A música é uma presença constante dentro de mim. Presa, grudada no meu corpo feito tatuagem. Vem de longe esse amor indestrutível, dos tempos de menino, quando minha mãe tocava bandolim e juntava gente em casa num sarau de muita música.
(Fernando Lobo – “À mesa do Vilariño”. Editora Record, 1991)
Existem dois compositores chamados Fernando Lobo na música brasileira. O primeiro, o paulista (de Tietê) Fernando Álvares Lobo (1889-1953), ficaria mais conhecido pelo seu nome artístico, Marcello Tupynambá. Já o segundo, o pernambucano Fernando de Castro Lobo, passaria à posteridade usando o seu próprio nome. Muitas vezes lembrado apenas como “o pai do Edu Lobo”, foi bem mais do que isso: foi jornalista, radialista, produtor, diretor de emissoras de rádio e TV e de gravadoras, escritor, desenhista, pintor, excelente letrista e também compositor de mão cheia. Além de bon vivant: “o mais genial notívago do Rio”, definiu Dirceu Ezequiel na revista Carioca de 06/12/1952.
Notívago que, junto com Dorival Caymmi, Antônio Maria, Aracy de Almeida, Paulinho Soledade, Vinicius de Moraes e outros “encaixotadores de sereno” – como o próprio Poetinha os definiu em O Pasquim de 10/09/1970 –, batia ponto em boates e bares do Rio de Janeiro – os icônicos Villarino e Esplanada entre eles – e no famoso Clube da Chave, inaugurado em Copacabana em 1953 (era o sócio-fundador de número 32). Segundo Ruy Castro em “A noite do meu bem” (Companhia das Letras, 2015), Lobo, Caymmi e Carlinhos Guinle tinham algo em comum: “Os três faziam música e letra nas horas em que não estavam dedicados a viver”.
“Ele tinha 14 anos quando uma professora, d. Paulina, leu a sua mão e disse que iria morrer aos 19. Aquilo marcou o garoto. Ficou com medo da morte. Quis viver depressa. E viveu. Depois que o tempo da profecia passou, não perdeu mais o ritmo. Continuou vivendo intensamente, somando experiências, fazendo muitas coisas ao mesmo tempo”, explicou Jorge César Bellez n’O Cruzeiro de 10/03/1970. Antes mesmo de chegar ao Rio – “numa turma de jovens recifenses formada por Antônio Maria, Abelardo Barbosa, Augusto Rodrigues, Teophilo de Vasconcellos, Deraldo Padilha e outros”, como conta Ruy Castro –, já era figura de destaque no seu Recife natal, onde nascera em 26 de julho de 1915, filho de Eduardo Lobo e de dona Edith.
Tendo passado grande parte da infância e da juventude em Campina Grande, na Paraíba – onde estudou piano com o pai do compositor Capiba –, Fernando iria se formar em Direito na capital pernambucana em dezembro de 1938. Já então era nome respeitado no estado, graças a suas atividades artísticas: em 1934, aos 18 anos, integrava a Jazz-Band Acadêmica de Pernambuco – criada três anos antes por Capiba –, “onde eu tocava o meu violino, que iria justificar depois a minha vida cigana”, explicaria anos mais tarde no livro “À mesa do Vilariño”. Em 1935, segundo o Diário de Pernambuco de 26 de março daquele ano, fazia parte do conjunto Diabos do Paraíso. Também atacava de cantor na Rádio Clube de Pernambuco, como apontava o mesmo periódico em 8 de julho.
Nos anos 1930, o “Noel Rosa do Norte”, na definição de Alceu Pereira (O Cruzeiro, 24/07/1937), escreveu um punhado de composições, muitas delas nunca registradas em disco, cujos títulos se propagavam pelos jornais pernambucanos da época, entre eles o Diário de Pernambuco e o Diário da Manhã: “Menina”, “História de criança”, “Cheio de melodia”, “Dona Ninguém”, “Retrato da morena”, “Eu, você e o meu violão”, “Sambando”, “Queria...”, “Felicidade”, “Mentira”, “Dona realidade”... Curiosamente, todos sambas, a maioria deles lançada nas ondas do rádio pelo cantor Castro Fernandes, chamado no Diário de Pernambuco de 12/09/1936 “o rei do samba pernambucano” – na verdade, ninguém menos que o próprio Fernando Lobo sob pseudônimo. Desta leva, chegaria ao disco apenas “Mentira”, parceria com Capiba, pela voz de Raul Torres em 1937.
