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    Carmélia Alves centenária: toda a graça, a simpatia e a majestade da eterna Rainha do Baião

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “Eu me lembro de muita coisa bonita que me aconteceu, mas eu acho que no rádio o que me aconteceu de mais bonito eu já contei. Foi quando Luiz Gonzaga, de surpresa pra mim, entrou no palco da Rádio Mayrink Veiga me colocando um chapéu de couro na cabeça e dizendo: ‘Aqui está o símbolo do Nordeste, minha rainha. Agora você é a Rainha do Baião e a gente vai defender a música do Nordeste’”. 
    (Carmélia Alves, programa Ensaio, TV Cultura, 1991)

    “Luiz Gonzaga e eu, do baião rei e rainha / O meu povo elegeu / Nós queremos sucessores, meu baião não vai morrer / A coroa transferimos a quem souber defender / E prestar o juramento que pro baião vai viver”. Com “Reis do baião”, de Luiz Gonzaga e Luiz Bandeira, Carmélia Alves surgia no Espetáculo das Seis e Meia do Teatro João Caetano em 1977, após ser convocada ao palco pelo Rei Luiz em pessoa. Simpática, carismática e com uma voz que ao mesmo tempo denotava firmeza e ternura, a carioca de Bangu, cujo centenário comemoramos em 14 de fevereiro, fez valer sua origem nordestina – filha de pai cearense e de mãe baiana – para se tornar a rainha de um dos mais importantes gêneros musicais nascidos em terras brasileiras.

    Mas a história de Carmélia Alves Curvello poderia ter sido bem diferente. “Sábado próximo, às 21,30 horas, a A-9 [Obs: PRA-9, Rádio Mayrink Veiga] apresentará a sua nova sambista, Carmélia Alves, num programa de primeiras audições”. Era assim que o Diário de Notícias de 21/05/1941 se referia à jovem cantora de 18 anos. O baião, não obstante haver um registro desse gênero feito em 1930 por Stefana de Macedo (“Estrela d’alva”, de João Pernambuco), ainda não existia em termos de indústria fonográfica – em outras palavras, não havia sido “inventado” e remodelado por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Este último fazia, em 1941, suas primeiras gravações como sanfoneiro solista na gravadora RCA Victor.

    Carmélia, embora mais nova que Luiz, havia começado antes a carreira musical. A revista Carioca de 09/11/1940, na matéria “Nasce uma ‘estrela’”, descrevia a artista de 17 anos como “uma legítima representante do sambinha nacional, e canta-o com muita propriedade, numa voz tão agradável quanto a de Carmen Miranda” – que ela inclusive imitava em seu tempo de caloura, quando participou de vários programas radiofônicos, inclusive o de Ary Barroso. Na entrevista à Carioca, Carmélia lembrou de sua estreia oficial em rádio, em abril daquele ano – anunciada pela Gazeta de Notícias de 03/04/1940 –, no famoso programa Picolino, apresentado então na Nacional pelo não menos famoso Barbosa Júnior, que ela considerava seu padrinho artístico. Não demorou a ser contratada pela poderosa PRE-8, até sua transferência para a Mayrink em 1941. “Prefiro sempre o gênero que eu mesma canto: o samba, a marchinha, a música do povo, a melodia que não precisa de cultura para ser compreendida”, disse a moça à Carioca.

    Foi com uma batucada – “Quem dorme no ponto é chofer” – e um samba – “Deixei de sofrer” – que a brejeira Carmélia debutou em gravações aos 20 anos, em dezembro de 1943, num disco “produzido de forma independente, com a ajuda de amigos e familiares, que bancaram a matriz”, revela Assis Ângelo no livro “Dicionário Gonzagueano, de A a Z” (Edição do autor: São Paulo, 2006). Em 1944 ela gravaria uma marcha; em 1949, um samba, um choro, uma rancheira e uma toada. Com esta última, o Nordeste – presente em sua vida desde a infância, nas músicas que o pai cantava para ela – começaria a entrar definitivamente em sua discografia.

