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    Um breque para lembrar Ciro Monteiro, um mestre da bossa, das amizades e da boemia

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Leve um recado para meus amigos Vinicius de Moraes, Fernando Lobo e Reinaldo Dias Leme. Diga a eles que é para não chorar, porque eu tenho um encontro marcado com Pixinguinha, Stanislaw Ponte Preta e Benedito Lacerda. Eu não bebo há dois anos e agora vou tomar o maior pileque da minha vida.”

    A mensagem de Ciro Monteiro aos amigos mais chegados circulou amplamente na imprensa carioca no dia 14 de julho de 1973, nos obituários que anunciavam sua morte, ocorrida na véspera, na Casa de Saúde Santa Maria, em Laranjeiras, onde o cantor havia se internado dez dias antes, sofrendo de problemas renais. Recado dado à jornalista Edna Savaget, numa das visitas que recebeu durante a internação de dez dias – período em que seu quadro se agravou (tendo sido operado duas vezes), até tornar-se irreversível. Pelo teor do bilhete, nota-se que algumas cláusulas pétreas do seu modus vivendi permaneceram inalteradas: o bom humor, a boemia e o carinho pelos amigos.

    E pensar que o boêmio Ciro, quando menino, sonhava seguir a carreira regrada do pai, o capitão da reserva Ildefonso Monteiro. Acabou falando mais alto o ambiente musical da família, onde todos cantavam: os oito filhos e a matriarca, D. Luísa, que tocava violão. E eram frequentes os saraus na casa da família – fosse em Niterói, onde residiram a partir de 1915 (primeiro no bairro do Fonseca, depois em Santa Rosa e, por fim, Icaraí), fosse no Rocha – bairro carioca onde nasceu Ciro, há 110 anos, no dia 28 de maio de 1913.

    Mas a estrela musical da família nessa época era mesmo o irmão de D. Luísa, Romualdo Peixoto, o Nonô, pianista e compositor afamado no rádio (saiba mais sobre ele neste post). Graças a ele os saraus familiares às vezes tinham presenças ilustres como uma dupla de sucesso do Programa Casé, na Rádio Philips: Silvio Caldas e Luís Barbosa – este o primeiro ídolo de Ciro, que via suas interpretações como “verdadeiras lições”, “dizendo o samba, conversando, improvisando”, como contou no depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, o MIS (07-04-1970).

    Até que Luís Barbosa trocou de emissora e Sílvio não pensou duas vezes: atravessou a Baía de Guanabara para recrutar Ciro, que já vinha praticando duetos com o irmão Careno e, de repente, viu-se cantando no rádio, com o consagrado Silvio Caldas. De quebra, era acompanhado ao piano por Nonô – que se orgulhava do sobrinho e aproveitava para orientá-lo, como Ciro contou ao MIS. “Terminada a apresentação, ele, além de corrigir as divisões do iniciante nervoso, me ensinava a respirar certo.” Já o compositor Eratóstenes Frazão foi fundamental corrigindo sua dicção: “Ajudou-me muito num dos aspectos mais difíceis, essenciais e delicados para um cantor.”

    Pouco depois já estava cantando na Rádio Mayrink Veiga, onde passou a ser apresentado como “o Cantor das Mil e Uma Fãs”, apelido criado por Cesar Ladeira, diretor artístico da emissora. Foi lá, onde começou a namorar a cantora Odete Amaral (sua companheira de 1937 a 1949), que recebeu o convite para estrear em disco: um 78 rotações de 1936 que, de tão apagado, o próprio Ciro fazia questão de esquecer nas entrevistas que dava. Em ambos os lados estavam músicas assinadas pelo sambista-pugilista Kid Pepe: “Vê se desguia” (dele com Germano Augusto e Alberto Fadel) no lado A e “Perdoa” (com João Barcelos) no B.

