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    Saxofone em 78 rpm: do sertão ao rádio, das bandinhas à gafieira, uma breve história do instrumento na música brasileira

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Há exatos 130 anos falecia em Paris (07-02-1894) um personagem e tanto da história da música: Adolphe Sax, o belga que não à toa virou nome de instrumento musical. Ou melhor: de toda uma família de instrumentos inventada por ele: os saxofones soprano, alto, tenor, barítono, baixo... entre muitas outras modalidades que correram o mundo todo. Tinha 79 anos (era nascido em 06-11-1814, em Dinant, a 100km de Bruxelas) e morreu absolutamente pobre – como tantos outros inventores.

    Entre seus herdeiros estão alguns dos músicos mais aplaudidos do mundo, como Charlie Parker, John Coltrane, Stan Getz, Cannonball Adderley, Wayne Shorter e muitos outros, só para ficar em alguns craques estadunidenses do jazz. Aqui no Brasil, os inventos de Monsieur Sax também fizeram história, de cidadezinhas do interior do país a salões de baile, programas de rádio e algumas gravações memoráveis.

    Adolphe Sax (1814-1894) e a Exposição Universal de Londres (1862) em ilustrações reproduzidas do catálogo da exposição"Sax 200" , promovida pelo Museu dos Instrumentos Musicais de Bruxelas (2014-2015)

    Em algumas fontes de referência consta o nome de José Freire, “que tocava valsas em tom menor”, como o introdutor do saxofone no Brasil, em 1885. Mais segura é a hipótese – propositalmente mais vaga – de os primeiros instrumentos terem chegado por aqui na bagagem de músicos portugueses e franceses que vieram para o Brasil nas duas décadas finais do século 19, como informam outras referências. Veio parar nos salões de concerto, nas óperas, nos saraus e também nas bandas de música, essas provavelmente o principal veículo de popularização do instrumento entre os músicos brasileiros e, consequentemente, a música daqui.

    E não é por outra razão que o carioca Anacleto de Medeiros (1866-1907), maestro conhecido na história da nossa música como “o semeador de bandas”, tinha o saxofone entre os instrumentos que tocava – era também flautista, clarinetista, contrabaixista e regente. E que sua polca “Está se coando” – o homem era compositor de mão cheia – está entre os primeiros registros fonográficos no país em que o saxofone está creditado em um selo de disco: no caso, o 78 rotações de nº 120601, lançado pela Odeon em 1913 com esta gravação do Grupo Vieira Lima – quarteto paulistano formado por flauta, cavaquinho, violão e saxofone.

    O saxofone pode ser ouvido também nas gravações do Grupo Sulferino: entre as primeiras do conjunto, lançadas pela Phoenix neste mesmo 1913, está a schottisch  “Carinhos santos”, composição de outro personagem importante desta história, o carioca Romeu Silva (1893-1958). Saxofonista do rancho carnavalesco Ameno Resedá no desfile de 1911, ele criou em meados da década de 1920 o Jazz Band Sul-Americano, conjunto com o qual tocou no Cassino Atlântico e excursionou por cidades da Europa e dos Estados Unidos. Entre as gravações que fizeram está a de “Fubá”, tema popular arranjado por Romeu Silva no qual o sax se faz presente, como se pode ouvir neste registro de 1925.

    Outro saxofonista compatriota que andou pelo exterior foi o mineiro Ladário Teixeira (1895-1964), nome pouco lembrado na historiografia da música brasileira, apesar de seus feitos na Europa. Consta que em Barcelona teve as mãos beijadas pelo filho de Adolphe Sax. E que em Paris inspirou um tipo de saxofone – o Modelo Ladário – produzido pela famosa fábrica Selmer. Também foi professor de braille (era cego de nascença) e deixou quatro discos de 78 rotações feitos na Parlophon – num deles, de 1928, está o irreverente “Soluços do jegue”, foxtrote de sua própria autoria.

    Dois anos depois, foi a vez do instrumento ganhar um de seus hinos na música brasileira, o choro sinuoso “Saxofone, por que choras?”. Seu compositor é o paraibano Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho (1896-1972), mais conhecido do grande público como parceiro de Jararaca (apelido de José Luís Calazans) na dupla caipira que fez história no rádio, no teatro e nos discos. Pois Ratinho foi também um dos grandes saxofonistas de sua época, como o grande público pôde constatar a partir de 1930, quando ele começou a gravar suas composições (como a supracitada), provando-se um grande chorão. Já em 1949 lançou “Fala, saxofone”, também de sua autoria e gravada na Odeon.