    Em depoimento publicado no livro de Assis Ângelo, Carmélia contou: “Eu conheci Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira nos anos de 1940, no Copacabana Palace [Obs: na boate Meia-Noite, no interior do hotel], onde eu trabalhava como crooner. Na ocasião, eu já conhecia Hervê Cordovil, de São Paulo. Foi ele quem me deu para gravar a primeira toada-baião, ‘Me leva’, dele e de Rochinha. Foi um grande sucesso (...)”. No outro lado do disco, dividido com Ivon Curi, estava a rancheira. Sobre esta, o livro “Luiz Gonzaga, o Rei do Baião: sua vida, seus amigos, suas canções”, de José de Jesus Ferreira (Appris, 2019), traz as palavras do próprio Lua: “Ainda no transcorrer de 1949, minha bela e talentosa amiga Carmélia Alves, com sua voz cristalina, gravou uma rancheira minha e de Humberto Teixeira, intitulada ‘Gauchita’”.

    Segue Gonzaga: “Essa canção, como num passe de mágica, findou nos aproximando musicalmente e nos tornando parceiros e grandes amigos. Daí em diante ela, com seu talento, seus encantos e lirismo, e motivada pela criatividade poética do grande maestro Hervê Cordovil, passou à condição de ‘pomba mensageira’ da nossa música regional, notadamente o baião”.

    O ritmo começou a aparecer na vida de Carmélia num disco de 78 rpm lançado em março de 1950, trazendo de um lado um mega sucesso, o balanceio “Trepa no coqueiro” (“Tira coco, gip gip nheco nheco, no coqueiro olirá”), de Ari Kerner Veiga de Castro – o lendário jornal O Pasquim, duas décadas mais tarde, aproveitaria esse refrão para batizar uma de suas seções de cartuns de humor, “Gip Gip Nheco Nheco”. Do outro lado, estava o baião “Trem ô la lá”, de Lauro Maia e Humberto Teixeira. Neste mesmo ano, mais três baiões ganhariam deliciosas interpretações de Carmélia: “Saia de bico” (sobre motivo popular), “O trem chegou” e “Sabiá na gaiola”, os dois últimos com a assinatura de Hervê Cordovil.

    No livro “Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga” (Ed. 34, 1996), de Dominique Dreyfus, Carmélia recordou: “(...) eu conheci um compositor mineiro, o Hervê Cordovil, que ia muito ao Copacabana [Palace] e se tornou muito amigo meu. Eu até o apresentei ao Luiz [Gonzaga]”. Ela se tornaria uma das grandes intérpretes de Hervê em 78 rotações, registrando pérolas como “Adeus adeus morena” (parceria com Manezinho Araújo), “Eh boi”, “Cabeça inchada”, “Esta noite serenou”, “Sei lá” – com participação vocal do próprio autor – e “A saudade é de matar” (novamente com Manezinho Araújo), que ela gravou com o marido, Jimmy Lester, e que Luiz Gonzaga recriaria com novo título, “Adeus Pernambuco”.

    Jimmy Lester (1914–1998), cantor e contrabaixista, era paulista de Franca e chamava-se José Andrade Vilela Nascimento Ramos. Conheceu Carmélia no Cassino Copacabana, onde foi atuar como cantor em 1944. Em entrevista à Revista do Rádio de 24/07/1965, ela contou que o romance teve início graças a Nuno Roland, amigo de Jimmy desde São Paulo, que estava também atuando no cassino: “[Nuno] quis fazer ambiente para ele [Jimmy] com os outros colegas. Para isso promoveu um almoço em sua casa e sua esposa Juju pediu que eu ajudasse na cozinha. Jimmy gostou da comida que eu fiz e quis conhecer a cozinheira. Começamos a conversar e descobrir afinidades. Isso aconteceu em 1944 e três meses depois, no dia 27 de julho, já estávamos casados e felizes”. Em duo com Carmélia, Jimmy gravou, além de “A saudade é de matar”, o baião “Adeus Maria Fulô”, de Sivuca e Humberto Teixeira, um clássico da MPB (cuja história foi contada neste post).

    Carmélia conheceu Sivuca durante uma temporada na Rádio Jornal do Commercio do Recife (segundo o depoimento dela em 1991 ao programa Ensaio, da TV Cultura, isso teria acontecido em 1951). Ela contava que nessa ocasião foi chamada de “rainha” pela primeira vez, quando, em sua última apresentação, para tentar atender a todos os pedidos do público recifense, ela e Sivuca improvisaram um pot-pourri de baiões. Ao voltar para o Rio – trazendo Sivuca na “bagagem” –, aconteceu a coroação oficial, como revelou a Dominique Dreyfus:

    “Depois que voltei do Recife, Luiz [Gonzaga] me levou para o programa que ele tinha com Humberto [Teixeira] e Zé [Dantas], e lá me apresentou como a Rainha do Baião. No dia seguinte, a imprensa já estampou: ‘Carmélia Alves foi eleita Rainha do Baião’. Luiz Gonzaga resolveu, então, concretizar o título, e me convidou novamente para o programa, onde me coroou oficialmente, colocando na minha cabeça um chapéu de couro (...). Claro que eu não ia usar essa indumentária, porque, trabalhando na boate do Copacabana, eu cantava baião de soirée. O meu baião era com orquestra. Luiz, ele, sempre nas origens, me dizia: ‘Você vai com a elite, no society, e eu vou com o povão, pé no chão’”. Citado por José de Jesus Ferreira em seu livro, Gonzaga ratificou: “Foi ela quem primeiro interpretou o ritmo do baião com acompanhamento de orquestra em ambientes seletos e elitizados”.

    Em 1953, o Nordeste conheceu uma de suas mais terríveis estiagens, que levou fome à população. A classe artística se engajou e diversas composições surgiram, umas criticando o poder público, outras pedindo socorro. “Ajuda teu irmão” foi o apelo feito por Humberto Teixeira por intermédio das vozes de Carmélia e do Trio Melodia. Os mesmos intérpretes se juntaram no ano seguinte para voltar ao tema da seca no clássico “Baião da garoa”, de Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil (com uma estrofe não gravada por Gonzaga na sua versão de 1952).

    “Carmélia Alves foi bastante prejudicada por duas discutidas invenções: o baião e o auditório. Quem não tem saudade da Carmélia de dez anos atrás, de voz gostosa e aveludada, isenta por completo dos frenéticos gritinhos (‘ô-ô-í-í-í’) de agora?”, criticava o equivocado texto publicado n’A Cigarra de fevereiro de 1955. No mesmo ano e na mesma revista (edição de novembro), Jurandir Chamusca, ao comentar um lançamento da cantora, também não perdoou: “Carmélia Alves, graças a Deus, veio desta vez sem baião e por isso mesmo com aquela classe de outros tempos, quando não inventara ainda os famosos gritinhos”. Uma das características mais deliciosas e charmosas da intérprete, os tais “gritinhos” surgiram, na verdade, em 1949, já na gravação de “Me leva”, como ela própria recordou no “Ensaio” da TV Cultura.

    Baixinha, ela precisava dividir o microfone com o enorme Ivon Curi. O marido Jimmy, presente ao estúdio, encontrou a solução: fez Carmélia subir num caixote. Ali, equilibrando-se durante o ensaio, ela chegou à parte em que dizia “Me leva...”. “Só que eu, pra fazer esse ‘me leva’, eu dei um balanço no corpo pra sentir a música: ‘Me leva...’. Aí o caixote balançou, mas tava ensaiando e eu fiz assim: ‘Ooooiiii’. Aí todo mundo achou que o ‘oooiii’ tinha que ficar, e ficou. E a gravação ficou muito bonitinha, porque em todas as intervenções que eu fazia eu dizia: ‘Me leva, oooiii’”.

    Contratados pela Record de São Paulo em 1954, Carmélia e Jimmy foram morar na capital paulista. Lá, ela passou a se destacar também como animadora de auditórios e apresentadora de programas: Sabatina em Lá Maior, A Felicidade Bate à Sua Porta, O Nome do Dia, Pergunte o que Quiser, Long-Play de Carmélia... Foi uma década muito produtiva para a popular artista, uma das campeãs de mensagens de fãs nas seções de cartas dos periódicos nos anos 1950, como a Revista do Rádio. Ela também deu expediente no cinema – passatempo que, aliás, adorava.

    Entre os filmes de que participou, estão “Tudo azul”, de Moacyr Fenelon (1952), onde ela cantava “Eu sou o baião”; “Agulha no palheiro” (1953), no qual ela interpretava um samba, “Muamba”; “Está com tudo”, de Luiz de Barros (1953); “Uma aventura no Rio”, de Alberto Gout (1953), onde ela comparecia com o sucesso “Cabeça inchada”; “Carnaval em Caxias” (1954), com Carmélia vestida de vaqueira; “Carnaval em Lá maior” (1955), onde ela mostrava a marcha “Disco voador”; e “Trabalhou bem... Genival” (1955).

