“O biquíni é a invenção mais importante deste século depois da bomba atômica.”
Diana Vreeland (1903-1989), lendária editora de moda do Século XX
“O biquíni é a degradação da nudez.”
Nelson Rodrigues (1912-1980), revista Veja, 04/07/1969
Vem chegando o verão, um calor no coração, com toda essa magia colorida e muito topless na areia, dizem os versos do hit “Uma noite e ½”, de Renato Rocketh, lançado por ele e Marina Lima em 1987. Mais antiga do que os maiôs Catalina e parafina no cabelo, a relação entre a MPB e a estação mais caliente do ano rendeu um sem-número de composições. Para saudar o verão que ora se inicia e homenagear os 75 anos que o biquíni completou em 2021, apresentamos uma playlist que desnuda – com trocadilho, por favor – como duas minúsculas peças mexeram com a libido da nossa música popular.
A praia começou a se consolidar no Rio de Janeiro “como local de lazer e integração social” no Século XIX, diz Marcia Disitzer em “Um mergulho no Rio: 100 anos de moda e comportamento na praia carioca” (Casa da Palavra, 2012). Mas a prática do banho de mar não existia por aqui em mil-oitocentos-e-Dom-João-Sexto. Foi o monarca, aliás, “o precursor do hábito mais tarde incorporado na rotina de milhares de cariocas”, como explica a autora: “Para curar uma inflamação crônica na perna causada por uma picada de carrapato, D. João recorreu aos banhos na Praia do Caju”.
O então príncipe regente, avesso ao mar e com medo de picadas de siris e caranguejos, ficava parcialmente submerso numa espécie de caixote de madeira, “seguindo recomendações médicas que já vigoravam na Europa”, onde “a combinação de Sol, sal e iodo era vista como um santo remédio para os mais diversos males do corpo e da alma”, segundo o livro. Deu certo: sua ferida ficou totalmente sarada.
A plebe aderiu aos poucos à novidade, embora o tchibum fosse, no início, somente para fins terapêuticos, com curta duração e feito através de concorridas barcas de banho – engenhocas forradas de cobre, divididas em camarotes e suspensas por correntes de ferro – existentes em alguns pontos da cidade. Para acessá-las, era necessário embarcar num bote.
Na orla foram surgindo modernas casas de banho, com quartos e espelhos, onde as pessoas trocavam de roupa – ninguém ficava andando seminu pelo calçadão naquele tempo: “Mostrar o corpo era atitude inimaginável”, explica Marcia. As primeiras peças praianas, diz ela, eram “bem folgadas, para atenuar as perigosas curvas femininas”, com direito a calças, chapéus, toucas e até sapatos para as mulheres e, para os homens, macaquinhos ou a combinação calção-camiseta, tudo em tons escuros. Os mergulhos, agora já sem o viés medicinal, ocorriam invariavelmente nas primeiras horas da manhã, para a pele continuar alva – não era considerado “de bom tom” se bronzear, tampouco um hábito saudável.
Com o passar do tempo, a praia virou também um lugar de prática de esportes, tornando-se cada vez mais popular. Então o poder público – no caso, o prefeito Amaro Cavalcanti – teve obviamente que se meter, como lembra a escritora e jornalista: “O espaço antes ocupado de forma livre passou a ser regido por regras a partir de 1917”: horário restrito para o mergulho, censura aos trajes considerados indecentes (qualquer joelho ou ombro visível das moças, ou peitoral de fora dos rapazes, era um escândalo para os padrões de então), proibição da permanência de casais portando-se “de modo ofensivo à moral e decoro públicos” (segundo o texto da lei) e ainda de “vozerios ou gritos”, à exceção de pedidos de socorro. Felizmente, o decreto foi derrubado cerca de um ano depois.
Nos loucos anos 20 do louco século idem, os comportados maiôs de Jean Patou, célebres nas praias do sul da França, começaram a modelar os corpos das senhoras e senhoritas cariocas. O Rio se tornava uma cidade atrativa para turistas, e a orla era peça-chave nesta relação, o que impulsionou a construção de hotéis balneários – o Copacabana Palace, por exemplo, foi inaugurado em 1923. Chico da Baiana observou três anos depois, no samba “Copacabana”, o movimento das marés e das morenas na beira da praia. Pegar uma corzinha agora era algo natural, e na década seguinte tornou-se um must, com a Dupla Preto e Branco (Nilo Chagas e Herivelto Martins) mostrando, em 1936, os encantos da “Bronzeada”.
Estamos nos anos 30, quando a moda praia tornou-se mais descontraída: os maiôs com sainhas já não cobriam totalmente as coxas femininas; havia maiôs com transparência na barriga; apareceram os primeiros trajes duas-peças, além de adornos como lenços e óculos escuros. As girls mostravam os ombros e exploravam decotes, os boys andavam de sungas com laterais largas. Miriam Etz, alemã radicada no Rio, é apontada por Lilian Pacce, em seu livro “O biquíni made in Brazil” (Arte Ensaio, 2016), como a primeira a exibir em nosso país um modelo duas-peças, confeccionado por ela mesma, com o qual desfilou em 1938, aos 24 anos, nas areias do Arpoador.
