Parceiro de Noel e Lamartine nos anos 1930, quando o samba e a marchinha conquistaram definitivamente seu espaço no repertório popular; de Luiz Gonzaga nos anos 1950, trazendo para a música brasileira um baião com sotaque diferente; autor de rocks nos anos 1960, contribuindo para a popularização, em nossas terras, do gênero surgido na década anterior. São poucos os compositores com um currículo tão eclético. Mas nenhum se compara ao de Hervé Cordovil, mineiro de Viçosa que, nascido a 3 de fevereiro de 1914, estaria completando 110 anos. Como se não bastasse, foi excelente orquestrador e pianista e ainda atuou como cantor, criador de jingles e diretor artístico da gravadora Copacabana.
“Se esse camarada fosse parar nos Estados Unidos e lá tivesse uma oportunidade de mostrar quem é, seria um nome feito e um homem cheio de dólares. Verdadeiro acrobata no teclado, (...) capaz de sentir tão bem um samba de morro como um fox-trot dos mais arrevesados, uma valsa-canção ou um tango argentino”. Assim o jovem Hervé, aos 20 anos, foi definido pelo redator da coluna “Broadcasting em Revista” de O Malho, em 13/09/1934. O colunista garantia: “Não sabe uma nota de música. Em compensação, ouve uma opereta e repete todos os seus números no piano, de orelhada”.
Era assim desde menino: o filho do médico Cordovil Pinto Coelho e da musicista Maria de Lucca aos cinco anos “dedilhava ao piano as canções tocadas por sua mãe”, conta Maria do Carmo Tafuri Paniago em “Hervé Cordovil: um gênio da Música Popular Brasileira” (João Scortecci Editora, 1997). Passou boa parte da infância em Manhuaçu (MG) e, aos 10 anos, estava no Rio de Janeiro, preparando-se para os exames do Colégio Militar. Entre aulas e estudos, fez parte da banda da instituição, tocando instrumentos de sopro, além de formar um conjunto de jazz com os colegas. Terminou o curso aos 17 anos, idade em que estreou na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1931, como pianista da orquestra de Romeu Silva.
“Rapidamente, Hervé Cordovil veio a ser um dos quatro pianistas mais solicitados das rádios cariocas, ao lado de Romualdo Peixoto, o Nonô, Custódio Mesquita e Carolina Cardoso de Menezes, tornando-se em 1933 pianista da Rádio Philips”, diz Maria do Carmo. Hervé passaria por diversas emissoras de rádio do Rio, de Belo Horizonte e de São Paulo, além de atuar como pianista em cassinos. Ainda em 1933, aos 19, estreou em disco como autor de duas músicas: o samba “Como é que pode?” (feito com Jaime Tolomi) e a marcha “Mulata fuzileira”, ambas lançadas por Paulo Neto de Freitas, seu parceiro nesta segunda composição.
Foi no final de 1933 que conheceu o primeiro sucesso – dele e de um praticamente estreante cantor: “Na verdade, desde meados de 1933, a marcha ‘Carolina’ era cantada na Rádio Mayrink Veiga por Hervé e outros artistas que a usavam muitas vezes para suprir a falta de músicas nas programações”, explica Maria do Carmo. Segundo revelou o próprio Hervé no programa “MPB especial” da TV Cultura em 1973 – depoimento reproduzido no livro “A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes” (Sesc, 2000) –, “ninguém quis gravar ‘Carolina’”. Então Mr. Evans, diretor da RCA Victor, decidiu que o próprio Hervé iria fazê-lo: “Você canta no Mayrink, por que não pode cantar aqui?”, perguntou, com o inconfundível sotaque.
Durante uma gravação, Hervé chamou a atenção de Mr. Evans para um dos integrantes do coro: “Aquele moço canta bem, tem uma voz até meio parecida com a do Chico [Francisco Alves]. Quem sabe se ele gravar seria melhor?”. Então experimentaram o rapaz, de nome Carlos Galhardo, nem tão novato assim: já havia lançado cinco discos de 78 rotações naquele ano. Acabou se tornando o intérprete da marcha de Hervé e Bonfiglio de Oliveira, conquistando seu primeiro sucesso carnavalesco.
Da produção de Hervé desta época fazem parte marchas muito bem-humoradas, fosse compondo sozinho – “Inconstitucionalissimamente”, “Idem”, “Seu Gaspar” – ou em parceria com os gaiatos Lamartine Babo – “Menina oxigenê”, “Seu Abóbora”, “Moreninha sweepstake”, “Esquina da sorte” – e Noel Rosa – “O que é que você fazia?”, “Não resta a menor dúvida”. Colegas de trabalho no programa de rádio de Ademar Casé, Noel e Hervé ainda compuseram juntos “Fiquei rachando lenha” e “Triste cuíca” – letra do primeiro, em forma de soneto, musicada pelo segundo –, registrado em disco por Aracy de Almeida.
