“Vestiu uma camisa listada e saiu por aí”, canta Carmen Miranda neste samba-choro que é até hoje um dos maiores sucessos da própria cantora e de seu autor, Assis Valente.
Apesar das dezenas de regravações, existem pouquíssimas versões da música em 78 rotações: a mais famosa, eternizada pela Pequena Notável, foi gravada em 20 de setembro de 1937 e lançada em disco dois meses depois pela Odeon, no lado B de “Fon fon” (de João de Barro e Alberto Ribeiro); outra surgiu em 1938, na voz do tenor italiano Daniele Serra, que a interpretou em português com forte sotaque, tropeçando às vezes nas palavras – gravação curiosíssima, com nítida inspiração naquela feita anteriormente por Carmen (disponível neste link do YouTube); e mais uma chegou em 1955, instrumental, com Carolina Cardoso de Menezes ao piano. Mas estes três não foram os únicos registros fonográficos do samba feitos naquele período. Houve um quarto: o original.
Ao contrário do que muitos pensam, não foi Carmen Miranda – que o compositor baiano considerava sua cantora preferida – a primeira intérprete de “Camisa listada” em disco. A primazia coube às Irmãs Pagãs, Rosina e Elvira (o centenário desta última foi lembrado neste post), frequentadoras da casa de Assis Valente em Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
“Foi ali que eu conheci as Irmãs Pagãs, numa festa em casa de Assis. Ele andou arranjando uns contratos para elas, me pediu para colocá-las num show no Cine Teatro Glória”, recordou-se o cantor – ex-integrante do Bando da Lua –, compositor e produtor Aloysio de Oliveira em depoimento ao livro “A jovialidade trágica de Assis Valente”, de Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes (Martins Fontes/Funarte, 1988). As irmãs gravaram o samba-choro para a Victor em 30 de abril de 1937, cinco meses antes de Carmen. No verso do disco de prova, havia “O samba começou”, também de Assis Valente.
Segundo Ruy Castro na biografia “Carmen” (Companhia das Letras, 2005), a Victor não teria gostado da interpretação de Elvira e Rosina, inutilizando o disco de prova – mas “O samba começou” seria lançado comercialmente em julho de 1937, tendo, do outro lado, “Tristeza”, parceria de Assis com Zequinha Reis, também na voz das Pagãs, que o gravaram no mesmo dia dos outros dois, 30/04/1937, conforme atesta o livro de registros da Victor, pertencente ao acervo do jornalista, colecionador e pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez (leia sobre ele aqui) – nota-se que, no livro, o samba-choro também foi “cancelado”, ou melhor, completamente riscado, conforme se pode ver na imagem abaixo.
Ruy Castro conta que “Camisa listada” ficaria esquecido até Assis Valente mostrá-lo para Carmen, que ficou empolgada e o levou para o disco. O êxito alcançado pela Pequena Notável teria deixado as Pagãs inconformadas: este poderia ter sido um sucesso delas. Nas palavras de Ruy: “Ficaram tiriricas porque sua gravação do samba fora rejeitada e destruída, enquanto a de Carmen era um abafa”. Mas esta mesma gravação pode ser ouvida na playlist abaixo. Como, se teria sido destruída?
Quem explica é o próprio Nirez, dono da preciosidade: “Havia um senhor que morava vizinho à RCA Victor e sempre ‘visitava’ seu lixo e conseguiu muitas provas de matrizes interessantes, eu consegui com ele, mas ele não sabia nada, era apenas um curioso. Minha sorte foi ele vir morar no Ceará e trazer essas provas”. Segundo Nirez, a matriz das Pagãs teria sido rejeitada pelo próprio compositor, “porque ele queria que fosse gravado pela Carmen Miranda”. Assis, no entanto, deu a entender que nada tinha a ver com essa decisão em entrevista à PRANÓVE (revista da Rádio Mayrink Veiga) de agosto de 1940: “É de ontem o sucesso do meu ‘Camisa listada’, que, gravado pelas Irmãs Pagãs, foi lançado à venda na praça e imediatamente refugado. Por quê? Não sei”. Contou ainda que o samba rendeu a ele 60 contos de réis: “E eu fiquei muito satisfeito, pois ganhei para algumas camisas... de seda...”.
“Camisa listada” não é uma composição carnavalesca, mas remete a uma cena típica dos Carnavais de outrora: o folião que, sem pedir licença à companheira, pega “emprestado” um saco de água quente (que vira chupeta), a cortina de veludo (uma saia), a combinação – espécie de camisolinha de alças – da mulher, um cabo de vassoura (estandarte), se veste de foliona e vai para o bloco, com “um canivete no cinto e um pandeiro na mão”. A história é contada do ponto de vista feminino – e a narradora mostra-se obviamente contrariada com a fanfarronice do seu “querido” (como ela o chama na letra).
