<
>
/
 
0:00
10:00
autor  
interprete  
    minimize editar lista close

    Posts

    Viva Carlos Lyra: ação, sentimento, pensamento e bossa nova em 78 rpm

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    A bênção, Carlinhos Lyra
    Parceirinho cem por cento
    Você que une a ação
    Ao sentimento e ao pensamento

    Vinicius de Moraes foi preciso – como de costume – na saudação que fez a Carlos Lyra entre os “saravás” que dizia no fim do “Samba da benção” (de Vinicius com Baden Powell). Dirigiu-se ao parceiro equiparando seu talento imenso de melodista ao engajamento político que marcou grande parte de sua trajetória. Duas facetas hoje recorrentes nos diversos obituários que foram dedicados a Lyra após sua morte, na madrugada de ontem, 16 de dezembro de 2023, aos 90 anos, completados no último dia 11 de maio.

    Nascido numa família de classe média de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, foi no Colégio Santo Inácio, no mesmo bairro, onde cursou o primário (hoje ensino fundamental), que o menino Carlos Eduardo Lyra Barbosa teve os primeiros contatos com a música, como membro do coro – cantando em latim. “Foi a minha impressão definitiva para a música e para o palco”, relembrou a Fernando Faro no programa Ensaio, da TV Cultura (1991), sem se esquecer da rigidez do ensino e das rezas obrigatórias a cada duas horas. “Era tanto Deus, que ficou resolvida essa questão com Deus para a minha vida e para a eternidade também.”

    Sua relação com a música passa também pelo serviço militar: numa atividade esportiva um salto rendeu-lhe fraturas na perna e, como passatempo, a mãe entregou-lhe um violão. Os primeiros acordes, aprendidos por conta própria no método de Paraguassu, serviram para brincar de tocar e cantarolar sambas-canção de Dorival Caymmi, por enquanto sem a menor ideia da trajetória e da obra que faria dali alguns anos.

    Uma obra lançada, predominantemente, em LPs, mas na qual há alguns exemplares fundamentais que saíram em discos de 78 rotações. Como sua primeira música gravada, o samba-canção “Menino”, que Sílvia Teles lançou em 1956, depois de Geraldo Vandré ter interpretado em (e vencido) um festival da TV Tupi, em 1954, com o nome original: “Menina”. Depois foi a vez de Os Cariocas lançarem em 1957 a nacionalista “Criticando”, divertida defesa do samba que, de certa maneira, antecipa o alerta de um de seus maiores sucessos, “Influência do jazz”, aqui representado numa gravação da paraense Célia Reis em 1962.

    “Essa eu fiz como uma canção de protesto, reclamando mesmo”, incomodado que estava com a maneira como os gêneros musicais brasileiros vinham assimilando elementos de lá. “Tom Jobim brincava comigo que era um protesto subliminar”, contou Lyra à jornalista Patrícia Palumbo no Sesc Instrumental Brasil (2018). “Acabou que ‘Influência do jazz’ é a música mais influenciada pelo jazz que eu fiz.”

    No fim das contas, o gênero musical estadunidense estava entre as bases musicais não só do próprio Lyra, como de Roberto Menescal, entre outros contemporâneos. “Mas não qualquer jazz”, frisava Lyra. “O que fazia a nossa cabeça era o ‘West Coast’, de Chet Baker, Gerry Mulligan e o Modern Jazz Quartet”, enumerou na mesma entrevista. Quando se aproximou desse repertório, já tinha aulas de violão com professores: primeiro Edhir Lins (vulgo Bandeirante) e, depois, José Paiva, “um sargento reformado que era um verdadeiro menestrel” e o aproximou do violão clássico.

    Logo estaria, ele próprio, dando aulas de violão a alunos que dividia com Menescal. Pela “academia de violão” – na verdade um quarto-e-sala na Rua Sá Ferreira, em Copacabana – chegaram a passar futuros figurões da MPB, como Nara Leão, Wanda Sá, Edu Lobo e Marcos Valle. Queriam aprender a nova batida de violão que despontava com a bossa nova: fosse a batida de João Gilberto, fossem as variantes dos próprios Lyra e Menescal – estes amigos desde os tempos do Colégio Mallet Soares, onde Lyra concluiu o segundo grau (hoje ensino médio).

