Se a elegância e a delicadeza andam fora de moda no Brasil de hoje, eis que temos um bom motivo para lembrar não só que elas ainda existem, como fazem parte do que há de melhor na nossa arte. Os 90 anos do nascimento de João Gilberto – em 10 de junho de 1931, na cidade de Juazeiro (BA) – são o gatilho para acessarmos esse Brasil sutil, leve e cheio de balanço. Como ele fez a partir de 1958, quando gravou “Chega de saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), sintetizando as bossas que já se anunciavam em Johnny Alf, Garoto, João Donato, Noel Rosa e outros inventores.
A arte e o legado deixados por João – falecido em 6 de julho de 2019, aos 88 anos – foram o mote para a conversa que tivemos com sua filha cantora, Bebel Gilberto, que falou conosco de Nova York, onde a Universidade de Columbia prepara homenagens a seu pai, como um museu dedicado a sua música. A cidade, aliás, tem tudo a ver com essa história: foi lá que começou a aventura internacional da bossa nova, a partir de um show coletivo realizado no Carnegie Hall (1962), com a participação de João, com o som que “virou um emblema”, nas palavras de Bebel. “Ele espalhou a música brasileira pelo mundo afora de uma forma única”, define a cantora, que é natural de Nova York e viveu na cidade por 27 anos, de 1991 a 2018. “Que sorte a minha ser filha dele!”
Aqui no site da Discografia Brasileira, a voz de João Gilberto pode ser ouvida em 19 gravações, inclusive as anteriores à bossa nova, quando ainda cantava com o vozeirão e os vibratos que ele mesmo deixaria pra trás em 1958 (clique aqui para ler sobre o João do início dos anos 50). Na maioria delas é acompanhado pela orquestra dirigida por outro protagonista da bossa nova, Antonio Carlos Jobim, compositor da pioneira “Chega de saudade”, “O nosso amor”, “A felicidade” (as três com Vinicius de Moraes), “Samba de uma nota só” e “Desafinado” (ambas com Newton Mendonça).
O nome de João Gilberto também aparece na Discografia Brasileira como autor de três músicas (“Bim bom”, “Ho ba la lá” e “Minha saudade”, esta última com João Donato) e intérprete de sambas da década de 1940 que ele reformatou nos moldes enxutos da bossa nova, criando novos clássicos sessentistas: “Morena boca de ouro” (Ary Barroso), “Doralice” (Dorival Caymmi e Antônio Almeida) e “Bolinha de papel” (Geraldo Pereira e Arnaldo Passos).
Releituras que ajudam a entender a própria bagagem artística de João, como afirma a cantora Bebel Gilberto. “Essa era a especialidade dele, isso era o grande barato do papai”, avalia a cantora. “Eram coisas que ele escutava quando criança. Então, ele foi crescendo e escutando aquilo e provavelmente dentro da cabeça dele, ou até quando ele estava fazendo conservatório de música, ele já estava imaginando como ele poderia fazer – apesar de estar ainda ali, fechado nas possibilidades: não saber ousar, ser tão jovem, ter medo de ousar... Depois ele foi encontrando o som dele e cada vez mais inovando.”
Bebel ressalta que a inovação se estendeu ao repertório, com músicas oitentistas como “Me chama” (Lobão) e “Lua e estrela” (Vinicius Cantuária), que ela interpretou com ele no início de carreira. Já entre as gravações mais antigas de João, a preferida da filha é “O pato” (Jaime Silva e Neusa Teixeira), lançada por ele num disco de 1960 e desde então um de seus números mais representativos: “Quem conhece papai entende que ele viaja na letra, na música, nos arranjos... E quando ele ficava cantando ‘O pato’ sozinho no violão, ele arrasava. Porque o ‘quéin, quéin, quéin’ não deixa de ser um mantra também, né?”
A cantora se reconecta com a arte do pai à medida que vem ouvindo discos dele, como “João Gilberto en México” (1970), gravado quando ela era pequena e vivia naquele país com ele e a cantora Miúcha, falecida em dezembro de 2018. Se por um lado não guarda tantas lembranças daquele tempo, por outro a audição traz memórias da relação com João: “Vou lembrando dos toques e até vendo coisas que eu não tinha percebido”, conta Bebel, que, entre as qualidades dele, destaca a preocupação permanente com a intenção no modo de cantar. “Papai era muito sedutor e isso também passava na música dele.”