Fernando Lobo nos tempos de "grande cantor" (Carioca, 20-07-1940) e entre amigos pernambucanos: no alto à direita, entre Capiba e Nelson Ferreira (fascículo “História da Música Popular Brasileira – Capiba e Nelson Ferreira” – Abril Cultural, 1972); abaixo, com Abelardo 'Chacrinha' Barbosa (fascículo “História da Música Popular Brasileira – Antônio Maria e Fernando Lobo” – Abril Cultural, 1982)
Como bom pernambucano, Fernando Lobo não poderia deixar de abraçar o frevo, tampouco o maracatu, gêneros presentes nos dois únicos registros sonoros feitos pelo compositor-cantor. Em dezembro de 1935, ele gravou “Pare, olhe, escute e goste”, frevo-canção de Nelson Ferreira, acompanhado pela Jazz-Band Acadêmica de Pernambuco. O disco foi lançado em janeiro de 1936, ano em que seu famoso maracatu “Nego banzo” chegou ao acetato pelas vozes do Quarteto Vocal Acadêmico – uma delas era justamente a de Fernando, integrante do grupo –, novamente com o auxílio da Acadêmica.
Entre 1937 e 1941 – quando já então residia no Rio –, ele emendaria uma ótima sequência de frevos-canção: “Não chora, Pierrô” (com Nelson Ferreira), “Pierrô, meu Pierrô” – ambas empatadas em segundo lugar no concurso promovido no Recife em 1936 para o Carnaval de 1937, segundo o Diário de Pernambuco de 29/11/1936 –, “Sim e não” (com Capiba, terceira colocada na mesma ocasião), “De quem é que você gosta”, “Aonde está meu amor”, “Alegria” – um estrondoso sucesso em Pernambuco no Carnaval de 1940 – e “Não faltava mais nada”. Ainda no Recife, iniciou duas atividades que o acompanhariam vida afora.
A primeira, de cronista: em 1936, antes de completar 21 anos, já produzia textos para o Diário de Pernambuco – mais tarde, marcaria época com suas diversas colunas na imprensa, como a “Back-ground”, em O Cruzeiro, e “Pelas esquinas da noite”, na Manchete. Em 1937, passou a escrever no Diário da Manhã do Recife, onde também mostrava seu talento como desenhista – talento que voltaria a aparecer, por exemplo, na Revista da Música Popular publicada entre 1954 e 1956, onde também atuou como redator. Ainda em 1937, viajou para o Rio com Capiba – e as peripécias da dupla na então capital federal seriam eternizadas por este último na autobiografia “Capiba – O livro das ocorrências” (Fundarpe, 1985).
Deixando para trás suas atividades como inspetor da Escola Normal do Recife e professor de desenho, chegou ao Rio de vez em 1939, arrumando emprego num escritório de advocacia, “embora se sentisse mais inclinado para a música e para o jornalismo”, como explica o texto do fascículo da “História da Música Popular Brasileira – Grandes compositores” (Abril Cultural, 1982) dedicado a Antônio Maria e Fernando Lobo. Este último, segundo o mesmo texto, levava “uma vida de free-lancer, com reportagens pagas se publicadas, vida incerta e boêmia, porém intensa e bem adequada a seu temperamento”. No tempo das vacas magras, dividiu um apartamento na Cinelândia com Antônio Maria – que ele mandou buscar de Pernambuco –, Augusto Rodrigues, Teófilo de Barros Filho e Dorival Caymmi, frequentado ainda por Abelardo “Chacrinha” Barbosa.
Aos poucos, começou a se destacar em terras cariocas, “fazendo muitas coisas ao mesmo tempo”, como disse o citado Jorge César Bellez em 1970. Em 1940, tornou-se repórter do semanário Carioca, seu primeiro emprego; no ano seguinte, já escrevia para O Cruzeiro. Em 14/11/1942, casou com Maria do Carmo de Góes Cavalcante, com quem teria um filho, Eduardo de Góes Lobo, nascido em 29 de agosto do ano seguinte. Passaria pelas rádios Tupi, Tamoio e Educadora, viajando entre 1945 e 1947 para os Estados Unidos, onde trabalhou na CBS (Columbia Broadcasting System) e na NBC (National Broadcasting Company).