O samba seria o primeiro a trazer a figura da porta-bandeira Conceição e do tocador de cuíca Laurindo, que reapareceriam em outros clássicos da música popular – no caso do Laurindo, seriam seus homônimos, porque no samba de Hervé e Noel “Esconderam [mataram] o Laurindo / Mas não se sabe onde foi”. Hervé voltaria a “compor” com o parceiro em 1955, causando enorme polêmica no meio musical, assunto para mais adiante.
Compositor de muita personalidade, como se pode notar no “Samba” gravado por Carmen Miranda em 1935 – cuja orquestração parece aludir ao famoso “Charleston” de James Price Johnson – e no dolente “Uma voz de longe me chamou” (com Alberto Ribeiro), em belo arranjo vocal do Bando da Lua, Hervé Cordovil também se destacava como regente de orquestra. Assim ele apareceu no filme “Alô, alô, Carnaval”, rodado em 1935, chegando às telas no início de 1936. Dois dias antes da estreia (20 de janeiro), Carmen Miranda entrou em estúdio para gravar a marcha homônima “Alô, alô, Carnaval”, de Hervé e Lamartine, lançada em fevereiro.
Morando em São Paulo desde 1940, no dia 08/07/1941 Hervé se casou com Daicy Portugal. O casal se mudou para Manhuaçu e Hervé pôde fazer valer seu diploma de advogado – obtido na Faculdade de Direito de Niterói, onde se formara em 1936 –, além de dar aulas de matemática na Escola Normal. Lá nasceria seu filho (e também futuro artista) Ronald Cordovil (1943-1986). Em 1945, ele e a mulher voltaram a residir na capital paulista. E aí uma nova fase começou na sua carreira de compositor.
“Não gostava disso de jeito nenhum, mas fui obrigado a gostar”. A revelação sobre uma música de sua autoria que ele detestava foi feita no programa “MPB especial”, onde ele explicou por que razão mudara de ideia: “Já imaginou ‘Cabeça inchada’ gravada em turco, em chinês, em japonês, em alemão? É fora de série um negócio desse. (...) E me deu um dinheirão. Então comecei a gostar do ‘Cabeça inchada’. Mas não tocava esse disco na minha casa, não”. No Brasil, o baião – composto em cima de um tema cantado à exaustão por Miúdo, um barbeiro de Manhuaçu – chegou ao disco através de Sólon Sales em 1949; em 1951, ganhou registros da dupla Adelaide Chiozzo e Eliana Macedo, das orquestras de Oscar Aleman e Sylvio Mazzuca e também da rainha do gênero.
“Carmélia Alves (...) pra mim foi a expressão maior da música popular nossa nesse gênero e uma intérprete fina de qualquer outro gênero. (...) A Carmélia me deu muita sorte”, derreteu-se Hervé na TV Cultura em 1973. A Rainha do Baião, cujo centenário celebramos neste post, conheceu seu primeiro sucesso com a toada-baião “Me leva”, de Hervé e do também mineiro Rochinha, ao lado do partner Ivon Curi. Ela levaria ao disco, no início dos anos 1950 – em primeira mão ou em regravações –, diversas composições do amigo Hervé, como “O trem chegou”, “Sabiá na gaiola” (parceria com Mário Vieira), “Eh boi”, “Esta noite serenou” – lançada no mesmo mês da versão de Dalva de Oliveira –, “Sei lá”, “Baião vai, baião vem” e duas de Hervé com Manezinho Araújo: “Adeus adeus morena” e “A saudade é de matar”, que ela cantou ao lado do marido, Jimmy Lester, em 1951, e que o Rei do Baião recriaria no ano seguinte com novo título, “Adeus Pernambuco”.
Era quase inevitável que Luiz Gonzaga – estilizador do baião, ao lado de Humberto Teixeira – e Hervé Cordovil – que, “Amineirando o baião, tirou a sétima menor que é tão comum na música nordestina”, como apontou Francisco Nepomuceno de Oliveira, o Chico do conjunto Titulares do Ritmo, no livro de Maria do Carmo – acabassem juntando forças. Foi Carmélia quem apresentou um ao outro. A nova parceria estreou num disco de 78 rotações de 1951 com a toada “Moreninha, moreninha” e a polquinha “Tô sobrando”. Em 1952, os Quatro Ases e Um Coringa e o próprio Gonzaga ensinaram o Brasil a dançar o “Xaxado”, mais uma da dupla. Que legaria ainda à posteridade dois clássicos absolutos da MPB.
