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    ‘Com que roupa?’, perguntava Noel Rosa no samba sobre um ‘Brasil de tanga’ que, há 95 anos, foi seu primeiro grande sucesso

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas


    – Espera aí, Noel. Este samba não pode ser publicado.
    – Ora essa, por quê?
    – Porque isso não é samba, é o Hino Nacional!

    O diálogo, reproduzido com pequenas variações tanto no fascículo “História da Música Popular Brasileira” (Abril Cultural, 1970) quanto no livro “Noel Rosa: uma biografia” (UNB/Linha Gráfica Editora, 1990), de João Máximo e Carlos Didier, aconteceu entre o sambista de Vila Isabel e o maestro Homero Dornellas. Era isso mesmo: a melodia da primeira frase – “Agora vou mudar minha conduta” – da música de Noel era exatamente a mesma do início do hino de Francisco Manuel da Silva e Osório Duque Estrada: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”... Nada que Dornellas não pudesse resolver num estalo, trocando umas notas aqui e ali.

    “Plágio? Evidentemente que não. Nenhum compositor, nem mesmo o mais desfaçado [descarado], ousaria tanto. Distração? Pouco provável. Noel, que adora solar o ‘Hino Nacional’ ao violão e desde o [colégio] São Bento vive fazendo paródias sobre sua melodia, dificilmente não perceberia a semelhança. Coincidência? Quem acreditaria? (...) Quem sabe Noel pretendeu mesmo fazer esta citação quase literal à melodia do ‘Hino Nacional’? A resposta há de morrer com ele”, indagam Máximo e Didier.

    Os biógrafos do compositor, no entanto, arriscam um palpite: “Mas, quando se observa que não apenas o primeiro verso, mas toda a letra de ‘Com que roupa?’ cabe perfeitamente na música de Francisco Manuel da Silva, sílaba por sílaba, nota por nota, torna-se ainda mais provável a hipótese de que as coisas – como o próprio descobrimento do Brasil – não aconteceram por acaso. E que muito possivelmente o samba nasceu como mais uma entre tantas paródias do ‘Hino Nacional’, em cima da qual Noel teria retrabalhado, alterando a melodia e mantendo apenas a citação do primeiro verso”.

    Até aquele final de 1929, o jovem Noel Rosa – prestes a completar 19 anos, em 11 de dezembro – ainda não era nem de longe um nome conhecido. Suas duas primeiras composições a chegarem ao disco, somente em agosto de 1930, gravadas por ele, seriam “Minha viola” e “Festa no céu”, uma embolada e uma toada, bem ao gosto do repertório nordestino que então fazia sucesso no Rio de Janeiro, respaldado por grupos como o Bando de Tangarás, do qual Noel fazia parte, ao lado de seus colegas Almirante, João de Barro (o Braguinha), Alvinho e Henrique Brito.

    “Há muito de original nas letras de seu primeiro disco como solista. Musicalmente, porém, tanto ‘Festa no céu’ como ‘Minha viola’ pouco têm de carioca. (...) Mas Noel Rosa é do Rio de Janeiro. Carioca impenitente, acaba concluindo que é mesmo o samba o idioma em que melhor poderá expressar suas ideias e sentimentos, seu cotidiano, sua realidade”, escrevem Máximo e Didier. Noel provavelmente já tinha se dado conta disso naquele final de 1929, quando foi flagrado por seu tio Eduardo – irmão de Martha, sua mãe – cantando e se acompanhando ao violão. Ao ser indagado pelo tio – “Que música é esta, Noel?” –, respondeu: “Um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga”.

    Noel teria explicado ao tio – como relatam Máximo e Didier – que “seus versos procuram retratar, ainda que metaforicamente, um país ilhado em pobreza, a fome e a miséria alastrando-se como praga. (...) É de um país à beira da indigência, desnudado pela penúria, maltrapilho, de tanga, que Noel fala em seu samba. A tio Eduardo, contudo, tranquiliza: ‘Mas eu não sou bobo de ficar dizendo essas coisas por aí’”. E não diria mesmo, como se verá mais adiante.