Durante esse tempo, tornou-se correspondente internacional, escrevendo artigos para revistas brasileiras e fazendo entrevistas exclusivas com personalidades do show-business – como Marlene Dietrich, publicada na edição de março de 1947 de A Cigarra. Nos Estados Unidos, nasceria sua filha Sônia, fruto da união com Amália Machado da Costa – Fernando estava então separado de Carminha, com quem reataria mais tarde.
Foi em 1947 que, após um longo hiato – não lançava músicas desde 1941 –, voltou a aparecer como compositor, com o samba “Saudade”, dele e de Dorival Caymmi. A gravação de Orlando Silva, devido ao sucesso, acabaria relançada em 1952. Sozinho, Fernando Lobo faria belos “sambas-canção de mesa de bar” – assim definidos por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello em “A canção no tempo”, volume 1 (Editora 34, 1997) –, como “Distância” e “Quando foi, por que foi”, ambos registrados em 1948 pela amiga Aracy de Almeida.
Em boas companhias: no alto à esquerda, com Francisco Alves (O Cruzeiro, 28/07/1951); à direita com Dorival Caymmi e abaixo entrevistando Marlene Dietrich (reproduções do livro 'À mesa do Vilariño', 1991)
Já então havia retornado ao Brasil e ingressado na poderosa Rádio Nacional. Neste mesmo ano de 1948, tomou coragem e procurou Francisco Alves – então o maior cantor do país – para mostrar um samba que havia surgido de supetão em sua mente, música e letra praticamente aparecendo juntas: “Podemos ser amigos simplesmente, coisas do amor nunca mais...”. Chico ouviu, gostou e, em agosto, levou ao disco “Chuvas de verão”, lançado em março do ano seguinte. Seria uma das composições mais regravadas de Fernando Lobo e um dos maiores clássicos da nossa música popular, especialmente após a versão feita por Caetano Veloso em 1969.
A exemplo do que acontecera no Recife, também abafaria no Carnaval do Rio – aliás, segundo informou Jorge César Bellez n’O Cruzeiro de 10/03/1970, ele detestava a festa de Momo (assim como não curtia muitas outras coisas: praia, teatro, cinema...). A caminho do seu “escritório” no Villarino, compôs, com o grande amigo Evaldo Rui, o hoje politicamente incorreto samba – originalmente concebido como um baião – “Nega maluca”, primeiro lugar entre os sambas inscritos no concurso da prefeitura. Foi um grande êxito também de sua intérprete, Linda Batista, que o gravou em outubro de 1949 e o lançou em janeiro de 1950 para estourar no Carnaval: a música ganhou as ruas e virou até fantasia, uma das preferidas dos foliões por muitos anos.
Outro grande hit carnavalesco de Fernando Lobo surgiu depois de uma missa de sétimo dia, como contou seu parceiro Paulo Soledade em algumas ocasiões (por exemplo, ao Pasquim de 24/09/1974 e no programa “MPB especial”, da TV Cultura, em 1975). Eduardo Henrique Martins de Oliveira, o comandante Edu, era líder do Clube dos Cafajestes e figura de destaque na sociedade carioca. Acabaria falecendo em 28 de julho de 1950 num acidente com uma aeronave Constellation, da Panair, que ele pilotava. Após a missa, foram almoçar Paulo, Fernando, Aracy e Caymmi, num silêncio pesaroso. Fernando então teria comentado: “Paulinho, está faltando um, não está?”. Ao que o outro respondeu: “É, realmente está faltando um”. Caymmi concordou: “É, ele que era o porta-estandarte”.
Estava nascendo a marcha, feita a princípio para ser cantada apenas pelos amigos. Mas Dalva de Oliveira escutou e pediu para gravar, o que foi feito em setembro. Chegou às lojas em janeiro de 1951 e pronto: “Zum-zum”, terceiro lugar no concurso de Carnaval daquele ano no quesito marchas, foi a primeira na preferência dos foliões, que a cantaram a plenos pulmões. No livro “O Carnaval carioca através da música” (Francisco Alves, 1979, 3ª edição), Edigar de Alencar ressalta: “Como se vê, o Carnaval carioca não é desprovido de sentimento e coração. Nem tudo é orgia e patuscada. (...) E até a saudade pode ser transposta em ritmo de samba, marcha ou batucada”.
