Na febre da sanfona que tomou o Brasil na virada entre as décadas de 1940 e 50, o baião deu cetro e coroa a Luiz Gonzaga; arranjos orquestrais foram feitos para Chiquinho e seu acordeom sofisticado; a música do interior bateu recorde de vendas com os discos de Antenógenes Silva; o virtuose Sivuca passeou com seu fole pela world music; e o instrumento foi para as salas de aula de todo o país com as academias criadas por Mário Mascarenhas.
Outra boa novidade foi Orlando Silveira, o músico paulista que introduziu o acordeom nos conjuntos de choro, participou do principal deles na era do rádio e ainda se tornou um dos arranjadores mais atuantes na música popular brasileira. Uma carreira longeva e produtiva, como talvez pudesse imaginar na juventude, quando resolveu adaptar seu nome de batismo – Orlando Silva – “para que não se fizesse confusão com o rei do rádio”, como contou à revista Radiolândia (outubro de 1953), em referência ao famoso xará, o popularíssimo Cantor das Multidões.
Pena que, cem anos após seu nascimento (recém completados, em 27-05-1925), seu nome não tenha o destaque merecido na memória da música popular brasileira. Pior: no site oficial de Rincão (SP), sua cidade natal, não há qualquer menção a seu nome, suas composições, seus discos, suas raízes artísticas.
Pois música era artigo essencial na casa da família: não só pelo rádio que D. Olívia, a mãe, ouvia enquanto cuidava dos afazeres domésticos, como pelo acordeom que Seu Delfino de Oliveira Silva, o pai, tocava nas horas de descanso de sua rotina profissional, como manobrista da companhia de trens de São Paulo. O filho, aos nove anos, já se entendia bem com o cavaquinho, mas gostava mesmo de espichar os olhos pro instrumento do pai, sempre fora de seu alcance – para Seu Deflino, o filho não tinha condições, de tão mirrado que era, de manejar o acordeom.
Até que, ali pelos doze, Landinho – como era chamado em casa – deu lá seu próprio jeito: “Aproveitava-se sempre da ausência paterna para tirar algumas notas da sanfona de oito baixos que seu pai, velho músico, tocava nas festinhas e bailes locais”, descreveu a Revista do Disco. Certo dia, ouvindo por trás da porta o filho tocar uma valsa, percebeu que não tinha jeito. Comprou-lhe um método de acordeom e, logo, fez do filho seu substituto nos arrasta-pés de Rincão, Barretos e onde mais fosse chamado para tocar.
Já tinha as primeiras noções musicais quando, em 1942, mudou-se para São Paulo, empregando-se primeiro num tear e, depois, numa loja de discos. Neste último, seu patrão era o acordeonista Arnaldo Meireles, que passa a indicá-lo como substituto no Programa da Saudade, onde tocava, na Rádio Difusora de São Paulo. Logo em seguida, é convidado pelo violonista Antônio Rago a ingressar em seu regional, atração fixa da Rádio Tupi paulista. “Foi a primeira formação musical a usar um acordeom. Servi, assim, de cobaia”, disse ao Jornal do Brasil (16-06-1978), ao relembrar o conjunto no qual se profissionaliza.
Pouco a pouco, firma-se como acordeonista de destaque em São Paulo, sendo solicitado também para as primeiras gravações. Na Continental, faz sua estreia fonográfica como solista no 78 rpm de nº 15.399, que saiu em agosto de 1945 trazendo no lado A a rancheira “Jeitosa” (dele com Juraci Rago), sua 1ª composição gravada, e no B a valsa “Triste carnaval” (Américo Jacomino). Mas já vinha acompanhando gravações de outros artistas, como por exemplo a primeira de Tonico e Tinoco: é dele o acordeom que se ouve na introdução do cateretê “Em vez de me agradecer” (Ariovaldo Pires, Jaime Martins e Aymoré).
