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    Memórias musicais de Chico Buarque na chegada aos 80: que tal uma playlist em 78 rpm?

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Chico Buarque não teve músicas lançadas em 78 rpm – sua primeira composição gravada, “Marcha para um dia de sol”, saiu num compacto simples da paulistana Maricenne Costa que chegou às lojas em fins de 1964, com selo da Philips. Mas nem por isso os antigos discos que são tema do nosso site – e vigoraram no Brasil de 1902 a 1964 – deixaram de passar pela história do grande e querido cantor e compositor. Certo, Chico?

    “Não me lembro de muita coisa”, confessou o artista, num e-mail às vésperas de chegar aos 80 anos, neste 19 de junho de 2024. “Mas eu me lembro muito bem do primeiro 78 que comprei, com dinheiro arrancado da Miúcha. Era ‘Chega de saudade’, com o João Gilberto. O curioso é que, talvez pela primeira vez, um 78 foi lançado ao mesmo tempo que um compacto simples, 33 rpm.”

    A lembrança de Chico Buarque remete ao marco inicial não só da bossa nova – o famoso disco de João com a primeira gravação do samba de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em julho de 1958 – como do estreitamento de sua própria relação com a música. Assim como aconteceria com outros futuros compositores, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e outros contemporâneos seus, a música deixaria de ser só um encantamento, para se tornar também uma possibilidade.

    Aos 14 anos, Chico ainda estava a sete de gravar seu primeiro disco (um compacto da RGE com “Pedro Pedreiro” e “Sonho de um carnaval”, em 1965), mas a concisão do canto e do violão de João parecia — já então — organizar as informações musicais que o futuro artista guardava desde menino. Até porque música não faltava no ambiente familiar dos Buarque de Hollanda, fosse na casa da Rua Haddock Lobo, da Henrique Shaumann ou da Buri, endereços paulistanos em que Chico viveu de 1946 a 66, com um intervalo entre 1953-54, quando a família morou em Roma, na Itália.

    Em São Paulo, Chico era o Carioca – apelido que tratava de honrar mantendo o sotaque e o bronzeado nas visitas constantes à cidade natal, nas férias escolares. Mas, embora se dissesse carioca de Copacabana (onde a família se hospedava quando vinha ao Rio de Janeiro), o local de nascimento foi o Catete, na Maternidade São Sebastião. Nascido em 19 de junho de 1944, às 11h35, foi o quarto dos sete filhos de Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda, historiador, professor universitário e autor de “Raízes do Brasil” (1936), entre outros livros.

    Família de classe média e, como vínhamos dizendo, musical: quando não estava enfurnado em sua biblioteca (de onde acompanhava o movimento da casa), Sérgio às vezes atacava de cantor nos momentos de descontração: como numa gravação caseira em que, rodeado pela família, se arrisca em inglês num charleston de sucesso da década de 1920, gravado no Brasil com o nome de “Sim senhor, é minha pequena”. “Ele se vangloriava de, na época, ter sido um exímio dançarino de charleston”, contou Chico no programa Ensaio, da TV Cultura (09/12/1994).

    Também tocava piano, assim como Maria Amélia, e eram visitados com frequência por amigos artistas, a começar por Vinicius de Moraes, poeta, compositor e herói dos filhos do casal. “Eu ficava siderado quando ele aparecia. Era a visita de um deus que ia lá em casa tocar violão”, relembrou Chico ao jornalista Roberto D’Ávila, no programa Persona (TV Manchete, 1986). A já citada Miúcha, irmã de Chico, recordou as noites musicais à jornalista Regina Zappa, no perfil biográfico “Chico Buarque para todos” (Ed. Relume Dumará, 1999): “A gente não podia atrapalhar, mas podia ir dormir mais tarde”, recordou a cantora, primogênita da prole, seguida por Sergito, Álvaro, Chico, Piii (Maria do Carmo), Baía (Ana Maria, depois Ana de Hollanda) e a caçula Maria Christina (em artes Cristina Buarque).