    Até que, num certo dia de 1938, Ciro aquecia o gogó para cantar no programa Picolino, de Barbosa Jr., quando recebeu uma visita do amigo Célio Ferreira, trazendo-lhe um presente: “Carne Seca, ouve só este samba que eu aprendi lá no Rio Grande”, dizia, recém chegado de Porto Alegre, onde conhecera “um sujeito que tem cara de tudo, menos de sambista” (JB, 14-07-1973). O sujeito era Lupicínio Rodrigues e o samba, “Se acaso você chegasse”, que Ciro apresentou em primeira mão no programa, acompanhado de Nonô.

    Se acaso você chegasse
    No meu chatô e encontrasse
    Aquela mulher
    Que você gostou

    Os ouvintes gostaram tanto que foi preciso cantá-lo mais três vezes na sequência, começando a atiçar o interesse das gravadoras. Quem chegou primeiro foi a Victor, porém com uma questão: o diretor da empresa, Richard Evans, não queria Ciro. “Ou ele grava ou o samba morre”, peitou Felisberto Martins, que acabaria assinando a composição de “Se acaso você chegasse” com Lupicínio. Nascia então o primeiro sucesso do sambista gaúcho e do próprio Ciro, que passou o resto da vida chamando aquele samba de “meu hino nacional”.

    Já Mister Evans (“um americano muito chato”, zombava) teve que se conformar com os sucessos que o cantor passou a emplacar. Como em janeiro de 1941, quando o clássico de Ary Barroso “Os quindins de iaiá” teve sua gravação original num 78 rotações de Ciro. Sua voz correu o Brasil, conquistando admiradores – entre eles o compositor pernambucano Capiba, que passou a inserir uma recomendação manuscrita nas partituras que enviava às gravadoras cariocas: “Quero que este frevo seja gravado por Ciro Monteiro.” Foi numa dessas que se deu a primeira gravação de “Linda flor da madrugada”, frevo-canção do mesmo ano de 1941.

    Por essa época, Ciro já tinha emplacado seu primeiro sucesso de carnaval: o samba “Ó Seu Oscar” (dos craques Wilson Batista e Ataulfo Alves), que venceu, em 1940, a Noite da Música Popular – grande concurso realizado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP), do Governo Vargas, no estádio do America FC. Na folia seguinte, a mesma dupla de compositores emplacou – de novo na voz de Ciro – outro clássico do samba: “O bonde São Januário”, que a censura do mesmo DIP converteu em apologia ao trabalhismo, mas originalmente era menos adesista, como contou Rodrigo Alzuguir em “Wilson Baptista: o samba foi sua glória” (Casa da Palavra, 2013), transcrevendo um trechinho da letra original:

    O bonde São Januário
    Leva mais um
    otário
    Sou eu que vou trabalhar

    Com ou sem Ataulfo, Wilson forneceu a Ciro outros sucessos de seu repertório: entre as doze composições de Wilson lançadas por ele em 78 rotações estão, por exemplo, pérolas como o sofrido “A mulher que eu gosto” (de Wilson com Ciro de Sousa), de 1941, e o incendiário “Nega Luzia” (co-assinado por Jorge de Castro), de 1956.

    Outro compositor que entrou para a história da música brasileira com as bossas de Ciro Monteiro foi Pedro Caetano. São dele sambas melodiosos como o divertido “O vestido que eu dei” (com Alcir Pires Vermelho) e o romântico “Cravo branco” (com Ary Monteiro), lançados pelo cantor, respectivamente, em 1943 e 1945. Já de Pedro Caetano sozinho foi uma das músicas mais executadas de 1942: “Botões de laranjeira”, choro “tão tocado que até eu, que tinha gravado, já não queria mais ouvir”, relembrou Ciro no programa MPB Especial, da TV Cultura (21-07-1972).

    Também em ritmo de choro o compositor fez “O que se leva dessa vida”, culto ao hedonismo que caiu como um hino no repertório do glutão e boêmio Ciro:

    O que se leva dessa vida
    É o que se come
    É o que se bebe
    É o que se brinca, ai ai...