Mas o destaque entre as gravações iniciais de Orlando Silveira são justamente suas composições, em especial as parcerias com Esmeraldino Salles, multi-instrumentista (do cavaquinho, do contrabaixo, do violão e do violão-tenor) e seu companheiro do Regional de Antônio Rago. São deles os choros “Tudo azul” (1945) e “Saudade” (1951), gravados com o conjunto na Continental, assim como o samba instrumental “Caso de amor”, solado por Orlando já na gravadora Copacabana (1953). E também “Perigoso”, um dos choros mais conhecidos de seu repertório, lançado por Orlando na Odeon, em 1957, quando já vivia no Rio de Janeiro.
A mudança para o Rio, aliás, só foi possível graças a Luiz Gonzaga, então um dos artistas mais populares (senão o mais popular) do Brasil e grande entusiasta do talento de Orlando. Tanto que, quando foi convidado para integrar o Regional do Canhoto, criado na virada dos anos 1940 para 50 (a partir do recém desfeito Regional de Benedito Lacerda), o Rei do Baião, impossibilitado de aceitar o convite por questões de agenda, indicou o jovem paulista para sanfoneiro do conjunto.
Orlando Silveira e seu acordeom no regional de Antônio Rago (ao centro, com violão), atrás do parceiro Esmeraldino Salles (no cavaquinho). Acervo Regional do Canhoto
Luiz já conhecia Orlando Silveira desde o dia em que, de passagem por São Paulo, ouviu-o tocar na Estação Roosevelt, terminal ferroviário onde Seu Delfino vinha trabalhando como carregador de malas. Não só gostou do que ouviu, como presenteou o rapaz com um acordeom novinho em folha, como costumava fazer sempre que encontrava um jovem acordeonista.
Pois a nova mudança – de mala e cuia – de Orlando Silveira foi definitiva: chegou ao Rio de Janeiro a tempo de estrear com o Regional do Canhoto na Rádio Mayrink Veiga, em 13-03-1951, como atração do programa semanal Noites Brasileiras. E assim como na Tupi paulista, Orlando e sua sanfona se integraram perfeitamente ao regional que se tornaria o mais importante da chamada era do rádio, liderado pelo cavaquinista Waldiro Tramontano (o Canhoto) e formado também por Horondino Silva (Dino) e Jayme Florence (Meira) nos violões, Altamiro Carrilho na flauta e Gilson de Freitas no pandeiro.
Mas era a sanfona que estava na moda – aliás, ela e o baião, gênero musical estourado nacionalmente com Gonzagão desde 1946/47. Pois é ele o gênero musical que aparece nos dois lados do primeiro 78 rotações em que Canhoto e Seu Regional – como eram identificados nos rótulos – aparecem como atração principal de um disco: o RCA Victor 80-0784, lançado em julho de 1951 trazendo “Meu limão, meu limoeiro”, do repertório tradicional, no lado A e “Gracioso” (Altamiro Carrilho) , no B.
Com eles lançará composições de sua autoria, como os choros “Visitando” (em parceria com Canhoto) e “Dedilhando” (com Esmeraldino Salles) e o baião – mais um! – “Rio-São Paulo”, co-assinado por Dino. Entre uma gravação e outra com o regional (às vezes acompanhando solistas como Jacob do Bandolim, autor do choro “Nosso romance”), Orlando Silveira começa a rabiscar seus primeiros arranjos.
O trabalho de arranjador, antes de se tornar uma das marcas de sua trajetória, resultou em gravações marcantes, como por exemplo as duas primeiras de João Gilberto como solista, ainda cantando à moda antiga, pré-bossa nova, num 78 rpm da Copacabana lançado em agosto de 1952, com os sambas-canção “Quando ela sai” (Roberto Penteado e Alberto Jesus) e “Meia luz” (Hianto de Almeida e João Luiz). Também de 1952 é a primeira gravação de uma canção composta por Orlando Silveira, “Isto é amor”, samba co-assinado por Meira e Augusto Mesquita e gravado por Isaurinha Garcia.
Já na voz de Chico Anísio foi lançada a quadrilha “Professor Raimundo”, uma parceria do humorista com Orlando Silveira, que se faz presente na gravação (de abril de 1953) com seus companheiros do Regional do Canhoto. Outro ponto alto desse mesmo ano é sua participação no filme “Agulha no palheiro”, longa-metragem de Alex Viany no qual comparece com sua sanfona na cena em que a cantora Carmélia Alves, a Rainha do Baião, interpreta “O voo do mangangá” (Humberto Teixeira e Felícia Godoy).
Orlando com os companheiros do Regional do Canhoto: Gilson de Freitas (a seu lado, com o pandeiro) e, da esquerda para a direita: Canhoto (cavaquinho), Meira, Dino (violões) e Altamiro Carrilho (flauta). Foto colorizada do Acervo Regional do Canhoto.
“Orlando Silveira é simples e bastante comunicativo. Gosta de cinema, de comer massas e é Flamengo”, contou a Revista do Disco na edição de outubro de 1953, num perfil sobre o acordeonista, cujo nome crescia não só no rádio – “está contentíssimo na Mayrink Veiga” – como nos discos: “É hoje um dos grandes artistas exclusivos da Copacabana. Já pôs na cera, por essa etiqueta, uma série de sucessos”, informa o texto, antes de listar gravações recém lançadas, entre elas os baiões “Balanceando” (de sua autoria, em parceria com Arlindo Pinto) e “Bodinho de galocha” (com Meira), além de “O pé de anjo”, a famosa marcha de Sinhô, regravada como (sempre ele!) baião.
Em 1954, o ritmo da moda seguiu no repertório de Orlando Silveira, mas houve novidades, entre elas um disco de dobrados com seu acordeom acompanhado de bandinha nas interpretações de “Ipiranga” (de sua autoria) e “Dengoso” (Altamiro Carrilho e Oscar Belandi). No mesmo ano, vieram ainda novidades de outras terras, como o foxtrote “Pretend” (Douglas, Parman e Lavere) e a valsa “That’s amore” (Brooks e Warren), dentro da variedade rítmica que já era característica de seu repertório desde as primeiras gravações, com Antônio Rago e cia.
Como salientou o texto da contracapa do LP “Par constante” (1957), “o acordeom de Orlando Silveira toca com o mesmo ritmo gostoso que leva rapazes e moças a se embalarem ‘cheek to cheek’, não importa se nos galpões da roça ou nos salões da cidade, desde o fox dolente até o vivo maracatu, do bolero ao chorinho”, escreveu Ivan Meira, na apresentação do disco que, entre outras variedades, tem o acordeonista requebrando também em ritmo de cha cha cha, com “Aquellos ojos verdes” (Nilo Menendez).
Revista do Disco, outubro de 1953
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
“Par constante” foi um dos dez LPs de Orlando Silveira na Odeon, gravadora pela qual lançou discos entre 1955 e 74, e não só como solista. Foi na gravadora que ele, depois de aprofundar nos estudos musicais com Leo Peracchi, Henrique Morelenbaum e Hans-Joachim Koellreutter, passou a atuar oficialmente como arranjador. Isso a partir de 1967, quando Orlando assinou os arranjos de um LP de Waldir Azevedo e acabou sendo contratado pela Odeon também como regente e diretor musical assistente.
Na gravadora até 1975, será eclético em seu trabalho de arranjador, à frente de discos como o primeiro de Raul Seixas, “Raulzito e os panteras” (1967), “Elza, Miltinho e samba” (1967), “Garra”, de Marcos Valle (1971), “Elton Medeiros” (1973), “Choros de sempre”, de Déo Rian (1974) e, já na fase final na Odeon, LPs diversos de Clara Nunes (todos da cantora entre 1971 e 76). Ao encerrar o contrato, seguiu trabalhando para outras gravadoras, como a RCA Victor, onde escreveu arranjos para Beth Carvalho (1976 a 78).
