiros João da Baiana e Getúlio Marinho”, diz a pesquisadora. “Não só porque ele gravou muitas músicas do repertório de terreiro, mas também porque gravou bonito. Foi ele que levou a macumba ao rádio, ao teatro e a outros lugares hostis. Ninguém deu a cara a tapa como J. B. de Carvalho, o maior de todos.”

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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