“Há dias tivemos ocasião de conversar com algumas girls. Gente interessante. Solícitas, indagadeiras e desconfiadas. Têm sempre receio que o jornalista vá revelar alguma de suas leviandades e comprometê-las junto ao empresário. Nem todas possuem problemas. Muitas são até otimistas. Divertem-se a valer e não pensam em coisa alguma de responsabilidade. (...) Do tipo de artista que falamos, as mais interessantes são justamente aquelas que lutam com dificuldades, as que encontram adversidade na vida... as que têm um coração sofredor”.
Para as girls – ou coristas – do teatro de revista, figurantes anônimas de um espetáculo, dele participando quase o tempo todo, entrando e saindo inúmeras vezes dos palcos, sempre dançando e mostrando as pernas em grupos, a vida não era exatamente glamourosa, como atestava a matéria da revista “Carioca” de 2 de dezembro de 1948: uma mãe doente, um marido com uma moléstia incurável, o sonho de um futuro melhor para o filho...
Situação semelhante enfrentavam vedetinhas e vedetes. Nas coxias ou no proscênio, (semi)vestidas com maiôs ornados de penas, plumas, paetês e lantejoulas, sob os holofotes e os olhares de uma plateia hipnotizada por seus encantos e talentos artísticos – que elas realmente possuíam: cantavam, dançavam, interpretavam, improvisavam, faziam o público rir –, todas aspiravam ao lugar mais alto do pódio: ser a estrela da companhia. Mas, da porta do teatro para fora, a história geralmente era outra.
Vistas por muito tempo (e ainda hoje?) como símbolos sexuais e objetos de desejo, as vedetes eram muito mais: independentes, ousadas, cheias de atitude, donas de si. Algumas do balacobaco – como Elvira Pagã, cujo centenário comemoramos aqui no ano passado –, outras bastante dedicadas à família e ao lar – um bom exemplo é Mara Rúbia. Foram legítimas precursoras do “não é não” e do “meu corpo, minhas regras”, expressões que ainda não existiam em sua época. Acima de tudo, eram mulheres reais, com suas alegrias e suas dores cotidianas. Quem as via brilhar nos palcos não podia imaginar os dramas pessoais por que muitas vezes passavam.
Maria Angélica Gugani, paulistana nascida em 17 de maio de 1931, filha do zagueiro de futebol Barthô Gugani, fez seu primeiro recital de piano aos 7 anos e estreou como cantora em programas de calouros aos dez. Casou com 17, separou-se aos vinte. Do marido, o cantor mexicano – 13 anos mais velho – Chucho Martínez Gil, de quem foi crooner, acompanhando-o em suas turnês pelo exterior, herdou o nome artístico, Angelita Martinez.
Sucesso nas rádios Record e Cultura, de São Paulo, e Mayrink Veiga, do Rio. Cantora-sensação das boates e casas noturnas da Cidade Maravilhosa, então capital federal: Monte Carlo, Casablanca, Night and Day. Êxito no Copacabana Palace. Aplaudida também em sua terra natal: Esplanada e Arpège. Girl do show “Carroussel”, em 1951 – o primeiro dos vários de Carlos Machado em que atuou.
Vedetinha a partir de 1953, pelas mãos de Zilco Ribeiro, na revista “Tout va très bien”. Tudo ia realmente muito bem. No mesmo ano: promovida a vedete por Walter Pinto, com “É fogo na jaca”; título de vedete revelação; primeiro ano dos três (53, 55 e 56) em que figurou na lista das “mais bem despidas” – as famosas “Certinhas do Lalau” – de Sergio “Stanislaw Ponte Preta” Porto. Pin-up Girl 1954, numa acirrada disputa com Dorinha Duval. Rainha das Atrizes de 1956, ano em que assinou um contrato bem vantajoso com a TV Tupi carioca para apresentar o programa “Espetáculos Tonelux”.