“Preferi abandonar os contratos, porque assim teria mais liberdade para escolher artistas e produtores, fugindo dos esquemas das gravadoras”, revelou ao JB na entrevista de 16-06-1978. “As gravadoras não aceitam ideias que não sejam comerciais.” Outros arranjos marcantes de sua trajetória foram os que fez para a música vencedora do Festival Internacional da Canção de 1969, “Cantiga por Luciana” (Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), e para “Minha voz virá do sol da América” (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), pela qual foi premiado como melhor arranjador da 3ª Olimpíada da Canção de 1971, em Atenas, na Grécia.
“É importante frisar que a disputa ocorreu entre mais de 30 arranjadores de vários países participantes do citado festival”, anotou Sebastião Mozart de Araújo na contracapa do LP “Choros ontem, hoje e sempre” (CBS, 1978), no qual Orlando Silveira timbrou seu acordeom com solos de guitarra elétrica e vibrafone, para espanto de parte da crítica. “Não existe tabu em matéria de instrumentos. Qualquer um, se bem tocado, pode ser bom”, argumentou – ainda na entrevista ao JB – o sanfoneiro-arranjador, cujo LP “SOS Band it” (Odeon, 1974), é até hoje considerado um dos pontos altos da black music brasileira.
LPs de carreira: 'Par constante' (Odeon, 1957) e 'Choros ontem, hoje e sempre' (CBS, 1978) / Reproduções do site do Instituto Memória Musical Brasileira
“Choros ontem, hoje e sempre” foi o marco de seu retorno aos discos como acordeonista, após mais de uma década dedicada à carreira de arranjador-produtor. O LP saiu em plena nova onda do choro, quando, na segunda metade da década de 1970, viu surgirem conjuntos de jovens chorões como o Galo Preto (1975), os Carioquinhas (1977) e o Nó em Pingo d’Água (1979). “Na minha opinião todo movimento musical que tem participação da juventude vai para frente”, avaliou. “Desse movimento de chorões poderão surgir grandes músicos, porque iê-iê-iê, sem qualquer preconceito, não cria instrumentistas.”
O lançamento do novo disco não o impediu de seguir produzindo e fazendo arranjos como, por exemplo, os que escreveu para o disco “70 anos de sanfona e simpatia” (RCA Victor, 1983), de Luiz Gonzaga. Nome decisivo em seu início de carreira, o Rei do Baião também está na trajetória de Orlando Silveira como parceiro em uma composição: “Acácia amarela”, considerada um dos hinos da maçonaria. Além, claro, de eterna referência musical (“Tem um estilo puro, autêntico”, definiu ao JB), juntamente com Sivuca (“Um verdadeiro showman do acordeom”).
Seguiu em plena atividade até o fim – no caso, os últimos trabalhos, entre eles o álbum “Ary Barroso, 90 anos”, um LP triplo produzido pela Fenab (Federação Nacional de Associações Atléticas Banco do Brasil). Neste, Orlando fez a direção musical – com Jorginho do Pandeiro – e escreveu arranjos que “podem figurar entre os melhores de sua longa e bem sucedida carreira”, como definiu o pesquisador Jairo Severiano no texto da contracapa do disco, gravado em meados de 1992, no estúdio Transamérica, no Rio de Janeiro.
Os bastidores desta gravação, registrados em vídeo pelo músico e produtor Celsinho Silva, estão entre as atrações de um perfil do YouTube criado – pelo pesquisador musical Armando Andrade – por ocasião do centenário de nascimento de Orlando Silveira. No vídeo, estão registros que, provavelmente, são as últimas imagens em movimento do maestro-sanfoneiro, que faleceria no fim do ano seguinte (22-12-1993), aos 68 anos, vitimado por um câncer de pulmão.
Imagens de um Orlando Silveira sorridente, ora às voltas com as partituras de seus arranjos, ora empunhando o instrumento que, como dizia, serviu de base para todo seu trabalho: “O acordeom é como se fosse meu irmão, meu pai, minha alma gêmea e mulher.”
Foto principal: Studio Tex / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS