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    ‘A jardineira’: os 85 anos (ou mais) de um grande sucesso do carnaval, das revistas e jornais

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Parte fundamental da história do rádio no Brasil, as novelas foram uma novidade na década de 1940. “Em busca da felicidade” foi a primeira. “O direito de nascer”, a de maior audiência. “Jerônimo, o herói do sertão”, outro sucesso imenso. Antes de todas elas, no entanto, teve “A jardineira”: a marchinha mais popular de 1939 (e uma das mais cantadas desde então), que rendeu boas histórias na imprensa. Do fim de 1938 até o fevereiro seguinte, foi um autêntico folhetim o que se viu nos jornais e revistas da época.

    Isso desde que a revista O Malho saiu, no dia 22-03-1938, antecipando o repertório que estaria na boca do povo no carnaval seguinte. “Após 30 dias do seu lançamento, as primeiras músicas do repertório carnavalesco de 1939 já estão com suas posições mais ou menos definidas”, afirmou a coluna Broadcasting, não assinada, sob o título “Carnaval na rua!”. “O primeiro lugar coube, sem dúvida, à marcha ‘A jardineira’, de Benedito Lacerda e Humberto Porto”, cravava o texto, colocando a famosa marchinha, até hoje obrigatória em qualquer baile carnavalesco que se preze, à frente de outras recém lançadas, como “Tirolesa” (Paulo Barbosa e Oswaldo Santiago) e “Florisbela” (Antônio Nássara e Eratóstenes Frazão).

    Faltou dizer que “A jardineira” era também, já àquela altura (e continuaria sendo), a mais falada de todas, desde que o Diário de Notícias riscou o fósforo na coluna O Diário nos Estúdios em 10-12-1938: “O plágio, ou melhor, a apropriação indébita da marcha ‘A jardineira’ é o assunto do momento nos meios radiofônicos. Avolumam-se os protestos, mas os autores não dão satisfações”, noticiou o texto, assinado com as iniciais D. M., de Djalma Maciel. “Enquanto isto, cobram-se os direitos autorais da composição e os senhores Humberto Porto e Benedito Lacerda recebem, naturalmente, o prêmio do trabalho de outrem.” No dia seguinte, a Gazeta de Notícias colocou lenha na fogueira: “Com franqueza...! Esse é um verdadeiro caso de polícia.”

    E pouco adiantava que, já na primeira menção da imprensa à marchinha, no Diário de Notícias de 04-12-1938, um texto de Jota Efegê sobre as músicas lançadas para o carnaval de 1939 apresentasse a música com suas origens. “Há, ainda, ‘A Jardineira’, uma marchinha de Humberto Porto que aproveita a velha cantiga dos ‘ternos’ da Bahia, grupos carnavalescos daquele estado, que os saudosos Hilário Ferreira e Germano trouxeram para o Rio e aqui tiveram a denominação de ‘ranchos’. Essa modinha, cremos, já aqui foi cantada, há cerca de trinta anos, pelo Dois de Ouro e Rosa Branca”, ensinava o famoso cronista carnavalesco. “No entanto, o seu compilador deu-lhe música bonita, carnavalesca e, desse modo, pretende avivar o nosso folclore, o que é trabalho meritório.”

    Os demais jornais e revistas, no entanto, não se interessaram tanto pelo contexto histórico. E assim, desde que “A jardineira” começou a rodopiar nos toca-discos, com o antigo refrão cantado por Orlando Silva, os jornais e revistas não sossegaram. “A imprensa baiana ataca coletivamente os autores cariocas que plagiaram aquela marcha da cidade do Salvador”, publicou O Radical (20-12-1938), ferido em seu orgulho fluminense, livrando a cara de pelo menos o mais chegado dos dois signatários da marchinha. “Entretanto, o autor Benedito Lacerda não tem nada com isso. Nem o Rio. Quem levou a Benedito Lacerda o folclore baiano, para que ele fizesse a segunda parte, foi um baiano, o Sr. Humberto Porto.”

    A novela ficou mais interessante com o capítulo de 27-12-1938. Nesta data, a Gazeta de Notícias resolveu perguntar sobre como seria se “A jardineira” vencesse o concurso de músicas carnavalescas, marcado para os primeiros dias de 1939: “Poderá ser o prêmio entregue a Benedito Lacerda e Humberto Porto?” Também trazia, com ares de suspense, a notícia de que a verdade estava prestes a ser revelada: “Podemos adiantar que os herdeiros do inspirado compositor vitorioso possuem provas esmagadoras da legitimidade da autoria, provas essas que nos serão fornecidas para publicidade.”