Rainha do Astral, Miss Objetiva – concurso da Associação dos Repórteres Fotográficos – em 1956 (as câmeras definitivamente a adoravam), Rainha da Ferradura (os turfistas idem), Melhor Vedete da Televisão (1956). “A Boníssima”, como a chamava o jornalista Mister Eco (Eustórgio de Carvalho). Rainha das Vedetes em 1958 e do Carnaval do Hotel Glória em 1964/1965. “Dona das coxas mais grossas do Rio de Janeiro (segundo especialistas)”, conta Neyde Veneziano no livro “As grandes vedetes do Brasil” (São Paulo: Imprensa Oficial, 2010).
Bonita e bem-humorada, como demonstrou em depoimento ao “Diário Carioca” de 04/01/1959: “Se eu fosse prefeita do Distrito Federal trataria de diminuir o número de buracos nas ruas – vocês já imaginaram a raiva que dá um salto de sapato quebrado com os preços que andam por aí? – e mandaria instalar urgentemente o meu telefone. E não me venham dizer que eu estaria administrando em causa própria porque eu não telefono para mim mesma...”; ou então: “Durmo de baby-doll. Às vezes de doll, outras vezes de baby. Depende da temperatura. E como o Rio de Janeiro é muito quente...”.
Estreou no cinema com o filme “Pequeno por fora”, em 1960, ano em que nasceu sua filha com o segundo marido, o publicitário João Natale Netto, com quem se casara no ano anterior. A menina recebeu o nome de Gladys Christina Tadea Natale – dizia Angelita que colocou o “Tadea” em homenagem a seu santo de devoção, São Judas Tadeu. A plástica e o carisma continuavam intactos em 1966, quando, aos 35 anos, participou da comédia “007 ½ no Carnaval” cantando a insípida “Marcha da Tosca”, cujo título faz alusão à famosa ópera de Giacomo Puccini. Em 1969 o “Jornal do Brasil” anunciava, no Teatro Carlos Gomes, a revista – gênero então em franca decadência – “Levanta a cabeça”, com a “estrelíssima” Angelita Martinez, ainda escultural às vésperas dos 38 anos.
“Nos anos 1960 e 70” – diz Neyde Veneziano – “continuou na ativa, mesmo com o fim do teatro de revista. Fez televisão e rádio, além das boates. Todos os anos gravava suas marchinhas para o Carnaval, fazendo bastante sucesso com suas músicas. Angelita teve um dos salários mais altos da época, ganhava os presentes mais caros e luxuosos de seus apaixonados”.
Nossa resenha bem que poderia acabar aqui. Mas Angelita foi daquelas vedetes que, nas palavras do redator da “Carioca” de 1948, encontraram adversidades pelo caminho – a história de vida de muitas delas, aliás.
“Sua vida com Chucho não era feliz. Cheio de complexos, irritadiço e vaidoso, tudo lhe chocava e tudo era pretexto para um ‘inferno’”, recorda a matéria do “Diário da Noite” de 02/02/1956. Após sofrer uma violenta agressão física, Angelita abandonou o marido em plena turnê pelo exterior e voltou para o Brasil. Seu segundo casamento também durou pouco tempo e, a partir de 1963, passou a travar uma batalha judicial: o ex-marido iniciou ação contra ela alegando “razão de ordem moral” ao Juizado de Menores e ficou com a guarda da filha. A disputa nos tribunais a deixou desesperada por trabalho, para ganhar dinheiro e conseguir pagar os advogados. Em declaração à “Revista do Rádio” de 08/01/1966, ainda se mostrava bastante abalada com a ausência de Gladys em sua vida.
Teve vários casos amorosos com pessoas públicas, como os jogadores Bellini e Pavão, o goleiro Gilmar e o cantor Dorival Caymmi. Revela Neyde Veneziano: “João Goulart (antes de ser presidente) viveu uma paixão avassaladora pela vedete, a ponto de dar escândalos no dia em que, brigados, ela não quis lhe abrir a porta do apartamento! Mas ele abriu! A tiros!”.