    “(...) ‘Com que roupa?’ é obra formalmente nova, revolucionária quase. (...) Revolucionária porque representa um começo de rompimento dos jovens compositores de classe média – Noel e só depois dele o Bando de Tangarás – primeiro com o pseudo-sertanejo e logo em seguida com o samba amaxixado que a partir de 4 de agosto de 1930, quando morre Sinhô, vai morrer também”, explicam Máximo e Didier, que continuam: “‘Com que roupa?’ nasce perfeitamente identificado com os arrojos formais dos sambas do Estácio de Sá. Se não parecerá tanto, será porque os acompanhamentos instrumentais de suas duas primeiras gravações – uma de regional, outra de orquestra – ainda estarão muito afinadas pelo diapasão do maxixe”.

    Mayra Pinto, em “Noel Rosa: o humor na canção” (Ateliê Editorial, 2012), concorda: “A obra de Noel Rosa é tributária em muitos aspectos do novo samba que estava sendo criado pelos compositores negros cariocas, sobretudo pelo conhecido grupo do Estácio. Esse tipo de samba surgiu no mundo do disco, praticamente, no mesmo momento em que Noel compôs suas primeiras canções”. Com relação a “Com que roupa?”, a autora observa: “Aqui a obra noelina vai ampliar as possibilidades artísticas do gênero com um tratamento estilístico e discursivo verdadeiramente inovador; o humor e a ironia somados a uma poética do tom coloquial se transformarão em elementos marcantes não só de sua obra, mas de boa parte da produção da canção popular brasileira”.

    Certamente nada disso passava pela cabeça do jovem sambista quando ele, em companhia de dois de seus colegas dos Tangarás, Almirante e João de Barro, foi à residência de Homero Dornellas, na Rua Torres Homem, em Vila Isabel, para que este passasse seu samba para a partitura. De acordo com Máximo e Didier, João de Barro teria apresentado Noel ao maestro dizendo: “Este rapaz aqui fez um samba interessantíssimo, Homero. E nós queremos lançá-lo para o Carnaval”. Dornellas sentou-se ao piano, Noel cantou o samba acompanhando-se ao violão e, após o episódio do “Hino Nacional”, o samba é finalmente passado para a partitura – anos mais tarde, a melodia original da primeira frase de “Com que roupa?” (a que remetia ao nosso hino pátrio), escrita na pauta musical por Homero Dornellas, seria publicada pela Revista da Semana em sua edição de 15/11/1952.

    Primeiras notas originais do samba, remetendo ao ‘Hino Nacional Brasileiro’, na grafia de Homero Dornellas – Revista da Semana, 15/11/1952 (Reprodução da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)

    “Com que roupa?” era uma gíria da época que, mais do que expressar falta de dinheiro, significava “de que maneira?”, “de que jeito?”. “Desde 1927 crescia no Rio de Janeiro o uso da nova expressão ‘com que roupa’”, informa Almirante no livro “No tempo de Noel Rosa” (Francisco Alves, 1977, 2ª edição). O samba do estreante Noel tinha tudo para ser o grande sucesso do Carnaval de 1930... mas não foi. Por causa de uma decisão de Almirante, ele precisaria esperar um ano até ser lançado. Naquele dia, na Rua Torres Homem, logo após passar a música para a pauta, Dornellas resolveu mostrar ao trio de Tangarás um samba que começara a escrever.

    “Na Pavuna, na Pavuna, tem um samba que só dá gente reiúna...”. O refrão impressionou Almirante. Ali mesmo, na presença de Braguinha e Noel, trabalhou com Dornellas na segunda parte. “Em minutos chegam ao resultado. Simples, mas carnavalesco”, contam Máximo e Didier, assinalando que Almirante, antevendo “o êxito do novo samba”, e como líder dos Tangarás, disse a Noel que “Com que roupa?” teria que esperar, porque aquele próximo Carnaval seria – como de fato realmente foi – o de “Na Pavuna” (cuja história contamos neste post), de autoria dele e de Homero (que assinaria a música sob o pseudônimo Candoca da Anunciação). Noel, contrariado, não teve outra opção senão acatar, utilizando outra gíria da época, cujo significado podia tanto ser “mete a cara”, “vá em frente”, quanto algo, digamos, mais escatológico: “Mete a vela, Almirante!”.