A tendência informal da praia começava a tomar a cidade, e o compositor João de Barro, nosso Braguinha, estava atento – bem como a fatia mais conservadora da sociedade. “O costume de abolir o uso das meias, adotado pelas cariocas no início dos anos 30, foi motivo de preocupação para os vendedores da mercadoria e de protesto de jornalistas e escritores”, conta Jairo Severiano em “Yes, nós temos Braguinha” (Funarte, 1997, 2ª ed.). João de Barro não perdeu tempo: em 1933 lançou, na voz de Almirante, a “Moreninha da praia”, mocinha “que mora na areia todo o verão” e “que anda sem meia em plena avenida”.
Em 1946, caiu como uma bomba o surgimento de uma nova vestimenta praiana. Quatro dias após uma bomba de verdade, a Able, explodir no atol de Bikini, nas ilhas Marshall, em pleno Pacífico, Louis Réard sacudiu o mundo ao lançar no dia 5 de julho, em Paris, num tipo de concurso de miss à beira da piscina Molitor – hoje um hotel de luxo –, uma pequena indumentária, batizada de bikini, que “expunha o umbigo (parte então considerada íntima por excelência) e deixava o bumbum da mulher à mostra em proporções similares às do sunquíni e da tanga décadas depois”, nas palavras de Lilian Pacce. Nenhuma das participantes do concurso – todas com seus discretos duas-peças – quis vestir a roupa: a primazia coube a Micheline Bernardini, dançarina do Cassino de Paris – “mesmo assim, após negociar um cachê especial”, revela Pacce.
Como que selando a parceria entre o ousado traje e a MPB, foi uma cantora, Elvira Pagã – segundo várias fontes, entre elas o livro de Lilian Pacce – a primeira a desfilar publicamente no Brasil com um biquíni. Em 1949, recém-chegada dos Estados Unidos – onde morava quando a novidade foi lançada –, a artista usou um modelo em Copacabana (mais comportado do que aqueles que ela, futura vedete, em pouco tempo passaria a adotar), devidamente registrado nas páginas da revista Carioca nº 728, publicada em setembro daquele ano. A indumentária não era novidade para Elvira – cujo centenário em 2020 comemoramos neste post: em sua temporada nos States, ela participou, cantando e dançando vestida apenas com um biquíni e um sarongue, do filme “Vegas nights” (1948).
A década de 50, da Bossa Nova, do rock’n’roll e dos maiôs Catalina – eternizados pelas misses de então –, iria sacramentar a mini vestimenta em nossa música popular, que parecia finalmente acordar para a moda praia. João de Barro e Antônio Almeida confeccionaram, em 1952, um “Biquíni de filó”; em 1955, Hianto de Almeida e Chico Anysio repararam que “antigamente era biquíni, agora é só ‘biquinininho’”, concluindo que, “se mudou, melhorou”, em “Mudou pra melhor” (detalhe: o “antigamente” do samba refere-se a um produto criado apenas nove anos antes!).
“Tomara que caia” é um termo hoje posto em discussão, por causa de sua evidente conotação sexista. Mas este debate não existia no Brasil do século passado, e a expressão pejorativa acabou batizando, por aqui, um determinado modelo de vestido sem alças, utilizado pela primeira vez por Rita Hayworth em 1946 no filme “Gilda”, além dos biquínis igualmente sem alças que surgiram posteriormente. A MPB não perdeu tempo: marchas, obviamente intituladas “Tomara que caia”, registraram a nova sensação das praias: a de Pedro Caetano e Carlos Barroso, na voz de Bill Farr (1953), e a de Palmeira e J. M. Alves, gravada por Carlos Gonzaga em 1955 e lançada no ano seguinte (esta última, no entanto, chamava de “otário” quem fazia o comentário, além de pedir também – como nós, hoje em dia – pela queda do dólar...).
Em “Sereia” – modo pelo qual as moças praianas eram chamadas, desde a primeira metade do século passado, em muitas das canções –, Haroldo de Almeida e Otávio Teixeira comentam, em 1956, sobre o velho hábito das mulheres de se deitar na areia para pegar um bronze. E a “Turma da praia” de Haroldo Lobo e Peterpan (José Fernandes de Paula), pelos vocais dos Quatro Ases e Um Curinga, decretava em 1959: “Neste samba não entra, não entra não quem tiver muita roupa / É só calção / Não entra homem de calça, não entra mulher de saia / Chegou, chegou, chegou a turma da praia” (de novo o “tomara que caia” era mencionado).
As praias cariocas chegaram à década de 60 devidamente consagradas como ponto de encontro, de esportes, de paqueras, de badalação, de efervescência e de lançamento de tendências. Um dos primeiros grandes hits musicais da temporada apareceu ainda em 1960 num disco de 78 rotações do roqueiro pré-Jovem Guarda Ronnie Cord: “Itsy bitsy teenie weenie yellow polkadot bikini”, de Paul Vance e Lee Pockriss. Surfando na onda do sucesso da música estadunidense, o trio argentino Los Principes – Mario Benitez, Tito Rojas e a estonteante Gloria Robledo – compôs um rock (meio cha-cha-cha) claramente inspirado na criação de Vance e Pockriss: “La malla a rayas que provoca silbidos en la playa” (“A malha listrada que provoca assobios na praia”). Fred Jorge, versionista muito atuante nos anos 50 e 60, deu-lhe palavras em português e o transformou em “A sereia de biquíni”, levado ao disco em 1961 pela não menos estonteante Cinderela.
No mesmo ano, Sérgio Murilo regravou em inglês o “yellow polkadot bikini” de Vance e Pockriss, que curiosamente recebeu um título em português: “Brotinho de biquíni”. O bem-sucedido rock ganharia, ainda em 1961, uma espirituosa letra de Mário Barcelos e Mariah Brito, “O biquíni e o velhinho”, sobre um vovô assanhado que ia à praia olhar as pequenas de biquíni – mas só olhar, porque seu tempo já tinha passado. O intérprete foi Seu Ouvelindo (personagem que o ator e comediante Waldir Maia interpretava em programas de TV). A definitiva letra em português do rock, no entanto, seria apresentada finalmente em 1964 por Ronnie Cord no seu LP “Rua Augusta”: a famosíssima “Biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho”, feita por Hervé Cordovil, seu pai e veterano compositor da MPB.
João de Barro, que nos anos 30 fizera a crônica da retirada das meias, nos anos 60 deu à luz uma espécie de “tetralogia do biquíni”: quatro marchas, através das quais ele narrava as transformações pelas quais a peça – cada vez mais curta – passava. A primeira fazia menção à cidade turística que serviu de cenário para “E Deus criou a mulher” (1956), estrelado por Brigitte Bardot. Braguinha e Jota Júnior homenagearam o “umbiguinho de fora” das frequentadoras do famoso balneário francês em “Garota de Saint-Tropez”, que chegou ao disco em 1962 através de duas gravações, a de Jorge Veiga e a de Zezinho. A expressão “biquinininho” (utilizada em 1955 por Hianto de Almeida e Chico Anysio) voltou a ser usada em 1963, desta vez em outra produção da dupla Braguinha e Jota Júnior: a “Garota biquíni” de Copacabana vestia “um palmo de serpentina, dois confetes de salão”.
Já na época dos LPs, João de Barro atacou de “Garota monoquíni”, que em 1965 “foi à praia sem confete, só levou a serpentina” e acabou na cadeia. Criado em 1964, o monoquíni é um tipo de maiô com grandes cortes laterais, mas a palavra também serve para designar um biquíni de uma parte só, numa referência clara ao topless (o ato ainda hoje pode ser – por mais incrível e absurdo que isso pareça, em pleno Século XXI – considerado obsceno e enquadrado como crime de importunação sexual, tipificado no artigo 233 do Código Penal). A vestimenta também parecia agradar Roberto e Erasmo Carlos, que proclamaram no mesmo ano: “Eu sou fã do monoquíni”.
Fechando a série de marchas, Braguinha e Jota Júnior, também em 1965, promoveram o strip-tease total em “Ilha do Sol”, gravada pela vedete Angelita Martinez para o Carnaval de 1966: “já foi biquíni, foi monoquíni / Amanhã o que será? / Liberdade, liberdade / Nerisquíni do Leblon ao Guarujá!”. Néris é uma variação de neres, que significa “nada”, “neca”, “coisa alguma”. A Ilha do Sol, na Baía de Guanabara, pertencia à também vedete Luz del Fuego (Dora Vivacqua), que lá instalou o Clube Naturalista Brasileiro, sede do Movimento Naturalista por ela fundado em 1948.
“Já não se usa mais o maiô, já não se usa mais o biquíni / A nova moda agora é o biquininho”, decretou Dono da Noite (Joaquim Lopes) no cha-cha-cha “Biquininho”, lançado por ele e Riacho (Aristides Gonçalves) em 1964. A música era mais uma que fazia menção à prática do topless: “O biquininho é só uma peça: a de cima já pode tirar”.
A maior invenção desde a bomba atômica continuou sua (r)evolução nas décadas seguintes: o top cortininha e a tanga dos anos 70; o sunquíni, o asa-delta e o fio dental dos anos 80; a calcinha tipo sunguinha/shortinho nos anos 90; o manquíni (biquíni para homens – lembram-se do Borat dos anos 2000?) e, mais recentemente, o biquíni de fita isolante, coqueluche no Piscinão de Ramos, popularizado por Anitta no clipe de “Vai, malandra” (2017). Modismos de verão que continuam inspirando vários artistas da música popular brasileira, como Caetano Veloso, que cantou, em “A cor amarela”, no álbum “Zii e Zie” de 2009: “Uma menina preta de biquíni amarelo na frente da onda / Que onda, que onda, que onda que dá...”.
Foto: Elvira Pagã / Fonte: Internet