    Mas na arte de fazer música o primeiro parceiro foi Ronaldo Bôscoli, cinco anos mais velho: começaram por uma brincadeira sobre o tema do Gordo e o Magro que desaguou em “Lobo bobo”, emblema bossa-novista de 1959, ainda mais na voz de João Gilberto. Depois brincaram de trocar a ordem das coisas em “Se é tarde me perdoa”, um poema de Bôscoli que Lyra transformou em samba e Silvia Teles lançou em 1960.

    E ainda experimentaram caminhos diferentes como o da “Canção que morre no ar”, descolada da ligeireza bossa-novista que até ali marcava a produção dos dois. “Cheguei na casa do Ronaldo com uma melodia que é daquelas que não vão tocar no carnaval nunca, né?”, brincou Lyra na entrevista ao Sesc Instrumental Brasil. O próprio parceiro, mordaz, também fez piada: “Ronaldo disse: olha, Carlinhos, essa vai vender duas cópias: uma pra tua mãe e outra pra minha.”

    “Maria Ninguém”, de Lyra sozinho, caiu nas graças não só de João Gilberto, que a gravou no seminal LP “Chega de saudade” (assim como “Lobo bobo” e “Saudade fez um samba”, ambas com Bôscoli), como da então primeira-dama dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy, que tinha “Maria Nobody” entre suas preferidas.

    Aliás, o famoso show no Carnegie Hall, em Nova York, que em 1962 fez a bossa nova debutar no hemisfério norte do planeta, estava entre as lembranças recorrentes de Lyra. Lembranças não muito boas: “Aquilo foi um horror”, definiu no programa Um Café Lá em Casa (2016), de Nelson Faria, a quem contou da frustração que sentiu ao constatar in loco que o show coletivo – criado por um empresário local interessado em editar por lá o repertório brasileiro – era cheio de artistas que nada tinham a ver com a bossa nova. Quis ir embora no meio da noite, mas foi advertido por Tom Jobim: “Aqui não pode fazer isso não. Tem cadeira elétrica.”

    Nessa época já era parceiro de Vinicius de Moraes, de quem se aproximou por intermédio de João Gilberto, que lhe avisou: “Cuidado, Carlinhos, que ele só fala em diminutivos.” Telefonou pedindo “umas letrinhas” e logo depois já estava no apartamento do poeta, no Parque Guinle, em Laranjeiras, onde deixou melodias num gravador. Uma semana depois, “Você e eu”, “Coisa mais linda” e outras letras inauguravam a parceria, que resultaria em outros sucessos, como o samba-canção “Minha namorada” e “Primavera”, que Lyra definia como “uma modinha” ou até “um chorinho disfarçado”. “Bossa nova não é só samba”, dizia.

    Haja vista a “Marcha da quarta-feira de cinzas”, mais uma com Vinicius, esta frequentemente associada aos anos de chumbo em que o Brasil mergulhou após o golpe militar de 1964 – só que a composição era do ano anterior. “Vinicius teve uma premonição, ele já sentia o que estava por vir”, contou Lyra a este site, num post sobre a música, antes de citar o estadunidense Ezra Pound: “Os poetas são a antena da raça.” “Nunca vi um cara mais danado pra botar letra numa música”, sublinhou no programa Ensaio, da TV Cultura (1991). “Vinicius pegava o espírito da música de estalo, como nenhum outro letrista.”

    Da parceria também nasceu o musical “Pobre menina rica”, criado logo no início da produção deles, em 1960/61. Com canções como “Sabe você”, “Maria Moita” e “Samba do carioca” (além da já citada “Primavera”), o repertório teve sua première em 1963, numa temporada de Lyra e Nara Leão na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana. No ano seguinte, foi gravado num disco na CBS, com arranjos de Radamés Gnattali e Lyra dividindo os vocais com Dulce Nunes e outras novidades – entre elas o cantor Moacir Santos, que chegou ao estúdio “de terno e gravata, para o solene momento de gravar pela primeira vez”, como Lyra escreveu no programa do show em que refez o repertório do disco com a cantora Cris Delanno, em 2011, no auditório do Instituto Moreira Salles.

    Nessa época, já trazia a experiência das peças teatrais que vinha musicando no CPC da UNE (o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes), como “As mais-valia vai acabar, Seu Edgar” (Oduvaldo Vianna Filho, 1960). Neste grupo, do qual participava com Vianninha, Leon Hirszman e outros, punha em prática o olhar político que o descolava de boa parte de seus pares da bossa nova, como diretor musical do grupo.