    “Observadores políticos atentos não cairão em nenhuma das armadilhas que Noel prepara nas muitas entrevistas que dá, em cada uma delas contando uma história diferente, camuflando sempre a verdadeira gênese de ‘Com que roupa?’, confessada a tio Eduardo”, escrevem Máximo e Didier, que publicam em seu livro algumas dessas invenções fantasiosas espalhadas por Noel. “(...) uma, daqui a quase quatro anos, se tornará uma espécie de versão oficial. (...) esta versão, talvez por seu tom pitoresco, caricato, será repetida como a verdade das verdades”.

    Tal história, replicada anos a fio por diversos órgãos da imprensa, dizia que a música havia surgido depois de dona Martha esconder todas as roupas do filho a fim de evitar que ele, boêmio inveterado, continuasse saindo de casa noite após noite. De acordo com essa fantasia, quando os amigos bateram em sua porta chamando-o para a gandaia, Noel teria dito: “Mas com que roupa?”. Mal terminara a frase, teria vindo a inspiração para o samba. “A história tem a consistência do farelo”, já rebatia Almirante na Revista da Semana de 15/11/1952, quase quatro décadas antes da biografia escrita por João Máximo e Carlos Didier.

    Noel gravou o samba no dia 30 de setembro de 1930 no estúdio da Odeon, acompanhado não pelos Tangarás, mas pelo Bando Regional (como aparece no rótulo do 78 rotações), um trio formado, segundo Luís Filipe de Lima em “Para ouvir o samba: um século de sons e ideias” (Funarte, 2022), “pelo bandolim de Luperce Miranda e mais dois violões, um deles não identificado, e o outro, o violão de sete cordas pioneiro de Tute (Arthur de Souza Nascimento)”. Com direito a uma participação não combinada: a do diretor musical da Casa Edison. “No final da gravação o maestro Eduardo Souto, de improviso e um tanto distante do microfone, proferiu a frase que os ouvintes do disco acreditaram tratar-se de palavras inconvenientes: ‘Vai de roupa velha e tutu, seu trouxa!’”, conta Almirante em seu livro. “Com que roupa?” foi lançado em novembro pelo selo Parlophon no segundo disco de Noel (de número 13245), trazendo, na outra face, o samba “Malandro medroso”, do mesmo autor. Mas foi mesmo “Com que roupa?” que estourou.

    “Este samba, desde logo, registrou desusado sucesso, apresentando-se como um dos mais prováveis êxitos do Carnaval que aí vem”, profetizou Cruz Cordeiro, crítico da Phono-Arte (edição nº 49, de 30/12/1930), que prosseguia: “Ao nosso ver, a grande aceitação do samba de Noel, que todo o Rio já sabe de cor, reside na originalidade da letra e no sabor esquisito do ritmo, dentro do qual a letra está magnificamente enquadrada. (...) Enfim, secundando a opinião pública, enviamos daqui os nossos parabéns a Noel Rosa pela originalidade e engenhosidade de seu samba (...)”. Ou seja: um mês após lançado, “Com que roupa?” já causava furor entre os cariocas.

    Dedicada ao jornal Diário da Noite, conforme informação encontrada na partitura original publicada pela Editora Mangione, a composição acabaria trilhando o caminho de tantas outras daquela época, como explica Almirante: “Sem prever o sucesso do ‘Com que roupa?’, Noel Rosa vendeu os dois sambas pela quantia de 180 cruzeiros [ou 180 mil réis, segundo Máximo e Didier] aos cantores do Teatro Municipal, o baixo Ignácio Guimarães, que nas gravadoras usava o nome I. G. Loyola e popularizou-se também como Ximbuca, e Paulo Rodrigues, ambos locutores da Rádio Sociedade”. Cada um comprou um samba, explicam os biógrafos de Noel, informando ainda que o 78 rotações acabaria vendendo mais de 15 mil cópias: “pelas duas faces de um disco que teve venda formidável, Noel Rosa não recebeu um tostão além do que lhe foi pago pelos dois cantores”.