Com outro de seus principais parceiros, Manezinho Araújo, Fernando fez nascer em 1950 o samba “Ai, cachaça”, levado ao 78 rpm por Blecaute em janeiro de 1951. Dois anos antes do surgimento da marcha arrasa-quarteirão “Cachaça” (cuja história contamos aqui nesse post), os autores já brincavam com o tema: “Ai, cachaça, por favor não me aborreça / Você desça pra barriga mas não suba pra cabeça”. Da mesma dupla é o samba “Chegou Vila Isabel”, que Aracy de Almeida registrou para o Carnaval de 1952.
Paulo Soledade, Manezinho Araújo e Evaldo Rui foram os parceiros mais presentes na obra de Fernando Lobo. Com o primeiro, seriam 19 composições gravadas; com Manezinho, 18; e, com Evaldo, 10, num total de 47 – quase a metade das 107 de Fernando Lobo que chegariam aos discos, segundo levantamento feito nas páginas Memória Musical Brasileira e Discografia Brasileira, ambas na internet. Grandes amigos, grandes parceiros – e, à exceção de Evaldo, desafetos ocasionais.
“Fernando Lobo no seu modo limpo de criticar medalhões e acontecimentos não tem medo de caretas. Aborda os fatos com um estilo todo pessoal (...) Estilo Chicote Queimado”, definia seu colega cronista Braga Filho na Carioca de 16/09/1944. De fato, Fernando Lobo seria um colecionador de adversários: brigava e desbrigava com muita facilidade – com parceiros musicais e amigos do peito inclusive (e principalmente).
Companheiros de brigas e 'desbrigas': na foto maior, a turma do Villarino - Lúcio Rangel (à esquerda), Vinicius de Moraes (a seu lado), Paulo Mendes Campos (em pé, à direita) e Fernando Lobo (à sua frente, sentado) (livro “Chega de saudade”, 3ª ed., 1990). Na foto à direita, com Antônio Maria no aeroporto de Lisboa (reprodução do fascículo “História da Música Popular Brasileira – Antônio Maria” – Abril Cultural, 1971)
“Tenho uma infinidade de inimigos, mas não sei seus nomes. Pra que me preocupar com eles?”, gracejou Fernando na Revista do Rádio de 18/08/1953. Claro que sabia seus nomes – e, caso não soubesse, Antônio Maria – um de seus maiores amigos-desafetos – não iria deixá-lo esquecer: o mesmo periódico, em 28 de novembro do mesmo ano, revelou que, “escrevendo para um matutino, seu amigo Antônio Maria fornece a relação do pessoal que trocou de dedo mindinho com ele, Fernando”.
Da lista faziam parte Paulo Soledade, Luiz Jatobá, Magdala da Gama Oliveira (a crítica Mag, do Diário de Notícias), Assis Chateaubriand, Paulo Gracindo, Jorge Goulart, Manezinho Araújo, Roberto Marinho, Carlos Machado (que chegou a proibir sua entrada na boate Casablanca) e outros. Ausentes estavam Ary Barroso, Flávio Cavalcanti e Mister Eco (o crítico Eustórgio de Carvalho) – mas só porque Fernando ainda não tinha se desentendido com eles na época.
A briga mais famosa, mais duradoura – vista que viviam brigando e fazendo as pazes – e, de certo modo, mais espirituosa certamente foi a de Fernando Lobo com Antônio Maria. Segundo a Candinha na Revista do Rádio de 09/01/1954, este último, quando estava com amigos, sempre se referia a Fernando como “meu doce inimigo”. Na Manchete de 13/08/1955, um redator anônimo assim definiu a situação: “às vezes, brigam para ficar mais amigos e principalmente para sentir saudades um do outro”.
A coisa ficou meio feia quando Maria, em 1952, compôs sozinho “Ninguém me ama”, e por cortesia deu parceria ao amigo. Fernando retribuiu, colocando Maria como parceiro num excelente samba, “Preconceito”, que Nora Ney levaria ao disco em 1953. O negócio é que “Ninguém me ama” – lançado pela própria Nora Ney em 1952 – tornou-se um megassucesso, com inúmeras regravações, ao contrário de “Preconceito”, pouquíssimo lembrado pelo público e pelos intérpretes – como Cazuza, que apresentou a música numa roupagem mezzo rock, mezzo tango em seu último disco, o álbum duplo “Burguesia”, de 1989.