    Nossa seleção tem outras homenagens ao instrumento. Como duas músicas gravadas por Luiz Americano (1900-1960): o choro “Saxofone etc.” (do maestro paulista Vicente Paiva) e o foxtrote “Saxofone” (do virtuose estadunidense Rudy Wiedoeft), este o único número musical de nossa seleção solado no clarinete – outro instrumento deste que é um dos protagonistas da história brasileira do sax.  

    Sergipano de nascimento, ele aprendeu música com o pai, iniciou-se numa banda e depois aperfeiçoou os dotes artisticos no Exército (roteiro comum à maioria dos personagens deste texto), ingressando depois nas orquestras de cassinos, gravadoras e emissoras de rádio. Como compositor deixou belos choros para saxofone como “Eu te quero bem”, que ele mesmo lançou, em 1932, à frente de seu trio.

    Luiz Americano / Foto da Coleção José Ramos / IMS

    Luiz Americano era também um dos músicos mais queridos dos principais arranjadores de seu tempo, Pixinguinha e Radamés Gnattali, sendo que com este último – e mais o baterista Luciano Perrone – formou o Trio Carioca. Radamés, aliás, era um que escrevia com frequência para saxofone: foi inclusive um quarteto de saxes que fez a primeira gravação de um de seus choros mais conhecidos, “Remexendo”, lançado num 78 rotações de 1943 com os nomes dos quatro insctrumentistas no selo: Sandoval, Coruja, Quincas e Zacarias.

    Desta escalação – que mais parece uma daquelas linhas do ataque de futebol antigo – um dos craques é Sandoval Dias (1906-1993), que trocou sua Salvador natal pelo Rio de Janeiro em 1921, tornando-se mestre de banda e músico de orquestra de salão e do rádio. Compositor de choros como “Saxofone tinhoso” (em parceria com José Miranda Pinto, o Coruja), na década de 1950 formou um grupo, Sandoval e Seu Conjunto, com o qual lançou uma série de LPs.

    Nordestino como o baiano Sandoval, o sergipano Luiz Americano e o paraibano Ratinho, o maestro Fon-Fon (1908-1951) era natural de Santa Luzia do Norte (AL), onde se iniciou tocando pífano. Só quando se muda para o Rio de Janeiro, em 1927, ingressando na banda do 2º Regimento de Infantaria, começa a tocar saxofone e logo ganha seu apelido (chamava-se Otaviano Romero Monteiro), depois que o colega de banda Dedé percebe que não tirava os agudos com nitidez. Na década de 1930 passa a tocar em orquestras, até que cria a sua própria – com ela lançou seu maior sucesso, o choro “Murmurando”, lançado pela Odeon em 1946.

    Quem tocou na orquestra de Fon-Fon foi outro mestre do sax, K-Ximbinho (1917-1980), nascido Sebastião de Barros, na cidade de Taipu (RN), onde aprendeu clarinete, na infância – o saxofone, que lhe rendeu o apelido, passou a tocar quando entrou para a banda do Exército. Já no Rio de Janeiro, estabeleceu-se como músico de orquestras diversas: além das de salão (como a de Fon-Fon e a de Napoleão Tavares), de emissoras de rádio (Nacional e Mec) e TV (Globo) e também a Sinfônica Nacional. O choro “Tudo passa”, lançado pelo próprio K-Ximbinho em 1953, é um bom exemplo do compositor criativo que também era.

    Sua vinda para o Rio de Janeiro se deu em 1945, num episódio liga sua história à de Severino Araújo (1917-2012), o maestro, saxofonista e clarinetista pernambucano – de Limoeiro – que já vivia na então capital do Brasil desde 1944, contratado pela Rádio Tupi. No ano seguinte, pediu à emissora que trouxesse para o Rio a orquestra que dirigia desde o fim da década de 1930, em João Pessoa: a Tabajara, que logo se firmaria como principal big band brasileira, graças a gravações como a primeira do choro “Espinha de bacalhau”, composição referencial de seu maestro, Severino Araújo,

    Pois foi nesta leva que K-Ximbinho veio para o Rio, assim como vieram irmãos músicos de Severino, entre eles os também saxofonistas Jaime Araújo, que nesta seleção interpreta o samba-canção-fox “Saxomaníaco” (de Severino Araújo) e José Araújo, vulgo Zé Bodega, que interpreta o choro “Bate-papo” com o maestro e pianista Radamés Gnattali, autor da composição.

    A título de curiosidade, após a vinda de Severino Araújo e seus músicos para o Rio de Janeiro, a direção musical e a regência da Orquestra Tabajara que permaneceu (refeita) em João Pessoa foi entregue a outro nome referencial da nossa música: Moacir Santos (1926-2006), grande saxofonista e arranjador natural de Flores do Pajeú (PE). Quando mudou-se para o Rio de Janeiro (1948), foi contratado pela Rádio Nacional, onde fez valer o talento de arranjador que, a partir de 1967, pôde colocar em prática nos estúdios de Los Angeles (EUA), onde viveu até o fim da vida. Aqui nesta seleção, é o choro “Não há dúvida” que o representa como compositor, interpretado no sax tenor de Quincas (outro do quarteto de futebol antigo) e no clarinete de Kunst.