O hoje clássico samba obteve o primeiro lugar, nesta categoria, no concurso de marchas e sambas da prefeitura do Rio, que premiou as favoritas do Carnaval de 1938. Mas a decisão final foi anulada e, sob protestos de alguns órgãos da imprensa e com o apoio de outros, refez-se a votação. A composição acabou ficando em terceiro lugar. Perdeu para “Juro” (de Haroldo Barbosa e Milton de Oliveira) e “Sorrir” (da dupla Bide e Marçal), dois ótimos sambas, hoje relegados ao esquecimento – enquanto a criação de Assis Valente permanece eterna.
A inclusão da música entre as vencedoras foi contestada por alguns cronistas. O da Gazeta de Notícias de 27/02/1938 protestou: “Não é preciso ser técnico nem pertencer a uma comissão julgadora para saber que ‘Camisa listada’ não é samba de Carnaval e sim um ‘choro’ lançado na sua época própria e que fez o sucesso que merecia”. Julio de Oliveira, n’A Batalha de 03/03/1938, escreveu: “O samba de Assis Valente é muito bonito, muito interessante e muito bem feito. Mas não é samba carnavalesco. E o concurso foi instituído para premiar as músicas mais popularizadas no Carnaval”. Algumas fontes afirmam que o samba se destacou durante a festa de Momo, mas F. G., na Revista da Semana de 31/12/1938, deu a entender que não foi bem assim quando falou de “‘Camisa listada’, das mais lindas músicas de Assis Valente, na interpretação maravilhosa de Carmen Miranda, que deixou de pegar apenas por haver-se antecipado muito ao tempo próprio”.
O sucesso da composição, no entanto, é incontestável – e rendeu uma dor de cabeça para Assis, que foi acusado maldosamente de tê-lo comprado de sambistas do morro. Contrariado, procurou o jornal O Globo, que publicou uma extensa matéria com ele em 02/12/1937. Ali, o baiano desafiou seus anônimos detratores: “Acho indecorosa essa acusação gratuita e resolvi financiá-la. Darei cinco contos [de réis] de prêmio ao interessado que provar que o autor do samba é outro que não o seu criado, obrigado...”. Ninguém jamais apareceu para contradizê-lo. Na mesma entrevista, Assis lembrou que o samba estava pronto havia muitos meses e que “a Victor fez dele um negativo com as Irmãs Pagãs. Como ninguém gostasse do samba, ele voltou para o arquivo e lá ficou”. E questionava: “É curioso que agora estejam falando nos donos do meu samba...”.
Na sua versão de “Camisa listada”, as Pagãs se apresentam a duas vozes, com a afinação, a graciosidade e a bossa que lhes eram peculiares, num andamento mais ligeiro do que aquele que seria gravado por Carmen com o Grupo da Odeon. Há diferenças entre os dois fonogramas no que diz respeito às duas segundas partes: na primeira segunda parte, as Pagãs cantam “abriu meu guarda-roupa e carregou minha combinação”, enquanto Carmen prefere “abriu o guarda-roupa e arrancou minha combinação”, tal como aparece na partitura impressa pelos Irmãos Vitale em 1937.
A outra segunda parte foi registrada em disco somente por Carmen, naquela que passou a ser oficialmente a “primeira” gravação: “E agora que a batucada já vai começando / Eu não deixo e não consinto o meu querido debochar de mim / Porque se ele pega as minhas coisas, vai dar o que falar / Se fantasia de Antonieta e vai dançar ‘na’ Bola Preta até o sol raiar” (o correto seria “no Bola Preta”, como foi explicado nesse post sobre os 60 anos do hino do Cordão da Bola Preta). Fica a dúvida: já existia este pedaço da música na época da interpretação das Pagãs ou Assis Valente só o teria composto depois?
O post acima mencionado, sobre o hino do Bola, traz a curiosa história da marcha “Mamãe eu quero”, de Jararaca e Vicente Paiva, gravada por Almirante e Jararaca em 1936 para o Carnaval de 1937 e citada no samba de Assis Valente: “Tirou o seu anel de doutor para não dar o que falar / E saiu dizendo eu quero mamar / Mamãe, eu quero mamar...”.
Uma coisa os dois registros de “Camisa listada” possuem em comum: tanto Elvira e Rosina quanto Carmen pronunciam claramente “listada”, em vez do “listrada” que seria mais normal, fazendo pensar que pode não ter sido um erro de impressão do selo Odeon, como já se conjecturou, mas sim a intenção do compositor – que talvez desconhecesse a escrita correta da palavra, ou apenas procurou seguir a grafia adotada incontáveis vezes pela imprensa das primeiras décadas do século passado e mesmo no Século XIX (já em 1876 a expressão aparecia no Jornal do Commercio carioca, edição de 8 de janeiro) para tratar, no geral, da vestimenta dos jogadores de alguns times de futebol ou da indumentária típica dos malandros e marginais de então. Certo é que foi desse jeito que o samba-choro ficou conhecido – e, graças a um vizinho curioso, a sua gravação original, recolhida do lixo e salva do esquecimento, pode hoje ser escutada.
Foto: As Irmãs Pagãs na capa da revista Carioca / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS