“Adoniran era um pedaço da alma desta cidade. Não construiu o concreto, não a pedra, não a matéria – mas foi o obreiro do alicerce poético de São Paulo. (...) Nada do que era a cidade foi estranho a Adoniran. Ele cantou o amor, o desespero, a exploração imobiliária, a alegria, o trânsito, o cavaco, o progresso, o trabalho, a morte e – sempre, a todo o momento – o homem. (...) Com a morte de Adoniran, a sensibilidade precária e a poesia tosca de São Paulo ficam ao relento.”
(Lourenço Diaféria – O Estado de S. Paulo, 24/11/1982)
Há 40 anos, mais precisamente no dia 23/11/1982, uma insuficiência respiratória, agravada por um enfisema pulmonar, levou deste mundo o cidadão João Rubinato, nascido no interior de São Paulo. Seu alter ego, o paulistano Adoniran Barbosa, continuou perambulando por aí, pelas ruas do Bixiga, do Brás do Arnesto, da Mooca, meu!, de Jaçanã, da Casa Verde, da Vila Esperança, da Sé, da República, da Cidade Ademar, das duas Lapas – a paulista e também a carioca. Não seria de espantar se ele fosse avistado hoje na Boca Maldita de Curitiba, em alguma birosca de Santa Tereza, na capital mineira, ou abraçado a algum folião do Recife Antigo. Em seu regionalismo, Adoniran foi o porta-voz de todo um povo.
Os jornais da época destacaram que o compositor estava com 72 anos, nascido, portanto, em 1910 – apesar de a data “oficial” ser 6 de agosto de 1912. Há interrogações não só quanto ao ano, mas também quanto ao local do seu nascimento, Valinhos. Ayrton Mugnaini Jr., em “Adoniran: dá licença de contar...” (Editora 34, 2002), joga luz sobre os fatos – ou confunde ainda mais: “Adoniran é tão ilustre campineiro de nascimento quanto Carlos Gomes ou Paulinho Nogueira. É que Valinhos (...) em 1910 ainda era apenas um bairro da cidade de Campinas (...) e só se tornaria município autônomo em 1953”. Já Celso de Campos Jr., em “Adoniran: uma biografia” (Globo, 2004), esclarece que Valinhos havia sido elevada à categoria de distrito de Campinas em 1896.
Com relação ao ano, explica Mugnaini que a data 06/08/1910 – referenciada por ao menos quatro biografias do sambista – é a correta, constando inclusive na carteira de identidade e na certidão de nascimento de Rubinato – detalhe: a imagem desta última está publicada no livro; nela se lê não 6, mas 7 de agosto de 1910. Adoniran, porém, sustentava ter nascido em 1912, como contou no início do programa “MPB Especial”, da TV Cultura, em 1972: seu “batistério” – atestado de nascença – teria sido modificado para que ele pudesse, aos 10 anos, começar a trabalhar como varredor numa fábrica de Jundiaí, que só aceitava maiores de 12.
O rapaz fez um pouco de tudo antes da fama: foi tecelão, pintor, encanador, serralheiro, mascate, garçom, metalúrgico. Em 1934, já em São Paulo, tornou-se participante assíduo do programa “Calouros do rádio”, da Cruzeiro do Sul, onde era sempre gongado. Num dia em que “o homem do gongo devia de estar distraído” – como ele próprio diria mais tarde à revista Realidade de julho de 1966 e em algumas outras ocasiões –, cantou “Filosofia” (de Noel Rosa e André Filho) e conseguiu chegar até o fim. Foi a sua porta de entrada para a vida artística.
No rádio, tornou-se ator (mais tarde chegaria a fazer filmes e novelas de TV), comediante e intérprete de tipos populares, vários deles criados pelo talentoso redator Osvaldo Moles: Barbosinha Mal-Educado da Silva, Charutinho, Zé Conversa, Mata-Ratos, Dr. Sinésio Trombone, Dom Segundo Sombra, o francês Jean Rubinet (gozação com seu próprio nome) e outros. O maior deles, contudo, seria o personagem de si mesmo que ele interpretaria pelo resto da vida, cujo nome foi inspirado no amigo Adoniran Alves e no sambista Luiz Barbosa (1910-1938), de quem era admirador.
Com “Dona boa” – “uma porcaria de marcha”, segundo ele próprio definiu no “MPB Especial” de 1972 –, em parceria com J. Aymberê, Adoniran conquistou a vitória no concurso de Carnaval da prefeitura de São Paulo em 1935 e viu, pela primeira vez, uma composição sua chegar ao disco, na voz de Raul Torres. Pouco lembrado, o lado momesco de Adoniran despontou em músicas hoje desconhecidas (caso de “Pode ir em paz”, feita com o craque Hervê Cordovil, e “Garrafa cheia”, com Raguinho e B. Lobo) e outras marcantes, como a bela “Vila Esperança”, parceria com Marcos César que obteve o segundo lugar no I Festival de Música de Carnaval da TV Tupi, em 1969.
