“Não tem sentido você amealhar uma coleção desse tamanho para falar ‘eu tenho isso’.”
É assim que Gilberto Inácio Gonçalves resume o trabalho que vem desenvolvendo nos últimos 30 anos, período em que reuniu os cerca de 20 mil discos da coleção – 15 mil de 78 rotações e 5 mil LPs – que mantém em seu apartamento, no bairro paulistano da Mooca. Foi de lá que ele gravou, por videoconferência, sua participação na série Colecionadores, na qual Sandor Buys vem conversando com criadores e mantenedores de acervos de discos como os dois que já registraram seus depoimentos: Paulo Mathias e Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez.
Pois na entrevista com Gilberto ficamos sabendo não só de sua relação com os discos, como também do início de seu interesse pela música brasileira, ainda na infância, em Araraquara (SP), dentro do ambiente familiar. Com Seu Joaquim, o pai, acostumou-se a apreciar a arte dos violeiros que se reuniam em fazendas dos arredores para tocar “as coisas da roça”. Já com D. Dalva, a mãe, conheceu o som da Rádio Nacional e das vozes de Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Orlando Silva e outras estrelas da música brasileira da época.
Não espanta que, menino ainda, tenha pedido aos pais uma rádio-vitrola – seu primeiro presente. E que um dos seus passatempos de criança fosse ouvir discos como os das historinhas infantis produzidos por João de Barro na Continental ou “Pombinha branca”, num 78 rotações que ganhou do pai. “Eu fantasiava na minha cabeça como é que poderia sair som daquela bolacha preta com riscos no meio”, recorda o colecionador de 66 anos, natural de Bauru (SP). “Era como se fosse uma coisa muito mágica.”
As músicas de adulto também frequentavam os ouvidos do menino, como o samba-canção “Nervos de aço”, que a mãe colocava no toca-discos: “Eu achava lindo, mas não entendia nada. Como é que uma criança vai entender aquilo?” Nunca mais se afastou da música, mesmo que o dia-a-dia de dentista – profissão que exerceu até 2022 – não deixasse muito tempo para os discos. “Assim que recebia o salário do mês, eu pagava as contas e ia à discoteca em seguida.”
As memórias também seguiram com Gilberto, embora às vezes incompletas: certa vez, lembrou-se de duas melodias da infância e quis saber que músicas eram aquelas – sabia que eram baiões gravados por cantoras e guardava na lembrança aspectos dos selos dos discos: um branco e outro azul. Graças à memória da mãe, matou a charada concluindo que as melodias que buscava eram as de “Delicado”, na gravação de Ademilde Fonseca (o disco de rótulo branco), e “Kalu”, com Dalva de Oliveira (o de rótulo azul).
Quis encontrar os discos e então foi até a Praça da Sé, onde, num sebo, viu uma pilha de 78 rotações e perguntou o preço à vendedora: “Dá 50 centavos cada um. Essas porcarias...” E a pilha toda? “Ah, dá dez reais aí e você leva tudo”, resumiu a moça. “Não tive dúvida”, conta Gilberto Inácio, estabelecendo o episódio – o ano era 1995 – como marco inicial de sua relação com os discos de 78 rpm.
Tão logo encontrou um aparelho em que pudesse tocar as bolachas (um Garrard RC88-4), dedicou-se a ouvir as gravações que já tinha em casa e a arrematar novas pilhas de discos de 78 rpm em outros sebos de São Paulo. “Foi como abrir um sarcófago e descobrir toda a história do Egito ali dentro”, define o colecionador, que desses garimpos iniciais guarda o encantamento pela voz da cantora Aracy de Almeida, “que para mim era uma jurada do Silvio Santos”, relembra. “A primeira vez que eu ouvi fiquei besta.”
E olha que ainda nem tinha encontrado sua turma: os outros colecionadores – quase todos veteranos, acima dos 70 anos – que conheceu na Casa Lomuto, meca dos discos antigos em São Paulo da qual tomou conhecimento numa matéria de jornal. “Descobri a pólvora”, resume, referindo-se não só à Casa Lomuto, como também – e principalmente – a seu proprietário, Roberto Gambardella, de quem se tornou amigo e aluno atento: com ele aprendeu o beabá da discografia em 78 rpm. “Ele me ensinou o caminho das pedras.”
“Era uma memória impressionante, fora todo o trabalho de catalogação que fazia”, afirma Gilberto, que se tornou frequentador assíduo da loja, então localizada na Praça da Sé, nº 94. Foi lá que, numa pilha de discos trincados prestes a serem descartados, garimpou o item mais valioso de sua coleção: gravações de Chiquinha Gonzaga que estavam escondidas num 78 rpm identificado com rótulo de outra música: em vez de “Plicea”, cujo nome vinha estampado nos dois lados do disco, as gravações traziam a habanera “Argentina” e a valsa “Saudade”. Quem os interpreta (e possivelmente anuncia, no início das gravações) é a própria pianista-maestrina, autora das composições.
A descoberta das duas raridades de 1922 é um dos temas não só da entrevista a Sandor Buys, como também de um post do Blog do IMS em 2015, quando Gilberto trouxe o disco para digitalização no Instituto Moreira Salles. Já em 2020, a história foi contada mais uma vez – agora em viva voz – pelo colecionador no 1º episódio do podcast “Música em 78 rotações”, produzido no lançamento aqui deste site.
As duas gravações raras de Chiquinha Gonzaga, aliás, não são as únicas gentilmente cedidas por ele à Discografia Brasileira: também integram a Coleção Gilberto Inácio Gonçalves outras duas preciosidades que podem ser ouvidas por aqui, em gravações de 1930: os sambas “Trapaiada”, cantado por Paulo da Portela (autor da música), e “Chô arara” (João Miranda), na interpretação de Yolanda Osório.
Entre as lembranças da Casa Lomuto estão ainda os encontros com grandes nomes do colecionismo e da pesquisa musical, como Abel Cardoso Jr. e Leon Barg, ambos generosos com o então iniciante Gilberto. “Eram mais acessíveis que os outros”, recorda. “Alguns não entregavam o ouro.” Além da atenção, os veteranos deram-lhe discos de presente, guardados até hoje com carinho. “Meu ‘Fez bobagem’ foi o Leon que me deu”, diz. “O Abel me deu o ‘Tem francesa no morro’.”
Do envolvimento com as gravações antigas vêm outras iniciativas abordadas por Gilberto Inácio Gonçalves na entrevista a Sandor Buys. Como o canal no YouTube que mantém desde 2015, com 6,6 mil inscritos e quase 10 mil vídeos em que toca discos de sua coleção. E os cursos que já deu no Sesc SP – com o violonista/arranjador Paulo Serrau ou com a radialista/produtora Biancamaria Binazzi – com recortes temáticos de sua coleção.
A missão de passar adiante o conhecimento, para ele, é a razão pela qual se dedica a estudar e entender o passado: “Você sabe que nós somos um país sem memória, né?”, reflete o colecionador, como que a reproduzir a missão de Roberto Gambardella, sem o qual o próprio Gilberto e outros frequentadores da Casa Lomuto não teriam levado adiante tantas informações musicais do passado. “Quando ainda não existia a internet ele era a hemeroteca musical.”
Há seis anos, quando percebeu que o amigo apresentava os primeiros sinais de lapsos de memória (traços que se aprofundariam com o tempo), Gilberto viu que era hora de prestar uma homenagem a ele. Reuniu colecionadores no salão de festas do edifício onde mora para uma festa surpresa embalada, claro, por discos de 78 rpm – como os de Gastão Formenti, cantor preferido do homenageado, estrategicamente separados para serem tocados no fim da festa.
“Não me lembro se ‘Foi boto, sinhá” ou ‘Vingança’, mas na hora que ele ouviu escorreu uma lágrima”, recorda o aprendiz, que se emociona ao lembrar que a homenagem foi uma das poucas recordações que seu mestre levou na memória até o fim da vida, no Natal de 2021. “Seu Roberto não morreu”, ressalva Gilberto. “Eu estou aqui, eu sou a voz dele. Quando eu morrer, espero que tenha uma voz que fale por mim, por ele e pelos que vieram antes dele.”
Foto: reprodução da tela com Gilberto Inácio Gonçalves na série 'Colecionadores'