    Já Félix Lins de Albuquerque, o Felinho (1895-1980), permaneceu em seu Pernambuco natal (era natural de Bonito), onde trabalhou como saxofonista da Rádio Clube e primeiro flautista da Orquestra Sinfônica do Recife. Compositor inspirado, era o autor de “Formigão”, choro que lançou em 1956, quando atingiu o auge de sua popularidade, com a série de variações que criou no saxofone para o frevo dos frevos “Vassourinhas”.

    Outro marco fundamental da história brasileira do saxofone é o encontro de Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha (1897-1973), com Benedito Lacerda: isso em meados da década de 1940, quando o primeiro, flautista de origem e grande arranjador, uniu-se ao segundo, que também tocava flauta. Pixinguinha, no entanto, migrou para o saxofone, no qual criou belos contrapontos, ampliando as possibilidades do instrumento, como constataram os ouvintes da Rádio Tupi e das 34 gravações feitas pelo duo na Victor. Entre elas estão os registros originais de choros como o futebolístico “Um a zero” (1946) e o pictórico “O gato e o canário” (1949), ambas composições de Pixinguinha co-assinadas por Benedito.

    Benedito Lacerda (com sua flauta) e Pixinguinha (com o sax tenor) em foto promocional da gravadora Victor. Foto do Acervo Pixinguinha / IMS

    O famoso dueto também gravou choros de outros compositores, como “André de sapato novo”, aqui gravada pela primeira vez, em 1948. Seu autor é o saxofonista André Victor Correia (1888-1948), fluminense da cidade de Rio Bonito que trabalhava na Imprensa Nacional e foi diretor de harmonia do rancho Ameno Resedá. Entre as poucas informações sabidas a seu respeito está também o fato de ter se iniciado na música pelo clarinete, que acabou trocando pelo saxofone, como escreveu Alexandre Gonçalves Pinto (vulgo Animal) no livro fundamental “Choro: reminiscências dos chorões antigos”, de 1936. “O saxofone é, hoje em dia, o instrumento da moda, figura obrigada (sic) nos foxes americanos”, sublinha o autor do livro.

    Outro que se alternou entre o clarinete e o saxofone – aliás, como tantos desta seleção – foi Abel Ferreira (1915-1980), músico autodidata que tinha 17 anos quando trocou sua cidade natal – a mineira Coromandel – por Belo Horizonte, sendo contratado pela Rádio Guarani. No Rio, ganhou cancha como músico das orquestras de Vicente Paiva e Bené Nunes e, a partir da década de 1950, realizou turnês pelo exterior com outros instrumentistas brasileiros. É compositor de alguns clássicos do choro, como “Doce melodia”, que ele mesmo lançou em disco, em 1950, tocando saxofone e clarinete.

    Também mineiro – mas de Conselheiro Lafaiete – era Moacir Silva (1918-2002), filho de um mestre de banda que soprou as primeiras notas no flautim e, depois de passar pelas orquestras de Fon-Fon e Zacarias (outro do quarteto fantástico que lançou “Remexendo”), começou a gravar como solista em 1953, dividindo-se entre os repertórios nacional e o estrangeiro – a partir do fim da década de 1950 fez 16 LPs com o pseudônimo Bob Fleming. Mas foi como Moacir Silva mesmo que, em 1958, lançou o choro “Sugestivo”, composição de sua autoria que trazemos para esta seleção.

    Já da cidade de Itapira, no interior de São Paulo, vem o nome com o qual encerramos nossa pequena antologia do saxofone brasileiro em 78 rotações: Orlando Silva de Oliveira Costa, o maestro Cipó (1922-1992), que aqui interpreta o choro de gafieira “Contaminado”, de sua autoria, juntamente com sua própria orquestra. Mais um instrumentista formado em banda de música, integrou um dos conjuntos do Hotel Copacabana Palace e, depois, tornou-se arranjador e regente das orquestras da TV Globo e do SBT, como já contamos neste post.

    “Ele era elegante não só no jeito de ser, como na música que fazia”, afirma um de seus maiores fãs, o compositor João Roberto Kelly, numa frase que também define, de certa forma, a trajetória brasileira do invento de Adolphe Sax.

    * Com a colaboração do saxofonista, pesquisador e professor Vinicius Macedo.

    Foto principal do post: Pixabay (pixabay.com)

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