    Já em 11 de dezembro, segundo o Diário de Notícias desta data, Noel Rosa e Ignácio Guimarães, “artistas exclusivos da Parlophon”, mostravam a composição na Rádio Educadora. Com o disco de Noel conquistando a cidade, Guimarães – o novo proprietário de “Com que roupa?” – tratou de registrar no acetato sua própria versão (tendo o auxílio luxuoso de Noel nos contracantos e o acompanhamento da Orquestra Guanabara), lançada no disco Parlophon 13269 em janeiro de 1931. Ximbuca cantou uma estrofe inédita feita para ele por Noel, a do português que foi-se embora no navio Adamastor, famoso cruzador da marinha de Portugal “cujo nome homenageia o titã cantado por Luís de Camões em ‘Os Lusíadas’”, como informam Máximo e Didier. Nessa mesma versão, Noel transformou o “meu terno” da letra original em “meu paletó”.

    Os rótulos dos 78 rpm das duas primeiras gravaçoes de 'Com que roupa?': os discos Parlophon 13245 (com Noel Rosa como solista) e 13269 (com I. G. Loyola e Noel) / Ambas as imagens reproduzidas da Coleção Leon Barg / IMS

    Para o crítico de A Voz do Violão (edição de fevereiro de 1931), a primeira gravação era superior: “Basta notar-se a preferência que o público dispensou ao ‘Com que roupa?...’, de Noel Rosas [sic] – indiscutivelmente o samba de maior êxito do Carnaval que passou –, cantado com acompanhamento de violões; o mesmo ‘choro’ gravado por um conjunto orquestral não conseguiu agradar tanto”. Não havia exagero nas palavras do cronista desconhecido: “Com que roupa?” simplesmente abafou a banca nos festejos de Momo. Nem foi preciso chegar o Carnaval: ainda em janeiro, o samba havia irrompido feito um furacão. “É o samba da época. (...) é a música que vai ser cantada em toda a cidade, que já a sabe de cor e pergunta, indecisa, olhando seus vestuários: ‘Com que roupa eu vou / Pro samba que você me convidou?’”, escrevia um jornalista no Diário da Noite em 19/01/1931.

    Basta uma consulta aos periódicos da época para se ter uma ideia do efeito causado por “Com que roupa?” – usando uma expressão atual, foi o maior “meme” de 1931. Matérias e reportagens diversas – inclusive políticas, policiais e esportivas – tascavam a expressão em seus títulos, significando “de que jeito”? “De que modo”? “De que maneira”? Muitos chargistas aproveitaram o mote em seus desenhos. Incontáveis paródias do samba – que teria nascido ele mesmo como uma paródia do nosso hino – se multiplicavam na imprensa, como atestava o Diário de Notícias de 27/01/1931: “‘Com que roupa’ tornou-se popularíssimo, e assim é que todos os dias vão aparecendo outros, com letras diferentes, mas com a mesma música”.

    Foi parar também no teatro: a 9 de janeiro, estreava no Recreio a peça “Deixa essa mulher chorar”, com o quadro “Com que roupa?” encenado por “Arthur Costa e girls” no segundo ato, de acordo com o Diário Carioca daquele dia. Em 23 de janeiro, a Companhia Mulata Brasileira levou ao palco do República a burleta de costumes intitulada exatamente “Com que roupa?”, escrita por Luiz Peixoto. Mais tarde, em abril, o samba estaria novamente em cena no Recreio, desta vez na revista “Café com música”, de Eratóstenes Frazão, Maciel Pereira e Leo Grim.

    Dois blocos de Carnaval tiveram seus nomes inspirados pelo samba: o Com Que Roupa?, de Petrópolis – cidade da região serrana do estado do Rio –, como informava o Diário de Notícias de 15/01/1931, e o Com Que Roupa Eu Vou?, de Cascadura (Jornal do Brasil, 13/02/1931). Também o Diário de Notícias, em 06/02/1931, anunciava a apresentação do conjunto Jazz Com Que Roupa – provavelmente de músicas brasileiras, apesar do nome. Antes da folia de Momo – o sábado de Carnaval de 1931 caiu no dia 14 de fevereiro –, diversos periódicos (entre eles o Diário de Notícias dos dias 8 e 9, A Noite do dia 9 e o Diário da Noite do dia 12) publicaram enormes anúncios publicitários da Casa Mathias – que tinha “o mais formidável sortimento de artigos para o Carnaval” – com direito à transcrição integral da letra do samba de Noel.

