<
>
/
 
0:00
10:00
autor  
interprete  
    minimize editar lista close

    Posts

    Verão para ouvir: beduínos, paqueras, tendências da moda e calores em 78 rpm

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Alalaô, ooô, ooô”, diz o refrão que estará entre os mais cantados nos bailes e blocos daqui a pouco mais de um mês, mas que desde já está valendo, afinal: “Mas que calor, ooô, ooô...” Refrão carnavalesco, sim, mas que poderia embalar também nosso Natal (como o “let it snow” acima do Equador), nosso ano-novo e o que mais se festejar por aqui no verão, nossa estação mais quente – e não só em termos climáticos. Afinal, tem paquera, romance, desenlace, tempestades e até tendências da moda na maneira como o verão foi cantado nos discos de 78 rotações.

    Ah, sim. E tem Alá (“Alá... Alá, meu bom Alá!”), que veio parar na boca dos hereges daqui primeiro com “Alá lá ô” (Haroldo Lobo e Nássara), a marchinha imbatível de 1941, e depois nas outras tantas marchinhas que também cantavam pro deus muçulmano em busca de sucesso: em “Tapete de Bagdad” (outra de Haroldo Lobo, mas sozinho), do ano seguinte, o folião pede à divindade que o ajude a voltar pro Iraque, pois aqui “o calor é de lascar”. Já “Alá Alá” (Pedro Caetano e Claudionor Cruz, 1946) atualiza as preces da marchinha de 1941: “Não tenho água, quero chope pra beber...”

    Há também quem reclame da canícula sonhando com outras terras. Como o sujeito da marchinha “Não aguento este calor” (José Silva, Bené Alexandre e Petrus Paulo), que sonha com a França ou o Japão, pois quer “brincar no gelo onde não tem verão”. E o outro, que prefere “Lá no Sudão” (Roberto Roberti e Paulo Barbosa), onde só se dança de calção, ao contrário do Brasil, onde, “para se dançar uma valsa, tem que se dançar de calça”. A solução é mais barata em “Que calor” (Raul Marques, Valdemar Silva e Romeu Gentil) e “Eu vim do Alasca” (Orlando Monelo e Osvaldo França), que resolvem o problema rimando calor com ventilador.

    Despir-se pode ser outro bom caminho. Seja quase totalmente, como a sapeca “Eva” (outra marchinha de Haroldo Lobo), que em 1952 queria “usar pouca roupa, mas é que a polícia daqui não é sopa”. Seja discretamente, como a pioneira “Moreninha da praia” (João de Barro), que deu o que falar andando “sem meias em plena avenida” lá em 1933. Seja parcialmente, como em 1960, quando o rock-calypso “Itsy bitsy teenie weenie yellow polkadot bikini” (Pockriss e Vance) apareceu por aqui, gravado em inglês por Ronnie Cord – nickname de Ronald Cordovil, mineiro de Manhuaçu que dali a três anos lançaria a versão em português da música, “Biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho” (com versos de seu pai, Hervé Cordovil), como já vimos por aqui em um post de 2021, sobre os 70 anos do biquíni.

    No entanto, independentemente do traje, o fato é que a estação é propícia a romances, como se ouviu nas canções aboleradas que chegaram ao disco na década de 1950. Como “Verão”, samba-canção de Renato Lima, Raul Moreno e Bené Alexandre lançado em 1957, com sua letra idílica rimando “o luar em serenata” com “noites claras cor de prata”. Também nos filmes de Hollywood vieram odes ao Summer, como “Verão em Veneza”, letrada por Ribeiro Filho em cima da música original de Alessandro Cicognini, do filme “Quando o coração floresce” (1955). Já “Amores clandestinos” (1959) trouxe na trilha a sensual “Sol de verão”, com letra de Nazareno de Brito sobre a composição de Mack Discant e Max Steiner.