    Família reunida na casa da Rua Buri, em 1974: sentados, Álvaro, Chico, Sergito, Sérgio Buarque de Hollanda, Piii, Maria Amélia e Miúcha; em pé, Cristina (com Bebel Gilberto no colo), Ana de Hollanda e tia Cecília (irmã de Sérgio). / Reprodução do livro "Chico Buarque: o tempo e o artista" (Biblioteca Nacional, 2004)

    Atentos, ouviam o poeta relembrar composições antigas, como o fox “Loura ou morena” (dele com Haroldo Tapajós), lá de 1932, ou lançamentos recentes, como o samba-canção “Quando tu passas por mim” (com Antonio Maria), de 1953. Já no começo dos anos 1960, Vinicius chegou com novidades como o “Samba em prelúdio”, dele com Baden Powell, que também passou a visitar os Buarque, levado pelo poeta. “Eu ouvia em primeira mão e ficava babando”, conta Chico no livro de Regina Zappa.

    Quando não tinha artista por perto, era Miúcha quem comandava a cantoria: de violão em punho, distribuía vozes pelos irmãos e o coro se formava, fosse para cantar sucessos estrangeiros, como dos Everly Brothers e do conjunto The Platters, ou nacionais, como o frevo “Evocação” (Nelson Ferreira), a praieira “O mar” (Dorival Caymmi) ou os sambas “Volta por cima” (Paulo Vanzolini, outro amigo da família) e “Leva meu samba”, de Ataulfo Alves.

    Este último sambista seria uma de suas influências mais diretas como compositor. Fosse na adolescência pós-bossa nova, quando fez as primeiras brincadeiras musicais com o amigo Olivier Joles, criando sambas “meio Ataulfo Alves, coisa assim”, como deixou registrado no depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (11-11-1966). Ou já como compositor de seus primeiros sucessos, como contou a Geraldo Leite, da Rádio Eldorado (27-09-1989): “Tenho músicas feitas a la Ataulfo, pelo menos uma claramente, que é ‘Quem te viu, quem te vê'.”

    E, claro, Noel Rosa – nome citado em tudo quanto era texto sobre Chico publicado nos jornais e revistas após o estouro nacional de “A banda”, marcha de sua autoria que saiu vitoriosa do I Festival de Música Popular Brasileira (TV Record, 1966), empatada com “Disparada” (Geraldo Vandré e Théo de Barros), transformando Chico em mania nacional – ou, para alguns, no “novo Noel”.

    Sérgio Buarque de Hollanda veio em socorro do filho: “Não acredito que Noel exerça influência sobre Chico. A maior semelhança entre os dois é a temática: urbana”, aliviou o historiador, num texto de 1968 que a Folha de S. Paulo publicou dali a mais de 20 anos (19-10-1991). “Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel.” Ou tentou aliviar, pois o próprio Chico já reconhecera – no depoimento ao MIS – a raiz noelesca de sua música, “porque meus pais gostam muito de Noel. ‘São Paulo dá café, Minas dá leite...’, lembro que cantava esse negócio aí. Não entendia bem o que era, mas eu lembro disso”.

    Na entrevista que deu ao Pasquim (02-04-1970), foi ainda mais explícito: “As músicas que fiz primeiro tinham muita coisa de Noel”, ratificou o autor de “Juca”, “Nicanor”, “Meu refrão” e “A Rita”, esta última com o nome do Poeta da Vila citado num dos versos. Mais adiante, o intérprete Chico Buarque gravará sambas de Noel, como “Filosofia” (com André Filho), em 1973, e “Cem-mil réis” (com Vadico), em 1991, terçando vozes com sua filha caçula, Luísa. Já em 1994, na entrevista musicada que deu a Fernando Faro, no programa Ensaio (TV Cultura), relembrou que “Três apitos” era um dos números musicais de Miúcha nos saraus caseiros.

    Já a maneira como aprendiam o repertório a ser cantado variava. Podiam estar nas ondas do rádio, “amontoados, ouvidos colados na modernosa Telefunken Hi Fi, que tia Cecília mandou de presente”, como Miúcha descreve em depoimento a Regina Zappa transcrito no livro “Chico Buarque: o tempo e o artista” (Biblioteca Nacional, 2004). Ou podiam valer-se do garimpo de Sergito, que “era um rato de sebo e invariavelmente chegava em casa com preciosidades”, como revelou outra irmã, a também cantora Ana de Hollanda (além de ex-ministra da Cultura), num belo texto publicado na Revista Piauí (edição 211, de abril de 2024). Assim conheceram, por exemplo, sambas eternos de Ismael Silva, como o romântico “Arrependido” e o hoje proibidão “Amor de malandro”, este um dos preferidos de Maria Amélia.