    A autoria de 'A jardineira' posta em xeque na capa de O Radical (27-12-1938)

    Melhor fez O Radical, na mesma data, dando o furo de reportagem: o depoimento de uma moradora de Turiaçu, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que se dizia autora da “Jardineira”. Era a senhora Maria das Dores, que teria composto a música em 1906, para o grupo de pastorinhas de sua cidade natal, Piranhas, em Alagoas. Moradora do Rio desde 1918, ensinou a música à neta, Eunice, que então resolveu cantá-la num programa de calouros na Rádio Nacional: isso em 14-07-1937, quando foi acompanhada pelo regional do violonista Carlos Lentine. “Finda a audição, esse músico, que é amigo de Benedito Lacerda, pediu que a neta de Maria das Dores repetisse a marcha, que, acentuou, ‘era muito bonita’”, relata o texto. “Apesar dos insistentes pedidos de Lentine para que lhe ofertasse a música, a neta de Maria das Dores negou-se a isso fazer e abandonou o meio radiofônico.”

    Foi o suficiente para que os leitores tivessem, enfim, alguma satisfação de Humberto Porto. Ex-estudante de medicina que trocou o bisturi pelo violão, o soteropolitano estava com seus 30 anos de idade (era nascido em 1908) quando conhecia o sucesso pela primeira vez. Primeira e única, diga-se, pois na breve obra que deixou em seus 35 anos de vida (faleceu em 1943), não há sucesso – nem a letra em português de “Babalu” (Margarita Lecuona), que Angela Maria gravou com boa repercussão – que chegue perto de “A jardineira”.

    Pois foi repleto de aspas dele que o jornal O Radical chegou às bancas em 29-12-1938, trazendo o novo episódio da saga: em entrevista ao periódico, o baiano contou que nunca se disse compositor de “A jardineira”. “O meu trabalho e o de Benedito Lacerda fora, apenas, o de adaptação ao ritmo carnavalesco, compondo uma nova segunda parte, bem diversa da que se cantava antigamente, e mais condizente com o valor da primeira”, explicou-se, não sem abrir mão da participação no sucesso desta melodia “que quase todo brasileiro traz consigo no subconsciente”, mas que passou “uma centena de anos” sem maior repercussão.

    Sem dar chance à investida de Maria das Dores e sua neta-caloura Eunice, Humberto Porto passou em seguida à história de como conheceu o refrão tradicional:

    “Reportemo-nos à Paquetá da Bahia de Todos os Santos, Itaparica. Noite de Reis. O terno da 'Jardineira' faz um sucesso louco dentro da noite lírica. Ela vem na frente. O coro pergunta:

    Ó, jardineira, por que estás tão triste?
    Mas o que foi que aconteceu?

    A encantadora ‘jardineira’, sozinha, mesmo sem interromper a coreografia típica, ensaiada com apuro durante todo o ano, responde:

    Foi a camélia que caiu do galho
    Deu dois suspiros e depois morreu...

    E assim segue o terno para adorar o Deus menino na lapinha armada no adro da igreja.”

    A segunda parte da música original, ainda segundo Humberto Porto, também já não era exatamente original. Os quatro versos complementares da canção eram entoados com um trecho da melodia de uma famosa valsa do fim do século 19, “As sirenes”, do francês Émile Waldteufel:

    Vem, jardineira
    Vem, meu amor
    Vem regar as flores
    Com teu regador

    Na nova segunda parte, maior e mais carnavalesca, “se fez evidente a inspiração do Lacerda”, como contou Humberto Porto na entrevista a O Radical, rebatendo com força as acusações que vinha recebendo através dos impressos. “Grite quem quiser gritar. Ficou-me a glória de ter descoberto a marchinha baiana. A América já existia quando Colombo abriu as cortinas da eterna oficina de Jeová e a tirou de lá”, comparou o imodesto músico, antes de cantar sua marchinha até o fim, entre os tique-taques das máquinas de escrever da redação:

    Vem, jardineira
    Vem, meu amor
    Não fiques triste
    Que este mundo é todo teu
    Tu és muito mais bonita
    Que a camélia que morreu

    Dali a duas semanas, Humberto Porto voltou a defender sua cria em outra visita a uma redação – a da revista Carioca – mas desta vez levou junto Benedito Lacerda. Seu parceiro em “A jardineira”, além de mais velho (nascido em 1903), era muito mais experiente: quando trocou sua cidade natal, Macaé (RJ), pelo Rio de Janeiro, na década de 1920, foi viver no Estácio, no meio de grandes sambistas, muita malandragem e toda sorte de negócios e apropriações musicais (há um post inteiro dedicado a sua trajetória). Na época do lançamento de “A jardineira”, já era músico do teatro de revista, do rádio e dos discos, fosse como flautista, fosse liderando seu conjunto Gente do Morro.

    Acabou que, no fim das contas, quem falou mais na revista Carioca (14-01-1939) foi o próprio Humberto Porto. Mas Benedito não deixou de defender seus louros: “Como aconteceu com a ‘Casinha pequenina’, todo mundo agora quer ser o autor da ‘Jardineira’. Apareceu nos últimos dias uma neta ou sobrinha de uma certa senhora de Alagoas que entendeu também de participar dos meus lucros e glórias”, resmungou o flautista e líder de conjuntos. “Mas a mocinha, que diz ser a autora da ‘Jardineira’, conheceu-a somente em dezembro de 1937. Sendo assim, a ‘Jardineira’ dela é muito diferente da minha. ‘A jardineira’ que eu apresentei para o carnaval de 1939 vem de muito longe. É do povo. Pertence ao nosso folclore.”

    Pouco adiantaram as explicações comovidas de Humberto Porto e Benedito Lacerda. No dia seguinte à visita dos dois parceiros à Carioca, Maria das Dores voltava à carga nas páginas d’O Radical (15-01-1939), agora cobrando 20$000 dos signatários da marchinha-sensação do carnaval de 1939. A “Jardineira” original, segundo o texto da petição, transcrito pelo jornal, já existia há pelo menos 30 anos, quando teria sido composta, “inspirada nas ilusões da mocidade de uma sertaneja, hoje velha e alquebrada, mas que, reunindo suas últimas forças, apela para a justiça moral dos homens de bem, no protesto do comércio que se faz aproveitando a boa fé e a pobreza de uma mulher”.

    A letra apresentada por Maria das Dores, como se viu nas páginas d’O Radical, também era diferente da gravada por Orlando Silva, sem a camélia e os suspiros que o povo vinha cantando nas ruas.

    Oh, jardineira, por que estás tão triste?
    Mas o que foi que te aconteceu?
    Foi a Jamélia que caiu do galho
    Deu um desmaio e depois morreu

    Pouco depois, foi a vez de o Sul do Brasil entrar na história. Primeiro através do tenente Paulino Martins, de Ponta Grossa (PR), que numa carta ao Radical (27-01-1939) contou ter escrito um arranjo de “A jardineira” para piano em 1922, quando servia como 1º sargento e mestre da banda de música do 13º Batalhão de Caçadores de Joinville (SC). Em seguida vieram os gaúchos informando no mesmo periódico – edição de 03-02-1939 – que a marchinha-sensação de 1939 era, originalmente, uma música religiosa. E teria sido composta pelo padre Frederico Manthe, conforme se lê na coletânea musical “Hinos e canções”, editada em fevereiro de 1937, pela Livraria do Globo. Aqui, onde “A jardineira” é apresentada como um dueto entre menino e menina, há diferenças na segunda parte:

    Ai da camélia, ai do labor
    Vai regar as flores com teu regador
    Vou regar as flores com o meu regador

    ...e também nas variações da letra da primeira parte, com um jardim mais florido que o da versão carnavalesca:

    Oh jardineira, por que estás tão triste?
    Tal como a ave que perdeu o ninho
    Porque a rosa ensanguentou-me o dedo
    Co’a ponta aguda do cruel espinho

    Oh jardineira, por que olhas tão triste?
    Quem as saudades pôs no rosto teu?
    Foi a violeta que, por ser medrosa,
    Entre as folhagens desapareceu

    “A jardineira” não venceu o concurso de músicas carnavalescas, naquele ano promovido pelo Departamento Nacional de Propaganda (DNP) do governo de Getúlio Vargas e decidido no voto popular. De acordo com o Diário Carioca (07-01-1939), a vencedora entre as marchinhas foi “Florisbela” (Nássara e Frazão), que obteve 7.858 votos, deixando “A jardineira” em segundo, com 5.120 votos, e “Miau, miau” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira) em terceiro, com 2.687.