Estaria tudo bem, não fosse o polêmico apresentador Flávio Cavalcanti lançar a intriga em seu programa de TV em 1957, afirmando que “Ninguém me ama” era só de Maria. A contenda ganhou as páginas dos jornais e colocou os “parceiros” em lados opostos. Fernando, como contam diversas fontes – entre elas o fascículo da série “História da Música Brasileira” sobre Antônio Maria (Abril Cultural, 1971) –, teria reclamado com Maria sua parte na canção: “Sustenta aí que eu pus as vírgulas!”. À Manchete de 27/04/1957, Maria ironizou: “Que venham os parceiros. Minhas canções serão de quem as quiser”. Na mesma data, a Radiolândia abria espaço para ambos. “O ‘Ninguém me ama’ (bom ou ruim) é todo meu, letra e música”, disse Maria. “O ‘Ninguém me ama’ nunca foi meu: mas isso só fica bonito dito por mim”, declarou/confessou Lobo. Lógico que acabariam fazendo as pazes. Assinadas pela dupla existem mais três composições: a marcha “A noite é grande” e os sambas “Querer bem” e “Vou pra Paris”.
“Ninguém me ama” não foi a única música cuja autoria Fernando Lobo ganharia de presente, como lembra Ruy Castro em “A noite do meu bem”. Certa ocasião, Lobo levou a cantora Dora Lopes à boate Tasca, onde ambos escutaram Newton Mendonça tocar e cantar ao piano um samba-canção que fizera recentemente, “Você morreu pra mim”. Dora gostou e decidiu gravá-lo; Newton, grato a Fernando por ter levado Dora à boate, cedeu-lhe a parceria. Dessa vez, não houve alaúza, confusão nem bate-boca.
Com o conterrâneo Luiz Gonzaga, a pinimba foi outra, ainda nos anos 1940. Gonzaga havia sido contratado por Fernando Lobo, então diretor da Rádio Tamoio, mas apenas como sanfoneiro. Só que, quando algum artista se ausentava, ele cantava no lugar. Foi advertido pelo diretor. Como continuasse soltando a voz, Lobo mandou pregar nas paredes cartazes com a ordem expressa: “Luiz Gonzaga está terminantemente proibido de cantar”. Anos mais tarde, Fernando iria se penitenciar à autora de “Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga” (Ed. 34, 1996), Dominique Dreyfus: “(...) um crime imperdoável cometido por mim. (...) Eu era um menino de trinta e poucos anos e já era diretor de rádio. Então eu achava que tudo tinha que encaixar com a disciplina”.
O episódio não deixaria mágoas – tanto que o Rei do Baião gravaria, em 1950, uma mazurca de Fernando Lobo e Evaldo Rui de bastante sucesso, “Chofer de praça”, cuja divertida letra faz alusão à Gruta da Imprensa, na Avenida Niemeyer, onde se posicionavam os jornalistas que cobriam as antigas corridas de carro do Circuito da Gávea – e também onde, reza a lenda, casais costumavam se encontrar para encontros fortuitos.
O “carioquizado” Fernando Lobo – que, em 1972, receberia formalmente o título de Cidadão do Estado da Guanabara – não deixava de lado os ritmos de sua terra natal, e o pernambucano Manezinho Araújo parecia ser a dupla perfeita nessas ocasiões: são deles, por exemplo, o baião “Tamanqueiro”, na graciosa interpretação de Marlene, e o coco “Vapô de Carangola”, pelas não menos irresistíveis Adelaide Chiozzo e Eliana Macedo.