O caso com Garrincha (Elza Soares só pintaria na vida do jogador em 1962) fez a alegria da imprensa. Em 1958, a rubro-negra Angelita estreou em discos com a batucada “Escorregou, caiu” e com a marcha “Mané Garrincha”, que homenageava o campeão mundial de futebol, com letra super maliciosa: “Mané que brilhou lá na Suécia / Mané que nasceu em Pau Grande” (bairro de Vila Inhomirim, distrito de Magé, no estado do Rio de Janeiro). O público cantava a plenos pulmões, mas trocava “em” por “de”. A própria cantora, que chegou a posar para fotos com a camisa do Botafogo – clube em que jogava o craque –, se confundia nos shows e acabava ela própria sacramentando a segunda versão, escandalosa para a época.
Submeteu-se a uma operação nos pés, “porque não podia calçar sapatos altos e sentia, todas as noites, terríveis dores nas pernas”, como relatou à “Revista do Rádio” de 26/06/1965. Ficou dois meses se recuperando da cirurgia de remoção dos joanetes. A mexeriqueira Candinha, na mesma edição da revista, não teve piedade: “Angelita Martinez, depois de operada dos pés, tem de andar de sapatinhos de saltos baixos. E ela não suporta isso...”.
A vedete das coxas grossas e das covinhas mais sensuais do teatro de revista fez fama e fortuna, foi adorada, desejada, invejada. Mas, como lembra Veneziano, “era uma jogadora inveterada, e não escondia isso de ninguém. Trocava tudo pelo jogo. Acabou perdendo boa parte do que faturou durante sua trajetória artística no bacará”. A “Fon-Fon” de 07/05/1957 abria assim uma reportagem: “Encontramos Angelita Martinez num dos seus dias ‘atravessados’. Motivo: na véspera, havia perdido no jogo denominado ‘buraco’ uma boa quantia e dormido às cinco da manhã!”.
Na “Revista do Rádio” de 05/09/1959, a Candinha entregava que a vedete “‘tacou’ 30 mil cruzeiros no cavalo Escorial... e perdeu”. Mais adiante, outra nota revelava: “Angelita continua arriscando a sorte nas cartas. E não tem sido muito feliz, perdendo um bocado de dinheiro...”. Em seu depoimento ao “Diário Carioca” de 04/01/1959, a artista já havia revelado: “No palco o que mais me agrada fazer é número musicado. E fora dele, uma boa rodinha de pif-paf, ou outro jogo qualquer”. Numa triste coincidência, nesta mesma entrevista afirmou que, para ela, a palavra mais feia da língua portuguesa era “câncer”. Foi justamente uma leucemia que a levou no dia 13 de janeiro de 1980, em São Paulo. Viveu breves, porém intensos, 48 anos.
Angelita deixou poucos registros em 78 rotações, apenas sete músicas, e temos quatro em nossa base de dados. Foi mais produtiva na época dos LPs: entre 1959 e 1976, participou de 10 álbuns, todos voltados para o Carnaval, não raro aparecendo como intérprete de duas faixas em cada disco – e posando para a capa de pelo menos dois deles. Como compositora, fez, em parceria com Paschoal Roy, Isnard Simone e Correia Neto, “Mangueira fala mais alto”, do LP “Carnaval, amor e fantasia”, de 1976 – esta foi também sua última gravação.
Assim como ela, outras vedetes deixaram raros registros em discos de 78 rpm, ainda que atuassem também como cantoras no teatro de revista. Através da playlist abaixo – com gravações suas e das colegas de trabalho nas décadas de 1950 e 1960 – prestamos nossa homenagem não só a Angelita, mas a essas rainhas eternas dos palcos, das boates e das chanchadas, que souberam superar suas próprias adversidades para fazer do mundo um lugar mais leve e divertido.
Foto de Wilson Santos / 1955 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS