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    A Jairo Severiano, com carinho: nossa homenagem a um dos autores da ‘Discografia Brasileira 78 rpm’

    tocar fonogramas

    Por Fernando Krieger e Pedro Paulo Malta

    Num país sem memória e sem uma política séria como o nosso, é fundamental o trabalho daqueles que zelam pela divulgação da nossa cultura e pela preservação das nossas raízes musicais através da pesquisa, do colecionismo, da escrita de livros, da produção de discos – ainda que estes seres obstinados, alguns anônimos, outros mais conhecidos, tenham a consciência de que seu trabalho permanecerá, mas poucas pessoas se lembrarão de seus nomes. Um desses grandes, Jairo Severiano, historiador da música popular, colecionador, pesquisador e produtor, nos deixou no último dia 27 de agosto, aos 95 anos. O fato só foi divulgado quase um mês após seu falecimento e foi praticamente ignorado pela imprensa e pelas redes sociais.

    Cearense nascido na capital do estado, Fortaleza, em 20 de janeiro de 1927, Jairo se dividiu entre sua cidade natal e o Recife até os 23 anos. Foi nesta última que, por volta dos 10, começou a se interessar por música, ouvindo pelas ondas das emissoras cariocas, como a Rádio Nacional, os grandes cantores e cantoras da época. Chegou ao Rio de Janeiro, então capital federal, em 1950, já como funcionário concursado do Banco do Brasil. O pesquisador Rodrigo Faour conta um fato curioso: ao finalmente assistir ao vivo os programas de auditório que ele adorava, Jairo se decepcionou – não era nada daquilo que ele havia imaginado...

    A paixão pela música popular brasileira o impulsionou a lançar livros fundamentais sobre esse assunto: “Getúlio Vargas e a música popular” (Fundação Getúlio Vargas, 1983), “Yes, nós temos Braguinha” (Funarte, 1987) – biografia do compositor João de Barro, de quem foi muito amigo –, os dois volumes de “A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras” (1997/1998) – preciosas fontes de consulta, escritos em parceria com Zuza Homem de Mello (1933–2020) – e “Uma história da música popular brasileira – Das origens à modernidade” (2008).

    Os últimos títulos foram lançados pela Editora 34, tendo como editor o jornalista Tarik de Souza, que prestou homenagem ao amigo num texto publicado no site AmaJazz. “Todos que trabalhamos com pesquisa e informação sobre o assunto, em algum momento – e muitas vezes, em muitos – bebemos em sua fonte inesgotável e generosa de conhecimento”, afirmou. “No meu caso, que convivi durante décadas com ele, sempre atencioso e solícito a qualquer requisição de dados e material, fui seu editor e amigo, a perda é irreparável e sofrida.”

    Tarik relembra que se aproximou de Jairo Severiano no começo da década de 1970, quando participou da produção dos discos “História da Música Popular Brasileira” (Editora Abril) e contou com o pesquisador durante as buscas por informações e gravações originais para a série – que saía em fascículos ricamente encartados vendidos quinzenalmente nas bancas de jornal. Além dos trabalhos na coleção (que rendeu lançamentos em 1970, 77 e 79), a amizade com Jairo se fortaleceu em 1975, a partir do 1º Encontro de Pesquisadores da Música Popular Brasileira, no Teatro Guaíra, em Curitiba.

    A atuação de Jairo na pesquisa de música popular se desdobrou em discos que produziu, como “O Ciclo Vargas – uma visão através da música popular” (Fundação Getúlio Vargas, 1983) e a versão brasileira do álbum “Native Brazilian Music” (Funarte e Museu Villa-Lobos, 1987), lançado originalmente nos Estados Unidos com gravações de Pixinguinha, João da Baiana e Cartola, entre outros, capitaneadas pelo maestro Leopold Stokowski em 1940. Já no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, realizou – com o também pesquisador Paulo Tapajós – a série de depoimentos “Memória musical carioca”.

    Seu trabalho de mais fôlego, contudo, levou anos para ser concluído – e isso somente aconteceu graças a uma mãozinha do destino. Jairo havia começado um levantamento das gravações feitas no Brasil em discos de 78 rotações (que abrangem o período entre 1902 e 1964). Aproveitava as horas vagas de seu trabalho no banco para pesquisar. Baseando-se nos anúncios que saíam publicados em periódicos da época, anotava as informações – número do disco, nome da gravadora e repertório – em folhas de papel almaço, sem grandes pretensões além de guardar suas anotações, como contou em agosto de 2019 para o jornalista e pesquisador Pedro Paulo Malta.

    Expediente semelhante ao desenvolvido pelo jornalista, pesquisador e colecionador cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, que em 1954, aos 20 anos, já iniciara sua coleção de 78 rpm: “Comprei vários cadernos, desses de menino estudar, de espiral, e organizei: esse caderno vai ser da Odeon, esse daqui vai ser da RCA Victor, esse daqui vai ser da Columbia, esse aqui vai ser da Continental... Um caderno pra cada fábrica!”, contou em depoimento para o livro “Nirez: o homem de cera”, de Wilson Seraine (IMEPH, 2018).

    Três ou quatro anos depois, Nirez foi procurado, em sua residência em Fortaleza, por um médico de Natal, Grácio Guerreiro Barbalho, também colecionador de discos, interessado na troca de exemplares. Ao ver as anotações de Nirez, comentou que fazia o mesmo. Então começaram a se corresponder através de cartas. Em 1970, Nirez recebeu a visita de Alcino de Oliveira Santos, paulista de Taubaté e igualmente pesquisador e colecionador de 78 rpm. Mais um que passou a se corresponder via Correios.

    O quarto elemento foi justamente o bancário Jairo, que residia no Rio de Janeiro e que o conterrâneo Nirez conheceu apenas em 1972. Por causa desse trabalho, desenvolveram uma grande amizade; curiosamente, os caminhos de seus pais já haviam se cruzado: “O pai do Nirez [Otacílio Ferreira de Azevedo] foi amicíssimo do meu pai [Walter Severiano]. Os dois eram desenhistas. Eu e Nirez nos conhecemos quando ele, não sei como, tomou conhecimento da minha pesquisa, e aí me telefonou (...). Ele foi quem me levou ao Grácio e ao Alcino”, recordou Jairo no depoimento a Pedro Paulo.

    “O fato de eu morar no Rio... eu era o único que tinha oportunidade de ir ao arquivo das gravadoras”, contou na mesma ocasião. Alcino, que morava em São Paulo, ficou responsável pela Continental, enquanto Jairo se encarregou de ir às empresas com sede no Rio. “Um dia, eu me enchi de coragem e invadi o arquivo da Odeon, que era a principal, e fui expulso do arquivo. A pessoa que chefiava o arquivo, por sinal um conterrâneo meu, cearense também, me julgou um intruso, e ele tinha toda razão!”. Mais tarde, Jairo conseguiu acessar o acervo graças a uma credencial do Ministério da Cultura e acabou se tornando grande amigo de Iracildes Barroso, o funcionário que o havia expulsado anteriormente.

    Jairo aproveitava os períodos de folga no banco para escavar os arquivos das gravadoras: depois da Odeon, a RCA. “Pra você ver a minha dedicação a esse trabalho, eu nas férias trabalhava mais do que quando estava em atividade, porque eu passava o dia inteiro nas gravadoras, copiando número de disco”, revelou a Pedro Paulo, complementando: “A base de tudo isso é a minha paixão pela música popular”.

    Jairo Severiano e o primeiro dos cinco volumes da Discografia Brasileira 78 rpm, que fez com Miguel Ângelo de Azevedo (o Nirez), Alcino Santos e Grácio Barbalho e que a Funarte publicou em 1982

    A pesquisa, feita a oito mãos, foi terminada em 1979 e resultou nos cinco volumes da “Discografia Brasileira 78 rpm”, editados pela Funarte em 1982 e até hoje a maior referência para pesquisadores e interessados no assunto, tendo recebido, em 1983, o Prêmio Almirante, concedido pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Nas décadas subsequentes, Nirez continuou preenchendo as lacunas da discografia; esse trabalho “de formiguinha” proporcionou o surgimento, em novembro de 2019, deste site, contendo a base de dados mais completa de discos de 76 e de 78 rpm já criada em nosso país, disponibilizando para audição os acervos de colecionadores diversos, como o próprio Nirez, José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi.

    Nirez, por e-mail, nos contou sobre a sua amizade com Jairo, relatando que soube da partida deste quase um mês após sua morte: “Jairo era incansável, mas a idade foi aumentando e aos 94 e 95 anos ele me telefonava quase que diariamente para conversarmos sobre suas lembranças no Ceará, o futebol, a emissora PRE-9, o xadrez, os amigos, e muitos outros assuntos. Mas chegou-lhe uma pneumonia e ele foi levado ao hospital, onde tive notícias até o 14º dia de internação, mas a partir daí ligava para ele e o telefone só chamava e ninguém atendia. Ontem [21 de setembro] recebi uma mensagem do Claudevan Melo me comunicando o falecimento do meu amigo e parceiro Jairo Severiano, ocorrido no dia 27 de agosto. Ninguém sabia, passei a comunicar aos amigos a nós comuns e todos eles ignoravam”.

    A explicação para este fato, segundo Nirez, é simples: “Jairo morava em um apartamento em Ipanema, na Avenida Henrique Dumont, com sua mãe e sua irmã.” Após o falecimento de ambas, ele, que “era solteiro, ficou morando só, tinha uma senhora que fazia a limpeza uma vez por semana, pela qual eu tive notícias dele. Falecendo no hospital, não era possível saber-se. Através de quem?”

    Desde o início, a página Discografia Brasileira publica posts sobre música popular escritos por Pedro Paulo Malta, com posterior colaboração de Fernando Krieger. O terceiro destes posts, “As 10 mais do pesquisador Jairo Severiano”, traz uma playlist com as suas dez canções favoritas lançadas no período dos 78 rotações, reveladas por ele na já citada entrevista concedida a Pedro Paulo Malta em agosto de 2019. À exceção do samba-choro “Carinhoso”, as outras nove músicas são todas sambas, ritmo com o qual Jairo dizia se identificar totalmente: “Realmente, eu adoro samba. Sempre adorei samba. (...) Pela vida afora, o samba esteve sempre muito presente em meu gosto pessoal”, confessou a Pedro na ocasião.

    Num primeiro momento, Jairo listou 32 títulos, “e então começou a fazer cortes, não sem lamentar cada um deles”, escreveu Pedro no mencionado post. Pois agora, em homenagem ao mestre, complementamos a playlist original com as 22 gravações que ficaram de fora na época, em sua maioria sambas e sambas-canção, como “Meu consolo é você”, que ele considerava o mais belo samba do nosso cancioneiro – embora o “maior de todos”, na sua opinião, seja “Agora é cinza”, presente na playlist do post de 2019. Também abriu espaço para três marchas: “Pastorinhas”, “Aurora” e “Teu cabelo não nega”.

    Jairo e o violão: cantar, só em casa

    A lista de músicas abaixo não foi ordenada de acordo com critérios de preferência ou de importância: apenas segue a ordem em que as músicas foram sendo lembradas por Jairo na entrevista de 2019. Ao fim da qual ele fez uma revelação: dizendo-se “péssimo cantor” – soltava a voz “para uso caseiro só” –, queixou-se de não ter voz para interpretar “Morena boca de ouro”, também presente na playlist original. A MPB pode não ter ganhado um intérprete, mas a voz de mestre Jairo continuará ecoando na vida de todos nós, pesquisadores e amantes da música popular brasileira.

    Fotos: Pedro Paulo Malta

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