Nem só de marchas é feito seu repertório carnavalesco: dele também sambas fazem parte, como os nunca lembrados “O que foi que eu fiz” e “Chorei chorei”. Com “Joga a chave”, venceria novamente um campeonato, em 1952. Um de seus sambas, lançado em 1964, não só se tornou um dos mais famosos de sua obra, como foi “o grande sucesso do Carnaval do Quarto Centenário do Rio” (1965), afirma Mugnaini, que revela: “A renda de ‘Trem das onze’ propiciou a Adoniran o ensejo de reformar sua chácara na Cidade Ademar”. Neste mesmo ano, mudou-se definitivamente para a chácara – comprada em 1955 –, onde tinha por hobby construir miniaturas de trenzinhos movidos a eletricidade.
Não é de sua autoria, mas foi gravada por ele – ou melhor, por Zé Conversa – a inspiradíssima marcha-rancho “Os Mimoso Colibris”: “Nossas asas balanceia ao vento tão fatar / Nossas camisa alegreia as rua do Carnavá”. João Rubinato sabia, sim, falar corretamente o português; já Adoniran pronunciava as palavras tal qual o matuto, o paulistano simples, do povo – o que, aliás, costumava fazer no rádio, personificando figuras como o Charutinho. “Não é dorme, é dróme. O certo é dróme. E também não é degrau, é dregau o certo. Agora, se quiser falar degrau pode, mas o certo é dregau”, ensinou no “MPB Especial” em 1972.
Foi cantando num português corretíssimo – parecia até outra pessoa – que Adoniran debutou em disco, com o samba “Agora pode chorar” (parceria sua com o maestro José Nicolini), lançado em fevereiro de 1936. Após mais duas gravações entre 1936 e 1937, só em 1951 voltaria a soltar a voz num 78 rpm, encarnando Zé Conversa e – aí sim – com o português errado que o consagraria. As músicas? A citada “Os Mimoso Colibris” e “Saudade da maloca”. A segunda faria um sucesso estrondoso, mas somente a partir de 1955: regravada pelos Demônios da Garoa com seu título correto, “Saudosa maloca” (cuja história foi contada neste post), esta versão consagraria definitivamente o humorista Adoniran Barbosa como compositor.
“Esse negócio de falar errado não é fácil. Precisa saber falar errado”, afirmou em declaração ao jornal Última Hora (SP) de 03/02/1978. O recurso de se reproduzir a linguagem iletrada do povo sempre foi utilizado na literatura e na música. Mas a fama de analfabeto acabou mesmo sobrando para Adoniran. Novamente incorporando Zé Conversa – com todos os erros gramaticais a que tinha direito: nóis fumo, num encontremo, nóis fiquemo –, ele levou ao disco em 1952 mais um clássico (em parceria com Nicola Caporrino, o Alocin) que, lançado apenas em março de 1953, precisou esperar mais um pouco para conhecer o sucesso: “Samba do Arnesto”, também regravado em 1955 pelos Demônios da Garoa (no lado B de “Saudosa maloca”).
O estilo do Poeta do Bixiga sofria críticas de quem o achava uma ameaça à cultura e à língua. Sobre o “Samba do Arnesto”, a matéria d’O Estado de S. Paulo de 24/11/1982 lembrava “uma situação tragicômica: ele foi proibido de gravá-la no seu primeiro LP individual, pois ‘não era admissível a utilização do mau vernáculo nos meios de comunicação’, segundo as autoridades constituídas de então” – em bom português, a censura. Isso em 1974 – ou seja, 21 anos após o lançamento da música, já então super conhecida nacionalmente. Seu autor foi proibido de cantá-la; mas, no mesmo ano, lá estava ela no LP “Pra que tristeza”, dos Originais do Samba.
No outro lado do 78 rpm com o “Arnesto”, Zé Conversa apresentou mais um futuro clássico, “Conselho de mulher”: “Pogréssio, pogréssio / Eu sempre escuitei falá / Que o pogréssio vem do trabalho / Então amanhã cedo eu vou trabalhá”. Na declamação inicial, ele roga a Deus: “Se quiser tirar de mim arguma coisa de bão, que me tire o trabalho: a muié não”. Adoniran tinha fama de mulherengo – embora não fosse exatamente uma lâmpida em vorta da qual “As mariposa” avoava: “Eu que ia lá, [as mulheres] não vinham, não. Eu que chamava: vem cá, vem cá’”, disse em depoimento citado no livro de Mugnaini. Mas ele teve uma união bastante sólida ao lado de sua segunda companheira, Mathilde de Lutiis (1923-1989), com quem viveu por 41 anos, sem nunca se casar oficialmente.