    Outro exemplar do cancioneiro estadunidense, este dos anos 1960, é o foxtrote “Those lazy hazy crazy days of Summer” (Hans Carste e Charles Tobias), sucesso saltitante e açucarado de Nat King Cole que o jovem-guarda Fred Jorge transformou em “Os dias de verão”. Bem mais espirituoso e quente é o frevo “Modelos de verão”, composição do mestre Capiba que saiu em 1957 retratando um baile promissor: “Eu daqui não saio / Eu não vou embora / Tanta mulher bonita / E minha mãe sem nora!”

    O folião se deu bem caso tenha lembrado de cantadas em ritmo de marcha que saíram em carnavais anteriores. Em 1934, por exemplo, a parceria pelé-garrincha das marchinhas, Lamartine Babo e João de Barro, recorreu a um dito popular para compor “Uma andorinha não faz verão”, que teve sua história contada por aqui num post de 2020. Já Francisco Malfitano e Aloísio Silva Araújo apelaram a William Shakespeare para comporem “Sonho de uma noite de verão”, cantada melodiosa de 1940: “Tu és um sonho de uma noite de verão / Se me pedires uma estrela, por que não...?”

    Melodia boa é também a de “Verão do Havaí”, marchinha de Haroldo Lobo e Benedito Lacerda que saiu em 1943 comparando o sol de lá às morenas daqui. A nota curiosa é a salada geográfica que a letra – quem sabe embriagada pelo nonsense carnavalesco – propõe: no fim da primeira parte Angela Maria se arrisca num yodel (recurso vocal típico da região dos Alpes) para justificar como é “lindo o canto do Havaí”. Logo depois, um ukulele cai no colo da princesa Sheherazade na segunda parte, que começa com “as mil e uma noites do Havaí”. A resposta, na divertida marchinha nacionalista “Verão do Brasil” (Denis Brean e Lupicínio Rodrigues), saiu dois anos depois com um final impróprio pros dias de hoje: “Tem verão melhor que o Havaí / Pois nossas praias abafam no calor / E nossas mulheres oferecem mais amor...”

    Além do final infeliz, tem também dor-de-cotovelo na seleção de verão em 78 rpm. Seja em ritmo de telecoteco, como no bom samba “Amor de verão” (Edgardo Luiz e Geraldo Martins), gravado por José Messias em 1961. Em marcha, como no “Triste verão” criado por Assis Valente e cantado por Aurora Miranda, em 1935. Ou samba-canção, como o sofrido “Chuvas de verão”, com Francisco Alves dando voz à dor-de-cotovelo de Fernando Lobo em gravação de 1949: “Ressentimentos passam como o vento / São coisas de momento / São chuvas de verão...”

    A meteorologia parece mais desfavorável no samba “Tempestade de verão”, lançado no carnaval de 1959 por Germano Mathias – co-autor da composição, com José Dias, vulgo Príncipe Indu. Mas só parece, pois aqui a dor-de-cotovelo vem acompanhada de consolo: “Vem chorar no peito amigo / O que tu estás passando, meu amor / Também se passou comigo...” Outra história sem final feliz, mas nem por isso infeliz, é a de “Cabeleira de verão” (Peterpan e Ari Monteiro), anedota sobre o sujeito que se vale – sem sucesso – dos próprios dotes capilares para disputar uma pequena, como cantou Gilberto Milfont no carnaval de 1950.

    Mas não há de ser nada, pois no verão "the living is easy" (“viver é fácil”), como jura a letra de “Summertime”, canção nascida como número de abertura da ópera “Porgy and Bess”, que estreou em 1935 com música composta por George Gershwin e libreto de DuBose Heyward. Entre as dezenas de milhares de regravações deste standard (o mais regravado de todos os tempos, segundo o site Guinness World Records, com 67.591 ocorrências contadas até junho de 2017) estão as de Billie Holliday em 1936, Sam Cooke em 1957, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong em 1959 e Janis Joplin em 1968. Além, claro, de nossa Leny Eversong, que comparece com o registro que fez em 1951.

    É com ela que, já quase no outono de nossa playlist, sossegamos do carnaval e outras fervuras de verão, desejando a todas e todos um ano-novo de saúde, paz, amor e realizações.

    Foto: Pedro Paulo Malta 

    título / autor
    interprete
    acompanhamento
    disco
    ano