    O resultado, claro, não ficou de fora da novela “floral” que se desenrolava no noticiário pré-carnavalesco. Como na revista Carioca, que na edição de 11-02-1939 trazia a crônica “Seu Benedito caiu do galho”, assinada por Maria Geralda, de Niterói: “O que é espantoso é que seu Benedito e seu parceiro Humberto Porto estejam calmamente arrecadando os direitos do padre Manthe e tenham recebido, na Exposição do Estado Novo, um prêmio de três contos de réis, que esse sacerdote poderia ter destinado a uma obra de caridade católica, compensando com uma aplicação religiosa o destino sacrílego que os foliões estão dando ao seu inocente e lírico dueto.”

    Os parceiros Humberto Porto (no violão) e Benedito Lacerda (na flauta) em destaque na edição de 07-01-1939 da revista Carioca

    A opinião da cronista cristã era mais uma entre as tantas que vinham pipocando na imprensa. A ponto de a revista Carioca (07-01-1939) dedicar uma seção inteira às cartas de leitores sobre a marchinha que “caiu no goto”, na expressão da época. Como Jerônimo José de Souza, que escreveu da Bahia argumentando que “A jardineira” pertence ao povo e, portanto, “não é justo que deixemos dois compositores, aliás – diga-se de passagem – ótimos, tomarem assim a paternidade da composição.” Já o Dr. Pinheiro, de São José dos Campos, escreveu que “Humberto Porto e Benedito Lacerda realizaram, agora, um milagre: o milagre de uma autêntica ressurreição”, fazendo “reviver, nos escaninhos do coração, aquela marchinha dos folguedos infantis”.

    E ainda teve o espirituoso Raul Celestino Cruz, “um baiano residente nesta capital” que escreveu para O Radical (01-01-1939) antecipando as músicas que Humberto Porto iria compor para o carnaval de 1940: “Tim dô le lê”, “Suçu sossega” e outras canções do folclore baiano. No fim, ainda corrige o conterrâneo, afirmando que “A jardineira” original “é cantiga de roda, de criança. Não de marcha de rancho de reis, nem de Lapinha, nem de segunda-feira do Bonfim”.

    Já na revista O Malho (12-01-1939), a coluna Broadcasting – em texto não-assinado – ressaltou que se trata de uma música de domínio público (“a lei permite a adaptação que fizeram para o ritmo carnavalesco”) e que, portanto, Humberto Porto não fez nada de errado ao aproveitar-se de um tema que conhecia desde a infância em Salvador. “Acalmem-se os baianos, ciosos das suas joias melodiosas e literárias”, espeta o articulista oculto. “A divulgação de 'A jardineira' em todo o país, pela voz de Orlando Silva, é um serviço que Humberto Porto prestou à Bahia, em cujo regaço ele colheu a camélia que caiu do galho.”

    À história pitoresca de “A jardineira” soma-se o fato de ela tido ter duas primeiras gravações. Isso porque na primeira de fato, realizada em 21-10-1938, Orlando Silva errou a letra de um verso na segunda parte, cantando “Não fiques triste que este mundo todo é teu”. Só na segunda, feita em 06-12-1938, pelo mesmo cantor e com o acompanhamento da mesma Orquestra Victor Brasileira (comandada por Pixinguinha), a letra saiu como é cantada até os dias de hoje nos bailes e blocos de carnaval: “Não fiques triste que este mundo é todo teu”.

    “A jardineira” foi relançada três vezes em discos de 78 rotações. A primeira em 1939, quando o pianista argentino Heriberto Muraro transformou-a em fox, acompanhado de piano e baixo. Depois, em 1956, a marchinha emendou-se com as também eternas “Pierrô apaixonado” e “Malmequer”, todas interpretadas no piano cheio de bossa de Carolina Cardoso de Menezes, que sola as melodias e também acompanha um coro formado para interpretar as canções. Por fim, ganhou ares natalinos em 1961, na interpretação do harpista paraguaio Luiz Bordon.

    Outra prova do sucesso (neste caso, imediato) de “A jardineira” foram as menções que recebeu em músicas de outros compositores, como por exemplo Ary Barroso, em dois sucessos de sua obra lançados no próprio 1939: o samba “Camisa amarela”, gravado por Aracy de Almeida, e a marcha “Iaiá boneca”, que Mário Reis gravou no fim do ano, para o carnaval de 1940. Sem contar as músicas feitas a partir dela, como o samba “Vem jardineira” (João de Barro e Alberto Ribeiro), que disputou a preferência dos foliões no carnaval de 1944, e a marchinha “A volta da jardineira”, lançada por Moreira da Silva (parceiro de Zózimo Ferreira na composição) às vésperas da folia de 1949.

    Foto: reprodução de página do jornal O Radical (03-02-1939)

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