Para Mathilde, ele fez – com Hervê Cordovil – um samba baseado num fato real: “Com a corda mi do meu cavaquinho / Fiz uma aliança pra ela / Prova de carinho”. Dona Mathilde chegou a usar a “aliança” improvisada, feita na verdade “com uma corda de violão, pois o cavaquinho em sua afinação não tem corda mi”, como aponta Bruno Gomes em “Adoniran: um sambista diferente” (Martins Fontes/FUNARTE, 1987). Do primeiro casamento, com Olga Krum – que durou pouco mais de um ano –, nasceu a filha Maria Helena, criada por uma irmã de Adoniran e de quem o público só tomou conhecimento após o falecimento do sambista.
Foram várias as músicas que ele criou para homenagear suas musas da ficção. Começou com a “Dona boa” – a “porcaria de marcha” de 1935. “Malvina”, vencedora do concurso de Carnaval promovido pelo jornal Folha da Tarde (SP) em 1952, foi a primeira de suas tantas composições gravadas pelos Demônios da Garoa. No ano seguinte, “A louca chegou / Desesperada, procurando seu amor”. Em 1956, “Inês saiu dizendo que ia comprar um pavio pro lampião” e, num bilhete, pediu: “Apaga o fogo, Mané”, porque não ia voltar mais. No fim do ano, Adoniran e Raguinho perguntaram “Por onde andará Maria?”. Sua quase homônima Maria Rosa, a quem Adoniran se referiu como “meu primeiro amor”, é citada em “Vila Esperança”.
Duas vieram diretamente dos programas de rádio: a namorada do Charutinho, “Pafunça”, vivida pela comediante Mariamélia; e Gerarda, eternizada por Adoniran no bordão “Aqui, Gerarda!”, do programa “História das malocas”. A marcha homônima chegou ao disco na voz do próprio “Charutinho” (acompanhado por Seus Maloqueiros) e, segundo Mugnaini, foi um sucesso no Carnaval de 1960. E de uma notícia de jornal – ou de um flerte não correspondido, como o próprio compositor teria confessado a amigos – surgiu, em 1956, a pesarosa “Iracema”, a moça que, a vinte dias de se casar, “atravessou contramão” e de quem somente restaram “suas meia e seu sapato”. Tragédia com um tempero de jocosidade.
Não à toa, Adoniran era chamado por seu amigo e parceiro Eduardo Gudin de “Charles Chaplin da canção”. Com Vinicius de Moraes, compôs – à distância, pois moravam em cidades diferentes – “Bom dia tristeza”; o morador que vai pedir abrigo ao vizinho porque seu barraco pegou fogo é o protagonista do dolente “Quem bate sou eu”; já “Pra que chorar” é assinada por um tal de Peteleco. Que vinha a ser... o cachorro do sambista. “(...) quando precisou de um pseudônimo para assinar músicas a serem registradas em diferentes entidades autorais – o que era proibido pela legislação –, Adoniran Barbosa rendeu homenagem a seu inseparável cachorrinho”, conta Celso de Campos Jr. O cão é “autor” de pelo menos uma dezena de criações de seu dono, como “No Morro do Piolho”.
É a cidade de São Paulo a musa maior de Adoniran, celebrada em diversas oportunidades. O Brás do Arnesto; a Mooca, citada em “Abrigo de vagabundos” (incluída na playlist do post sobre “Saudosa maloca”); as pizza e as brajola avoando em “Um samba no Bixiga”; a solene e enfezada batucada lá “No Morro da Casa Verde”; o Carnaval da “Vila Esperança”; a beleza do “Viaduto Santa Efigênia”; o Jaçanã – onde ele nunca morou – de “Trem das onze”; a Praça da Bandeira e o bairro Ermelino Matarazzo, citados em “Vide verso meu endereço”; o “Casamento do Moacir” com a Gabriela na Vila Ré; e a turma muito original da extinta Favela do Vergueiro que aparece em “Mulher, patrão e cachaça”: Violão da Silveira, Cuíca de Souza e Cavaquinho de Oliveira Penteado.
O pogréssio inclemente foi capaz de deformar a “Praça da Sé” de outrora. O tempo tentou zombar do velho Adoniran – mas ele zombou primeiro, mostrando pros “meninos desses tal de iê-iê-iê” (em “Já fui uma brasa”) que saber “Envelhecer é uma arte”. Corintiano de coração, na hora agá deu um drible na dama inevitável, mandou João Rubinato em seu lugar e continuou por aí. Inda onti parece que foi avistado na quermesse, ao lado da barraca de “Tiro ao Álvaro”, traçando um “Torresmo à milanesa”, tomando um uisquinho e mexendo com a rapaziada de garrafa cheia: “Nóis viemo aqui pra bebê ou pra conversá”?
Foto: IMS / Coleção José Ramos Tinhorão