    Edigar de Alencar, em seu livro “O Carnaval carioca através da música” (Francisco Alves, 1979, 3ª edição), conta uma curiosidade sobre “o maior sucesso do Carnaval de 1931”: “Em Copacabana, em plena Avenida Atlântica, era transmitido aos sábados e domingos que precediam o tríduo folião, através de possantes alto-falantes postados nas fachadas dos clubes Atlântico (Posto 6) e Praia Clube (Posto 4)”. O que também aconteceu em outros bairros da cidade, como a Tijuca, segundo Máximo e Didier. Ou seja, o samba estava na boca do povo da zona Sul à zona Norte do Rio.

    No domingo de Momo (dia 15), o Diário de Notícias trazia, além da primeira caricatura retratando Noel publicada na imprensa – onde ele é mostrado pelo cartunista Álvaro Cotrim, o Alvarus, vestindo uma roupa de retalhos –, uma extensa reportagem com o compositor de “apenas 20 anos de idade”. Ele falou (sem mencionar o “Brasil de tanga”) sobre o sucesso da música-coqueluche do Brasil, agradecendo os conterrâneos “pela bondade com que receberam aquele samba” e explicando que “Com que roupa?” não fazia necessariamente alusão ao povo, mas era “uma pergunta que se aplica a diversos casos. Por exemplo: se um camarada está sem dinheiro (...). Se precisa resolver qualquer assunto intrincado, sem descobrir os meios para tal, recorre ainda à mesma interrogação”.

    Noel Rosa e 'Com que roupa?' nos traços de Alvarus (sua primeira caricatura na imprensa, publicada no Diário de Notícias de 15/02/1931) e Nássara (reproduzida do livro 'Noel Rosa: uma biografia', de João Máximo e Carlos Didier)

    Na terça de Carnaval, dia 17, o Diário Carioca não deixava dúvidas sobre o sucesso estrondoso da música, contando que, durante o desfile do É Na Batata!, em Madureira, “Cerca de 500 populares acompanhavam o bloco cantando o samba: ‘Com que roupa?’”. O número apontado pelo jornal Beira-Mar do dia 22 era ainda mais impressionante. A matéria sobre o baile a fantasia organizado pelo Tijuca Tennis Club no Hotel Glória dizia: “E imaginem os leitores três mil pessoas integradas em um mesmo barulho, barulho da mesma alegria... (...) imaginem essas três mil pessoas cantando com a malícia brasileira Com que roupa, com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?...”.

    O Carnaval passou, mas o samba ficou. Foi o título de um conto de Othon Costa publicado na Fon-Fon de 21 de março daquele ano. Propagandas variadas – especialmente de lojas de vestuário e tinturarias – seguiram usando o nome do samba como chamariz. Na edição de 27/08/1932, O Cruzeiro publicou a primeira página da partitura original do samba, com a letra e uma fotografia de Noel. Mesmo após o falecimento deste, em 04/05/1937, a publicidade especializada continuou se aproveitando do mote para vender seus produtos: “Com que roupa? Podeis escolher!... Temos milhares de ternos de casimira ou brim que vendemos desde 20$000”, bradava o anúncio da Tinturaria Aliança na Vida Carioca de junho de 1940.

    Em reportagens sobre moda, a expressão viraria lugar-comum, usada incontáveis vezes (até os dias de hoje, diga-se). Mas a gíria – sempre com o significado “de que maneira”, “de que jeito” – continuaria aparecendo regularmente em jornais e revistas por muitas décadas, como num anúncio do Banco do Nordeste do Brasil publicado na imprensa em 1971: “O Nordeste precisava fortalecer-se, enriquecer, progredir. Com que roupa? A Sudene deu a resposta”. Também Nelson Rodrigues, em sua coluna no Jornal dos Sports (22/02/1980), faria uso dela ao recordar um episódio de sua infância: “A santa senhora quase morreu. Disse, porém, durante a dispneia pré-agônica: – ‘Vou me vingar’. Matar como e com que roupa?”.

    Nas bocas: 'Com que roupa?' como mote para anúncios, como os dois nas extremas esquerda (A Tribuna, de Santos, 31/08/1931) e direita (A Batalha, 28/02/1932) da montagem, e para notícias, como as duas no centro: a do alto (A Batalha, 15/02/1931) e a de baixo (JB, 14/01/1932)

    Voltando ao samba, duas estrofes não levadas ao disco foram apresentadas por Almirante em seu livro, cuja primeira edição chegou às lojas em 1963. Segundo ele, estes versos teriam sido cantados por Noel em programas de rádio, graças à facilidade que o Poeta da Vila tinha para inventá-los. Em 78 rotações, “Com que roupa?” ganharia apenas mais três registros, todos feitos após o falecimento de Noel.