    No período de 1956 a 1961, Jimmy e ela (com roupa de cangaceira estilizada) percorreram o mundo, levando o baião a diversos países da Europa – entre eles Alemanha, França, Bélgica, Portugal – e até à África. O ritmo contagiante já havia chegado anos antes ao velho continente, e Humberto Teixeira tratou de fazer a crônica musical, num baião elogiado por Antônio Maria em O Jornal (em nota transcrita pela Revista do Rádio de 10/04/1951): “Gostosíssimo, ‘O baião em Paris’, e deliciosa a interpretação de Carmélia Alves. Nunca se disse – nem em Paris – ‘oh lalás’ tão bons de ouvir”. Em 1963, já morando novamente no Rio, a cantora voltou a viajar pela Europa como integrante da sexta Caravana da Música Popular Brasileira, projeto criado por Humberto Teixeira (quando atuou como deputado federal entre 1955 e 1959) para fazer a propaganda da nossa música popular no exterior.

    Versátil, deixou algumas vezes o baião de lado para mostrar que era uma artista completa, que dominava qualquer ritmo. Em 1951, atacou de “É frevo meu bem”, do mestre Capiba, o segundo dos vários frevos que deixou registrados em disco. Carmélia devia gostar do gênero: a Revista do Rádio de 21/01/1956 trazia uma foto dela fazendo o passo, com sombrinha e tudo. Um Lamartine Babo diferente, sem o humor habitual, chegou pela voz dela em 1954 através do choro “Três de abril”. E seu último registro em 78 rpm foi um mambo-calipso, “Kanimambo”, em 1963. Gravou poucos long-playings em sua carreira; um deles foi dedicado a um estilo de música nunca associado a ela: “Bossa Nova com Carmélia Alves”, de 1964.

    No histórico show das Seis e Meia, em 1977, além de reviver seus antigos sucessos, Carmélia lançou duas composições de Luiz Bandeira: a citada “Reis do baião”, parceria com Luiz Gonzaga, e um clássico da MPB que ficaria marcado na voz de Clara Nunes três anos depois: “Viola de Penedo”. De mestre Bandeira, Carmélia deixou seis músicas em 78 rotações, entre elas dois outros clássicos: “Maria Joana”, acompanhada pela sanfona e pela voz de Sivuca, e o frevo-canção “É de fazer chorar”, que ainda hoje emociona os foliões do Carnaval de Pernambuco. Ainda com Sivuca, ela gravou a série “No mundo do baião” – pot-pourris de famosas peças do gênero – e “O voo do mangangá”, no qual o sanfoneiro dá uma mostra de sua virtuosidade, executando, nos teclados do seu instrumento, um trecho do frenético “O voo do besouro”, de Rimsky-Korsakov.

    Criado em 1987, o grupo Cantoras do Rádio teve, em seu elenco original, Carmélia Alves, Ademilde Fonseca, Ellen de Lima e Violeta Cavalcanti. Mais tarde outras formações surgiram, com novas integrantes: Nora Ney, Rosita Gonzales, Zezé Gonzaga, Carminha Mascarenhas. Nas décadas de 1990 e 2000, as eternas rainhas da MPB lançaram discos, fizeram shows, apresentaram-se em programas de televisão e conquistaram novos fãs. E mostraram que ainda estavam em plena forma: em show no Teatro Rival (Rio de Janeiro) em 2005, Carmélia aparece no palco, ao som de “Trepa no coqueiro”, fazendo – nas suas próprias palavras – “um xaxado bem sacana” e mostrando as pernas aos 82 anos, para delírio do público!

    Por causa de “solidão” e de “falta de dinheiro”, como noticiou Assis Ângelo em seu blog de 01/12/2010, Carmélia havia passado a viver, desde meados daquele ano, no Retiro dos Artistas, no bairro carioca de Jacarepaguá. Foi lá que celebrou seu último aniversário. Aos 89 anos, no dia 03/11/2012, a rainha foi mostrar aos anjos como se dança o baião. O pedido feito em “Reis do baião” não foi atendido: nunca surgiram sucessores para ela e para Luiz Gonzaga. Nunca existiram outro rei e outra rainha do gênero. Discípulos e súditos, no entanto, felizmente há aos milhares por esse Brasil afora, espalhando a semente da música nordestina pelos quatro cantos do mundo. Como sempre fez a própria Rainha do Baião.

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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