    Gravado com acompanhamento de Benedito Lacerda e seu Regional, o choro de Pedro Caetano chegou às lojas de discos em maio de 1946, no outro lado do 78 rotações (Victor 80-0406) que trazia mais um clássico do samba, “Rugas”, o samba de Nelson Cavaquinho que, ironicamente, parece ambientado no dia seguinte à festa cantada do outro lado.

    Eu que sempre soube esconder a minha mágoa
    Nunca ninguém me viu com os olhos rasos d’água
    Finjo-me alegre pro meu pranto ninguém ver
    Feliz daquele que sabe sofrer

    Nelson Cavaquinho se faz presente no repertório de Ciro também através de dores-de-cotovelo compostas na mesma década de 1940: os sambas “Não te dói a consciência” (co-assinado por Augusto Garcez e Ary Monteiro), de 1943, e “Aquele bilhetinho” (com Garcez e Arnô Canegal), de 1945.

    Sem contar Geraldo Pereira, o mestre dos sambas sincopados, que encontrou nas bossas de Ciro a sua mais completa tradução. E a recíproca era mais que verdadeira: os sambas do compositor mangueirense eram a matéria-prima perfeita para os requebros vocais que o distinguiam de outros cantores. “Se dependesse de voz bonita, eu nunca seria sambista”, disse Ciro no depoimento ao MIS.

    Ciro e Geraldo viraram bons amigos assim que se conheceram, no comecinho dos anos 1940, na Rádio Mayrink Veiga. Logo, o compositor passou a abastecer o cantor – a quem tratava por “meu padrinho” – de ótimas crônicas musicadas, como os sambas “Acabou a sopa” (mais um com Augusto Garcez), do próprio ano de 1940, “Até hoje não voltou” (com J. Portela), de 1946, e “Pisei num despacho” (com Elpídio Viana), de 1947.

    Entre as doze gravações resultantes do encontro está também o primeiro e maior sucesso de Geraldo, “Falsa baiana”, que saiu em junho de 1944, com sucesso imediato: “Vendeu seis mil discos de 78 rotações, o que na época era um negócio!”, relembrou, na entrevista ao MPB Especial.

    Baiana que entra na roda e só fica parada
    Não samba, não mexe, não bole, nem nada
    Não sabe deixar a mocidade louca...

    Até que um ótimo sincopado de Geraldo (“Chegou a bonitona”) se bandeou para a voz de Blecaute em 1948 e a amizade ficou estremecida. Só voltaram às boas em 1955, quando Ciro lançou o samba “Escurinho”, último sucesso de seu “afilhado”, lançado em disco em fevereiro, três meses antes da morte de Geraldo, em 8 de maio de 1955, vítima de uma hemorragia interna.

    O disco da Todamérica, que também trazia a gravação original de “Tem que rebolar” (Magno de Oliveira e José Batista), em dueto de Ciro com Mariuza, era o primeiro do cantor desde 1951, quando saiu o 78 rotações de “Sacode Carola” (Hélio Nascimento e Alfredo Marques). Nesse intervalo de quatro anos, travou um duelo pesado contra a tuberculose – doença que o levou à mesa de cirurgia em 1953, quando uma toracoplastia o deixou sem três costelas.

    “Meu pulmão tem mais buracos que um queijo suíço”, diria o bem-humorado Ciro, zombando de sua própria condição, enquanto reaprendia a cantar e, aos poucos, retomava a carreira com novidades: em 1956, fez sua estreia teatral em “Orfeu da Conceição”, musical do amigo Vinicius de Moraes no qual interpretava Apolo, pai de Orfeu – este vivido por Haroldo Costa. Já em 1961, quando a Columbia lançou o disco “Sr. Samba” (primeiro LP de Ciro), coube a Vinicius escrever o texto da contracapa, comparando a embocadura do amigo à de João Gilberto.

    “Eles foram não somente os descobridores máximos de divisões e síncopes inéditas na música popular carioca, mas os artífices pacientes e laboriosos de um modo de emitir o samba que dá a impressão, a quem os ouve, de que qualquer pessoa pode cantar”, define o poeta. “Em vez de inibir o ouvinte com interpretações viciadas por tiques, inflexões desnecessárias, vibratos anódinos ou obsoletos, sem qualquer raiz na verdade do canto, eles trabalham o que cantam até atingir o ponto mais próximo da perfeição, que é aquele onde mora a simplicidade.”