    Foi no contexto do CPC da UNE que vieram composições marcantes da porção mais engajada de sua obra de compositor, como a “Canção do subdesenvolvido” (com Chico de Assis) e o “Hino da UNE” (com Vinicius de Moraes). Já para o filme “Gimba, o presidente dos valentes” (Flávio Rangel, 1963), compôs “Feio não é bonito”, com Gianfrancesco Guarnieri. E o curta “Couro de gato” (Joaquim Pedro de Andrade, 1962), que se soma a outros quatro no filme “Cinco vezes favela”, tem como guia o belo samba “Quem quiser encontrar o amor”, de Lyra com o paraibano Geraldo Vandré.

    “A bossa nova nasceu no Rio de Janeiro, mas não é carioca”, costumava dizer, como definiu ao Sesc Instrumental Brasil. “Lá estavam João Gilberto, que era da Bahia, João Donato, do Acre, Geraldo Vandré, da Paraíba, Sérgio Ricardo, de São Paulo...” Também não concordava com a tese de que a bossa nova teria nascido no apartamento de Nara Leão, na Avenida Atlântica. “Pra mim nasceu na boate do Hotel Plaza”, disse no programa Ensaio, sobre o local onde, em meados da década de 1950, ia ver Johnny Alf, Dolores Duran, Lúcio Alves e Dick Farney, entre outros precursores do movimento. “Foi ali que comecei a decidir que eu não queria ser arquiteto, mas músico.”

    A faculdade de Arquitetura, que morreu para ele antes mesmo de começar (só até o pré-vestibular), perdeu logo para a atividade de compositor, que corria em paralelo à vida oficial e já tinha rendido frutos como sua primeira composição, o samba-canção “Quando chegares”, feito no início dos anos 1950 “Todo mundo interpretou essa música como se ela fosse terrivelmente machista, mas na verdade era uma autocrítica machista”, contou no programa Ensaio.

    Também desta fase inicial são outros sambas românticos – todos sem parceiro – que reforçam a qualidade não só de seu trabalho como melodista (é considerado um dos grandes da música brasileira), como também de letrista: “Sem saudades de você”, “Só mesmo por amor” e “Ciúme”, este último interpretado lindamente por Alaíde Costa em gravação de 1960. Dessa mesma época são duas parcerias com Marino Pinto que saíram em discos de 78 rotações interpretadas por vozes marcantes no mesmo ano, de 1959: o samba-canção “Velhos tempos” entoado por Dalva de Oliveira e o samba “Erros de gramática”, balançado no canto de Marlene.

    Depois que a bossa nova se consolidou, Carlos Lyra não embarcou na era dos festivais (“Arte não deve competir: estou fora”) e partiu para o exterior em 1964. Viveu entre o México e os Estados Unidos, onde trabalhou com Stan Getz e seguiu com sua atividade criativa, fosse compondo e gravando, fosse tendo suas músicas lançadas em vozes locais – como a da cantora Eydie Gormé, que incluiu sua “The message” (letrada por J. Lehmann) no LP “Blame it on the bossa nova”.

    De volta ao Brasil em 1971, dá com a cara na porta na Censura Federal e, em 1974, já está volta aos Estados Unidos, para novo autoexílio, até 1976. No retorno de vez ao Brasil, retomou a produção intensa para teatro e logo emendou nos revivals que a bossa nova teve a partir do fim da década de 1980, relembrando seus grandes sucessos da época, sem nunca perder o olhar para a situação social do Brasil.

    “O lirismo é fundamental até na minha participação política. Nas minhas canções eu sempre fiz questão de que houvesse esse lado lírico, poético. E sempre me preocupei muito com a forma. A ‘Canção do subdesenvolvido’ é um banho de forma, porque a gente se esmerou para fazer direito, lapidando”, definiu Lyra em entrevista à professora e pesquisadora Santuza Cambraia Naves no livro “A MPB em discussão” (Editora UFMG, 2006). “As pessoas gostam de ouvir, até hoje, o ‘Hino da UNE’, feita com o Vinicius, porque é admirável. É importante que tenha a forma como contraponto dialético do conteúdo.”

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    título / autor
    interprete
    acompanhamento
    disco
    ano