    Ismael Silva e Chico Buarque / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    “Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel”, equiparou Chico na entrevista à Rádio Eldorado (1989), relembrando com orgulho a amizade que teve, na década de 1970, com o camisa 10 dos bambas do Estácio. “Eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e esquecido”, salientou. “Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim.”

    O time dos sonhos do telecoteco se completa com outras referências que Chico foi colhendo pelo caminho: como Geraldo Pereira, autor do sincopado “Sem compromisso”, que gravou três vezes (1973, 1990 e 2007), e Wilson Batista, de quem regravou “Preconceito” (com Marino Pinto), num dueto histórico com o ex-craque Pelé para o documentário “O futebol”, parte da série de DVDs “Chico” (EMI, 2006).

    A proximidade com as obras de Geraldo Pereira e Wilson Batista tinha a ver não só com seu querido João Gilberto, que conheceu e regravou – à moda enxuta da bossa nova – sambas de ambos os compositores. Passava também, de certa forma, pelo cantor Ciro Monteiro, lançador de inúmeros sucessos dos dois sambistas na chamada era de ouro e amigo de Chico. Uma amizade permeada por “motivos extramusicais”, como contou o compositor à Rádio Eldorado. “A gente ia junto pro Maracanã: ele era flamenguista, eu tricolor. Motivos gastronômicos também, porque tinha um feijão que a mulher dele fazia, a Lu, que era uma maravilha.”

    A boa relação rendeu ainda um ótimo samba, “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou receita pra virar casaca de neném”, composto por Chico em resposta a uma ousadia do cantor, que levara uma camisa do Flamengo para sua afilhada de batismo, a recém-nascida Sílvia, primogênita de Chico e da atriz Marieta Severo. Investida bem-sucedida no fim das contas (Sílvia é flamenguista), apesar do contra-feitiço proposto na letra do compositor tricolor, transformando a camisa do Fla na do Flu – com as “três cores que traduzem tradição”, como aliterou Lamartine Babo na “Marcha do Fluminense” (sobre melodia de Lírio Panicali).

    Outro rádio que vivia ligado na casa da família era o de Benedita Motta, a Babá, em cujo quarto Chico e as irmãs ampliavam o repertório, ouvindo e aprendendo sucessos de Nelson Gonçalves, Lucho Gatica e Frank Sinatra, além de marchinhas e sambas a granel. “A gente apostava pra ver quem sabia mais músicas de carnaval”, relembrou Miúcha a Regina Zappa. Entre as lembranças de Chico nesta seção estão Jackson do Pandeiro (de quem regravou o samba “Lágrimas”) e Blecaute, com “todas aquelas marias”, como disse no programa Ensaio, em referência às marchinhas de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti  – parceria que foi tema de um post recente por aqui – que o cantor lançou nos anos 1950: “Maria Candelária”, “Maria Escandalosa” e “Maria Champanhota”.

    O entusiasmo do menino Chico era tanto (“Eu queria ser cantor de rádio”, revelou a Fernando Faro) que às vezes dava em tietagem, como numa vez com Linda Batista, a cantora de “Me deixe em paz”, que era uma de suas preferidas, como Regina Zappa contou no perfil biográfico sobre o artista: “Uma vez, era bem garoto, estava com a mãe nas Lojas Americanas da Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio, quando se depararam com a cantora, que era então ‘uma deusa’. Chico ganhou um beijo de Linda que nunca mais esqueceu.”

    Também através da música ganhou uma escola de samba do coração. “Sinto uma vibração pela Mangueira que vem desde criança e chegou através das músicas que falam da escola, aquelas pessoas, aquele lugar”, explicou Chico, num dos textos da agenda comemorativa “Chico Buarque: anotações com arte” (Fred Rossi, 2005), em referência a sambas como “Exaltação à Mangueira”, que ouvia desde menino e interpretou duas vezes (1991 e 1997) em sua discografia. “É uma coisa mitológica para mim.”

    Inspiradora de sambas de sua autoria como “Estação derradeira”, “Piano na Mangueira” (com Tom Jobim) e “Chão de esmeraldas” (com Hermínio Bello de Carvalho), a Verde-e-Rosa o escolheu como enredo – “Chico Buarque de Mangueira” – no carnaval de 1998, quando comemorava 70 de fundação e sagrou-se campeã, dividindo o primeiro lugar com a Beija-Flor. Em seu coração mangueirense, têm lugar especial os compositores da escola, com destaque para dois que, em sua definição (ao programa Vox Populi, da TV Cultura, 1979), são “uma coisa mágica”: Nelson Cavaquinho (de quem regravou “Dona Carola”, em 1986) e Cartola (autor de “Divina dama”, interpretado por Chico em 1997).

    Outros baluartes que Chico também conheceu foram Donga e o inconteste Pixinguinha, que o receberam no Teatro Paramount, em São Paulo, numa noite de 1967, quando o programa de Hebe Camargo na TV Record comemorava 50 anos do lançamento de “Pelo telefone”, como se vê num trecho em p/b do documentário “Roda viva”, lançado na série de DVDs “Chico” (EMI, 2006). O jovem artista, recém estourado com “A banda”, entra no palco todo sorridente para dividir a interpretação do célebre “primeiro samba”, tema do programa, com seu autor. Só faltou cantar a letra certa: “Eu tinha aprendido essa música com meu pai. Só que meu pai sempre cantava as músicas errado”, diverte-se Chico, que derrapou logo no verso inicial: “‘Pelo telefone o chefe da polícia...’ O Donga me olhava feio. Não era assim. Era: ‘O chefe da polícia pelo telefone...’ Culpa do meu pai.”

    Além do respeito aos mais velhos e à tradição, Chico seguia atento ao samba de contemporâneos como Jorge Ben (hoje Benjor), cujo violão percussivo, de cordas arpejadas, serviu de base para a criação do samba “Pedro Pedreiro”, como se lê no livro “Chico Buarque: cidade submersa” (Casa da Palavra, 2006), outro da jornalista Regina Zappa sobre o artista. Já na entrevista ao Pasquim, elogiou a popularidade do autor de “Mas que nada” naquele ano de 1970: “Eu adoro o Jorge, acho que ele merecia isso, é uma pessoa formidável.”

    Chico em dois momentos: nas décadas de 1960 e 70
    Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    O próprio Chico, que já conhecia o sucesso desde “Pedro Pedreiro” (e depois “A banda”, “Olê olá”, “Roda viva”, “Carolina”...), emplacaria mais um naquele 1970, “Apesar de você”, samba que a censura federal tirou de circulação – proibindo a execução e ordenando o recolhimento dos discos – tão logo percebeu que o “você” não era uma “mulher muito mandona” (como Chico dissera aos censores) e, sim, a própria ditadura militar.

    Mais um golaço do artista, que se consagraria também como exímio driblador do regime, fosse recorrendo à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias (aproveitada em sua “Sabiá”, com Tom Jobim), fosse adotando o pseudônimo de Julinho da Adelaide (para lançar o samba “Acorda amor”), fosse escrevendo ao amigo dramaturgo Augusto Boal que “a coisa aqui tá preta”, como em “Meu caro amigo”, samba-choro epistolar em parceria com Francis Hime.

    Ao longo de sua trajetória artística, também construiu uma sólida discografia de cantor (com mais de 60 álbuns, entre discos de carreira, trilhas para cinema e teatro, compactos e coletâneas), escreveu peças de teatro até hoje remontadas e ganhou prêmios como romancista – tudo isso sem nunca se afastar do samba. “Outro dia, num jornal, um sujeito, para falar mal de mim, me chamou de sambista, como se fosse um insulto”, revelou Chico, numa entrevista em 1994. “E eu sou um sambista. Quando eu morrer, quero que digam: ‘Morreu um sambista que escrevia livros’.”

    Com a colaboração de Bia Paes Leme

    Foto:  Chico Buarque no Teatro Paramount, em São Paulo / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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