O autor que começou fazendo sambas no Recife deixaria sua marca nesse gênero também no Rio dos anos 1950, muitas vezes ao lado de Paulo Soledade, como em “Saudade do samba” – gravado por Mário Reis em 1951, no seu segundo retorno às atividades artísticas, após delas se retirar em 1936 – e no sambão “Já é noite” (com Nestor de Holanda também figurando na parceria). Mas, como aponta Ruy Castro, o samba-canção “Era a música da época, a música a ser feita”. E foi o que fizeram Paulo e Fernando, legando ao gênero preciosidades como “Quanto tempo faz” (por Nora Ney), “Monotonia” e “Meu pecado não” (ambas pela voz de Linda Batista). Outro na mesma linha foi “Siga”, assinado por Fernando e Hélio Guimarães, gravado em 1956 pelo Trio Irakitan e por Neuza Maria e em 1957 por Cauby Peixoto.
Neste ano, ganhou um LP de 10 polegadas para chamar de seu: “Música e poesia de Fernando Lobo”, da Copacabana, com oito de seus sucessos interpretados por Elizeth Cardoso, Heleninha Costa e Carminha Mascarenhas (esta última, uma cantora descoberta por ele). Foi também o ano em que passou a trabalhar na televisão, sem abandonar a mídia impressa. Na virada da década, ainda veria os últimos registros de músicas suas em discos de 78 rotações: o samba “Vai querer” (1960), com Hianto de Almeida, e o bolero “Por favor, eu lhe peço” (1961), em dupla com Marino Pinto.
Cronista, relações-públicas da Odeon, diretor da Companhia Brasileira de Discos, jurado do programa de Flávio Cavalcanti na TV, pintor nas horas vagas... Encontrava-se em plena atividade nos anos 1960, época em que seu filho Edu começava a despontar na MPB, vencendo em 1965 o 1º Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior com “Arrastão”, parceria sua com Vinicius de Moraes, velho amigo da família. Fernando já era então – e com manifesto orgulho – o “pai do Edu”: “Eu tenho em casa quem faça muito melhor do que eu”, afirmou à Revista do Rádio (09/11/1963). Mesmo se dizendo “aposentado” da música, ainda teve fôlego para concorrer com a pernambucaníssima “Diana pastora” (parceria com João Mello) no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1967 – vencido justamente por seu filho Edu e por Capinam com “Ponteio” – e participar do 5º Festival da Record em 1969, do qual foi finalista com o maracatu “Sou filho de rei”, novamente em dupla com João Mello.
Com o filho, Edu Lobo, em fotografia reproduzida do fascículo “História da Música Popular Brasileira – Edu Lobo” (Abril Cultural, 1971)
Em suas últimas décadas de vida, produziu e apresentou diversos programas na televisão – chegou a dirigir o departamento musical da TV Educativa – e se destacou como autor de livros infantis. No Jornal do Commercio, escreveu para a seção Revista Nacional até meados de 1996, quando precisou se licenciar por problemas de saúde. Vítima de um tumor cerebral, faleceu no seu apartamento de Copacabana em 22 de dezembro de 1996, aos 81 anos. O texto do release replicado por vários jornais cariocas no dia 24 de dezembro chamava a atenção para um fato inusitado ocorrido durante o sepultamento no São João Batista, em Botafogo: “A chuva fina, em pleno verão carioca, foi a homenagem inesperada ao autor do clássico da MPB ‘Chuvas de verão’”.
Fernando não partiria sem antes se tornar parceiro de um familiar muito próximo – não Edu, mas o filho deste, Bernardo. Ao Diário de Pernambuco (26/07/2015), Bena Lobo – que tinha 24 anos quando Fernando faleceu – recordou a história. No restaurante Arlequim, durante um almoço de família, ele colocou o avô na parede: “Quando vamos fazer uma parceria?”. Na mesma hora, o veterano autor começou: “Se você me chamar, eu vou / Se você me quiser, estou / No mesmo lugar vou ficar / Do jeito que sou, eu sou”. Terminaria a letra um tempo depois, mas não veria gravada a canção, intitulada “Eu vou”, musicada pelo neto e cantada por este em seu primeiro álbum, “Nada virtual” (2000). “Ele era autodidata, fazia música sem instrumento”, recordou Bena Lobo na reportagem. Talento de um craque que, nas palavras de Tárik de Souza no Caderno B do Jornal do Brasil de 24/12/1996, “deixou uma obra musical pequena mas influente”.
Imagem principal: Fernando Lobo em fotografia de Joel Maia, reproduzida do fascículo “História da Música Popular Brasileira – Antônio Maria e Fernando Lobo” (Abril Cultural, 1982)