Luiz Gonzaga havia gravado em 1951 o seu “Baião na garoa” em versão instrumental, sem letra. Em 1952, ele mesmo cantaria em disco os versos de Hervé, seguido por Guio de Morais em 1953 – com novo título, “Baião da garoa” – e por Carmélia Alves em 1954 – que apresentou uma nova segunda parte, além da já conhecida. O outro clássico, uma toada de 1953, dispensa apresentações. Segundo Dominique Dreyfus em “Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga” (Editora 34, 1996), ele surgiu devido às constantes viagens que o Rei do Baião fazia: “Acabava uma excursão pelo Brasil, começava outra, Gonzaga não parava em casa. (...) Hervé Cordovil homenageou, então, o parceiro, com uma música que se tornaria o hino da vida de Gonzaga: ‘A vida do viajante’” – cujas primeiras notas da introdução remetem ao início de “Moreninha, moreninha”.
Minha vida é andar por este país
Pra ver se um dia descanso feliz
Guardando a recordação
Das terras onde passei
Andando pelos sertões
Dos amigos que lá deixei
Com a prima Mariza Pinto Coelho, Hervé compôs “Pé de manacá”, sobre um tema que ela costumava cantar para ninar o filho. O próprio Hervé e Isaurinha Garcia levaram o baião para o disco em 1950. O autor mineiro continuaria passeando por diversos gêneros musicais nessa década: em 1951, Aracy de Almeida gravou o samba “Tem pena de mim”, que viraria um baião na versão de Sólon Sales. No mesmo ano, Dick Farney saboreou o sucesso de “Uma loura”. Em 1952 veio mais um samba, “Se você me deixar”, feito a quatro mãos com Polera (Paulo de Carvalho, irmão de Joubert de Carvalho), que ganhou a voz de Alfredo Simoney.
Vencedor do Prêmio Roquette-Pinto como melhor orquestrador de 1955, Hervé compôs em 1956, com letra do jornalista Thalma de Oliveira, o “Hino à Record”, primeiro lugar no concurso promovido pela emissora para escolher o hino do seu jubileu de prata. Na PRB-9, trabalhando no programa “Bangalôs e malocas”– o futuro “História das malocas” –, conviveu – e compôs – com Osvaldo Moles e Adoniran Barbosa. Da parceria com o primeiro, nasceu a marcha-rancho sui generis “Os Mimoso Colibris”, que Zé Conversa (Adoniran) gravou. Já da dupla com o Poeta do Bixiga surgiram uma bela marcha, “Pode ir em paz”, interpretada por Leny Eversong em 1951, o samba “Aguenta a mão, João” (1971) e mais um clássico da MPB, “Prova de carinho”, que o Trio Marayá teve a primazia de lançar em 1960. E, para quem acha que na obra de Hervé “Não tem choro”, ele mesmo gravou em 1959, com sua orquestra, uma composição autoral neste gênero.
Noel Rosa havia falecido em maio de 1937. Por volta de 1950, Hervé Cordovil – segundo contou à Revista do Disco de outubro de 1956 – se fizera espírita: “Desenvolvi minhas faculdades mediúnicas e, colocando-me à disposição dos espíritos, passei a frequentar e trabalhar em organizações espíritas”. De acordo com seu relato, em novembro de 1955, estando numa dessas instituições, no Rio de Janeiro, presenciara “a transmissão de uma mensagem de Noel através do Dr. Américo Luz, médium operante no local. O meu velho parceiro, entre palavras evoluídas, fez referência à minha presença, o que me deixou bastante impressionado”. Disse que, a partir daí, Noel passou a fazer contato com ele frequentemente.
Na noite do dia 24 de novembro, num apartamento no Flamengo, sentiu-se “automatizado”, pegou o lápis e começou a escrever, psicografando versos e uma mensagem de Noel para ele. A revista “Porvir”, da Livraria Allan Kardec, publicou os textos; “o fato ganhou uma repercussão que eu não esperava”, declarou. A polêmica aumentou quando os versos foram musicados pela jovem Maria Therezinha Costa Leite de Oliveira, vencedora de um concurso, e gravados por Araci Costa em janeiro de 1957. O samba recebeu o título de “Outra Vila” – “Minha ‘Vila’ agora é outra / Muito longe de Isabel / Meu papel agora é d’outra qualidade de papel / (...) Faça, Senhor, lá da Vila / A ‘Vila Isabel do espaço’” – e deu o que falar.