    Aracy de Almeida, quando gravou a série de bolachinhas para a Continental que reabilitaria o Filósofo do Samba e o traria de volta à cena musical do Brasil, lembrou-se de fazer a sua interpretação do samba em 1951, com acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra de cordas e das vozes dos trios Madrigal e Melodia. Já outro trio, o Surdina – com Fafá Lemos no violino e nos vocais, Chiquinho no Acordeom e Garoto (Aníbal Augusto Sardinha) no violão –, mostrou em 1955 a mesma gravação duas vezes em discos Mocambo, sendo que, num deles, ela aparece logo depois de outro clássico de Noel, “Conversa de botequim” (com Vadico). Este mesmo fonograma de “Com que roupa?” havia sido lançado pelo grupo em 1953 no long-playing de 10 polegadas “Trio Surdina interpreta Noel Rosa e Dorival Caymmi”.

    Aliás, ao contrário da época dos 78 rpm, o samba teve uma bela trajetória em LPs desde 1952, quando apareceu no 10 polegadas “Poeta da Vila”, de Marília Batista – numa versão semi-instrumental, com um coro cantando apenas o refrão. São tantas as gravações feitas desde então que fica impossível citar todas. Em 1955, esteve presente nos discos de 10 polegadas “Sucessos em desfile nº 2”, da pianista Carolina Cardoso de Menezes, e “Noel Rosa na voz romântica de Nelson Gonçalves”. A Turma da Bossa deu-lhe um arranjo mais moderno no LP “Sambas de bossa nova”, de 1959. O clássico de Noel também fez parte dos álbuns “Apresentando Rosinha de Valença” (1964) – de novo com uma batida bem bossa-novista –, “Elza, Miltinho e samba” (1967), do “Songbook Noel Rosa”, de 1991, na voz de Gilberto Gil, e do CD “Viva Noel”, de 1997, revigorado por Ivan Lins com um arranjo muito bem sacado do grupo Coreto Urbano.

    Já no século 21, vamos encontrar o samba em mídias e roupagens (com trocadilho) mais contemporâneas. Os craques Gilson Peranzzetta e Mauro Senise deram sua contribuição no CD “Noel Rosa – 100 anos” (2011); a estilosa rapper Karol Conká o apresentou numa propaganda de automóvel em 2017; no ano seguinte, foi a vez de o pianista Diogo Monzo fazer uma leitura bastante pessoal da música no CD “Filho do Brasil – Piano solo”; o EP digital “Nos passos de Noel”, de 2020, trouxe a versão meio fox, meio blues dos Salvadores Dali; em 2023, uma das tais estrofes cantadas no rádio por Noel Rosa foi resgatada pelo Brasøv no álbum “Brasøv Noel” – lançado em dezembro, combinando bem com o duplo sentido do título –, que misturou, nessa faixa, o suingue do grupo com o vocal afiado do sambista Pedro Miranda; mais recentemente, neste 2025, Moisés Navarro deu sua contribuição no CD “Silêncio de um minuto”; também do mesmo ano é a supermodernosa versão de Carlos Careqa e Marcio Nigro apresentada no EP digital “Com que roupa?”.

    “Com que roupa... eu vou? Pro samba que você me convidou” foi o enredo sobre arte e moda que a escola de samba Porto da Pedra, de São Gonçalo, levou em 2010, ano do centenário de nascimento de Noel Rosa, à Avenida – onde os exorbitantes preços dos ingressos contrastam, assim como tantos outros exemplos encontrados pelos quatro cantos desse nosso enorme país, com o “Brasil de tanga” cantado por Noel. Um Brasil que, mesmo tendo saído neste 2025 do Mapa da Fome da ONU (coisa boa!), precisa ainda olhar com carinho para os rotos e maltrapilhos que possui, com seus farrapos, retalhos, trapos, andrajos, ternos e paletós diariamente virando estopa...

    Na foto principal: a capa da partitura original de 'Com que roupa?', editada pela Mangione (Coleção José Ramos Tinhorão/IMS)

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