    Um canto sem afetações, sim, mas também com seus molhos. Como os beijos que ele estala num breque de “Beija-me” (Roberto Martins e Mário Rossi), de 1943. Os vibratos leves que faz na segunda parte de “Deus me perdoe” (Humberto Teixeira e Lauro Maia), de 1946. Ou a articulação com que valoriza o balanço do samba híbrido “Boogie woogie na favela” (Denis Brean), sucesso do pós-guerra que Ciro lançou em 1945.

    Vinicius ainda produziu um ótimo LP para o amigo (“De Vinicius e Baden especialmente para Ciro Monteiro”, Elenco/1965) e acompanhou de perto seus lançamentos fonográficos seguintes: os solos “Meu samba, minha vida” (Copacabana/1969) e “Alô jovens: tio Ciro Monteiro canta sambas dos sobrinhos” (Continental/1970). No repertório deste último, o destaque é “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de neném”, samba-choro composto pelo tricolor Chico Buarque como uma resposta ao veterano cantor, rubro-negro apaixonado, que dera de presente uma camisa do Flamengo à recém nascida Sílvia, primogênita de Chico e da atriz Marieta Severo.

    Mas caro nego, um pano rubro-negro
    É presente de grego, não de um bom irmão
    Nós separados nas arquibancadas
    Temos sido tão chegados na desolação

    Outros LPs foram os três que gravou em dueto: dois volumes de “A bossa eterna de Elizeth e Ciro” (1966 e 1969), feitos pela Copacabana a partir no programa Bossaudade, da TV Record, e o disco “De leve”, dividido com Jorge Veiga (RCA, 1971). Sem contar os registros de espetáculos estrelados por Ciro: “Telecoteco Opus nº 1” (Philips/1966), no qual bate bola com o serelepe Dilermando Pinheiro. E “Mudando de conversa” (Odeon/1968), onde revive seus sucessos entre as dores-de-cotovelo de Nora Ney e os sambas de terreiro de Clementina de Jesus.

    “Quando Ciro morrer, o que eu espero que aconteça o mais tarde possível e um pouquinho só depois de mim, que é para eu não morrer, também, de saudades dele”, arriscou Vinicius de Moraes num perfil dedicado ao amigo-ídolo (O Pasquim, 21-05-1970), “morrerá com ele um estilo de cantar.” Pois o poeta foi justamente uma das ausências marcantes no Cemitério São João Batista, onde Ciro foi velado e sepultado na tarde de 14 de julho de 1973.

    Nas despedidas, acompanhadas por cerca de duas mil pessoas, foi preciso haver revezamento de amigos entre os que carregaram o caixão até o túmulo (nº 164, quadra 13), devidamente coberto pela bandeira do Flamengo, conforme pedido do artista a Maria José de Oliveira Barros, a Lu, sua companheira desde 1950. As homenagens se completaram com o coro cantando o hino do Rubro-Negro e “Se acaso você chegasse”, acompanhado por alguns na caixinha de fósforos – utensílio que, batucado com destreza e muita bossa, virou uma das marcas do cantor em suas apresentações a partir da década de 1960.

    Mais divertido – e portanto mais adequado a Ciro – teria sido se também tivessem cantado “Meu pandeiro”, samba-choro de 1947 assinado por Ary Monteiro e Luiz Gonzaga.

    Quando eu morrer
    Quero um braço de fora pra tocar o meu pandeiro
    Em homenagem
    Às morenas que gostam de mim

    Seja como for, foi uma despedida à altura do homenageado, com um toque pitoresco, segundo a reportagem do Diário de Notícias (15-07-1973), que reproduziu a fala de um dos presentes no velório: “Ele está rindo. Vocês observaram bem a fisionomia dele? Sorrindo mesmo. Não tem jeito o Ciro... Nem morto.”

    Foto de Alberto Rego: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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