Ary Barroso – então presidente da Sbacem, sociedade arrecadadora –, em O Cruzeiro de 23/08/1958, fez graça com a questão dos direitos autorais que dona Lindaura, viúva de Noel, estava interessada em receber: “Acontece que D. Lindaura foi esposa do Noel homem. Noel espírito não é casado nem tem herdeiros”. Os compositores discutiram publicamente sobre a autenticidade da letra. O assunto nem sempre foi tratado com a seriedade devida. E deu uma publicidade – e uma dor de cabeça – indesejáveis ao pivô da história.
“Uns levaram Hervé Cordovil a sério, outros o acusaram de aproveitador. Homem bom, extremamente generoso, que até o fim da vida estaria à frente de formidável obra de caridade nos centros espíritas de São Paulo, Hervé sofreu muito com isso”, afirmam João Máximo e Carlos Didier em “Noel Rosa: uma biografia” (Linha Gráfica Editora, 1990). A mesma letra de Noel, agora com melodia de Hervé e novo título, “Vila Isabel do espaço”, seria levada ao disco em 1964 por Vera Lúcia.
Hervé cercado pelos filhos: da esquerda para a direita, Hervé Júnior, Ronnie Cord, Norman e, no colo, Maria Regina.
Folha da Tarde, 17-07-1979
“Hervé Cordovil, mineirão dos bons, acaba de encaminhar o filho ao rock. Será que o Hervé esqueceu dos batuques quentes do samba?”, perguntava a maliciosa Comadre Eudóxia na Radiolândia de 30/04/1960. Foi neste ano que Ronald Cordovil, ou melhor, Ronnie Cord, começou, aos 17 anos, a trilhar o caminho da fama, principalmente depois de gravar o sucesso “Itsy bitsy teenie weenie yellow polkadot bikini”, de Paul Vance e Lee Pockriss. O hit estadunidense receberia duas letras em português antes de ganhar a definitiva, que viria apenas em 1964 – e pelas mãos do próprio pai do ídolo da juventude: “Biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho”, com versos de Hervé Cordovil, que o filho Ronnie gravou em 1964 num long-playing cujo título, “Rua Augusta” remetia a outro grande sucesso seu – e de Hervé.
“Entrei na ‘Rua Augusta’ a 120 por hora / Botei a turma toda do passeio pra fora / Fiz curva em duas rodas sem usar a buzina / Parei a quatro dedos da vitrina (legal!) / Hi, hi, Johnny, hi, hi, Alfredo / Quem é da nossa gangue não tem medo”. “(...) foi com ‘Rua Augusta’, de Hervé, que Ronnie lançaria o primeiro grande rock brasileiro, arquétipo total pré-Jovem Guarda”, afirma Marcelo Dolabela no “ABZ do rock brasileiro” (Estrela do Sul, 1987). Do pai, Ronnie também gravaria os rocks “Boliche legal”, sobre a diversão do momento entre os jovens paulistanos, e “Eu vou à praia”, além das marchas “Um brinde à Lua” e “Mulher e meia” (parceria com Manoel Vitório). Com sua orquestra, o maestro Hervé Cordovil iria acompanhar o filho em alguns de seus discos de 78 rpm nos anos 1960.
Seguindo a veia artística da família – Hervé teve como parceiros musicais seu irmão René e sua mulher, Daicy –, os filhos Ronnie, Hervé Cordovil Júnior (o Junéco) e Norman formariam, na mesma década, o trio The Cords/Os Cords, que chegaria a lançar alguns compactos. E a caçula Maria Regina debutaria como cantora aos quatro anos (mais precoce do que Brenda Lee!), gravando 4 discos de 78 rotações entre 1961 e 1962. Neste ano, lançaria o LP “A menor cantora do mundo”, e em 1964 o álbum “Canções da minha escola”.
Hervé produziu pouco como compositor nos anos 1970, mais voltado para a maçonaria, da qual era grão-mestre. Em 1979, Luiz Gonzaga e Gonzaguinha juntaram seus talentos e suas vozes para interpretar “A vida do viajante”, faixa que constou dos LPs “Eu e meu pai” (de Gonzagão) e “Gonzaguinha da vida”. Neste mesmo ano, na madrugada de 16 de julho, Hervé Cordovil fazia sua última viagem, aos 65 anos, em São Paulo, vítima de uma parada cardíaca. Três anos depois, deve ter ficado orgulhoso, lá no outro plano da existência, ao receber uma prova de carinho da Turma do Balão Mágico e da Patotinha, que colocaram a criançada para cantar duas composições suas, a antiga “PR Você” (de 1937, parceria com o radialista Cristóvão de Alencar) e a paulistíssima “Rua Augusta”.
Foto principal: Hervé Cordovil na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS