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    Maringá, Maringá... Há 90 anos, estreava em disco a canção que virou nome de cidade

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “É comum no mundo inteiro cidades emprestarem seus nomes a canções. Difícil é uma canção inspirar o nome de uma cidade, como foi o caso de ‘Maringá’”. A frase usada por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello na abertura do verbete da composição, no volume 1 de “A canção no tempo” (São Paulo: Editora 34, 1997), dá o tom exato da façanha alcançada pela imortal criação de Joubert de Carvalho. Gravada por Gastão Formenti em 13/06/1932 em disco Victor, “Maringá” chegou às lojas em julho – há exatos 90 anos – contando a história da cabocla que deixou a cidade de Pombal, na Paraíba, numa leva de retirantes, fugindo da seca que assolava o sertão, tema tão recorrente na música popular brasileira, já abordado nos posts sobre “Adeus Maria Fulô” e “Asa branca”.

    Joubert de Carvalho, mineiro de Uberaba – onde nasceu em 1900 –, radicado no Rio de Janeiro desde os 19 anos e médico formado aos 25, com a idade de 32 já contabilizava dezenas de músicas gravadas desde 1922, entre as quais o megassucesso “Pra você gostar de mim”, lançado em fevereiro de 1930 por Carmen Miranda e que passaria à história como “Taí”, uma das mais famosas marchas de Carnaval de todos os tempos, cantada até hoje nos festejos de Momo.

    Em 1932, o doutor Joubert “pleiteava uma nomeação para o serviço público”, contam Jairo e Zuza, revelando que ele era, nesta época, “frequentador assíduo do gabinete do então ministro da viação, José Américo de Almeida”, escritor e poeta nascido em Areia, na Paraíba. No mesmo ano, como lembra Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, no livro “A história cantada no Brasil em 78 rotações” (Fortaleza: Edições UFC, 2012), os estados nordestinos foram assolados por uma grande estiagem, e o também paraibano “Ruy Carneiro, que era oficial de gabinete do então ministro da viação do governo Getúlio Vargas, José Américo, pediu ao compositor Joubert de Carvalho que compusesse uma canção abordando o tema ‘seca do Nordeste’”.

    Segundo Nirez, Joubert solicitou a Ruy Carneiro que lhe fornecesse “os nomes de algumas localidades para que ele pudesse citá-las”. Como lembrou o próprio compositor em 1974, em seu depoimento ao programa “MPB especial” da TV Cultura (recuperado pelo excelente canal Maringá Histórica do YouTube), ele primeiro perguntou a Ruy onde nascera José Américo – mas o nome Areia não o motivou. Após indagar a Ruy onde este tinha nascido – Pombal –, a inspiração começou a surgir ali mesmo na sala de espera do gabinete do ministro: “Antigamente, uma alegria sem igual dominava aquela gente da cidade de Pombal / Mas veio a seca, toda a chuva foi-se embora, só restando então as água dos meus óio quando chora”.

    Em seguida, pediu o nome de uma cidade “onde a seca foi tremenda”. Carneiro citou várias, dentre elas Ingá – e foi dessa que Joubert gostou, escolhendo já o nome da protagonista: Maria do Ingá. “Joubert de Carvalho, ao fazer os versos, juntou Maria, nome comum no sertão, e Ingá, que seria Maria do Ingá, transformando em Maringá”, escreve Nirez, explicando a origem do – até então inexistente – nome, contada pelo próprio Joubert em diversas oportunidades, como no “MPB especial” da TV Cultura.

    Depois de debutar em disco, a música ganhou os palcos: em novembro de 1932, no Cine-Teatro Broadway (ex-Cinema Capitólio, na Cinelândia, Centro do Rio), ela já era entoada pelo elenco da estreante companhia Novíssima, que levou à cena a peça “Plaquette”, de Henrique Pongetti, segundo contou o cronista L. no Jornal do Commercio do dia 21 daquele mês: “Começou o espetáculo pela ‘teatralização’ duma canção do Sr. Joubert de Carvalho, ‘Maringá’, executada por toda a trupe (...)”. Um anúncio publicado no Correio da Manhã de 20/11/1932 trazia os nomes dos seus intérpretes nesta cena de abertura: Laura Suarez, Ogarita del Amico, Lilian Paes Leme, Zoraide Aranha, Mário Salaberry, Pelópidas (futuro Paulo) Gracindo, Tinoco Filho e Luiz Barbosa (ele mesmo, o cantor e precursor do samba de breque que batucava em seu chapéu de palha).

    Entre 1932 e 1958, “Maringá” recebeu nada menos que 14 registros em 78 rotações. A começar pelos de Gastão Formenti (seu lançador), Carlos Galhardo (que a gravou depois de Formenti, em 1939, como “toada”, e fez uma releitura da canção em 1957) e Gilberto Milfont. Depois vieram Lyrio Panicalli e sua orquestra (cuja versão foi lançada duas vezes, pela Capitol em 1950 e pela Sinter em 1951), Carlos Ramirez (idem, pela Copacabana em 1950 e 1953) e Mário Gennari Filho (idem, pela Odeon duas vezes em 1951) – este último transformou a triste canção num vibrante baião, assim como fizeram Cardozinho e Pernambuco. Outras gravações foram as de Heitor Avena de Castro (o citarista a inseriu no pot-pourri “Seleções brasileiras”), Erwin Wiener (pianista, que a gravou em estilo fox-trot), Francisco Magno (outro que a puxou para o lado do baião), Heriberto Muraro (pianista, que “valseou” a música), Aloísio Figueiredo (o acordeonista a interpretou como tango) e Leo Marini.

    Duas destas versões são cantadas em espanhol: a de Carlos Ramirez, em seu registro com a Grande Orquestra Copacabana (aqui “Maringá” virou um bolero), e a de Leo Marini – cuja gravação, classificada no disco como baião, está mais para salsa –, desta vez com uma letra diferente, feita pelo uruguaio Horacio Basterra (que também usava o pseudônimo Horacio Sanguinetti). Esta última foi publicada em 24/02/1952 na revista Carioca, seção Variedades Musicais, assinada por Daniel Taylor.

    “Maringá, Maringá / Depois que tu partiste, tudo aqui ficou tão triste / Que eu garrei a maginá / Maringá, Maringá / Para havê felicidade / É preciso que a saudade vá batê noutro lugá...”. Obra-prima da nossa música popular, a composição revelou-se mais um sucesso retumbante de seu autor – que, pelo “serviço” prestado a Zé Américo, conseguiu enfim a tal colocação a que tanto almejava, como explicam Jairo e Zuza: “alguns meses após o lançamento vitorioso de ‘Maringá’, Joubert de Carvalho foi nomeado para o cargo de médico do Instituto dos Marítimos, onde fez carreira chegando a diretor do hospital da classe”.

    O compositor certamente não imaginava que a retirante Maria do Ingá pudesse chegar tão longe. Ela atravessou o país e acabou sendo fundamental para o nascimento de um povoado.

    No final dos anos 1930, novas cidades estavam sendo construídas no estado do Paraná. Segundo relatam Jairo, Zuza e Nirez em seus respectivos livros – e o próprio compositor confirmou em entrevista para a Manchete de 04/09/1971 –, a escolha dos nomes das cidades foi feita durante uma reunião da Companhia de Terras Norte do Paraná (mais tarde Companhia Melhoramentos Norte do Paraná). Foi Elizabeth Thomas – casada com um dos diretores da empresa, Arthur Hugh Muller Thomas – quem sugeriu que uma delas recebesse o título da já famosa criação de Joubert de Carvalho, pois era conhecida pelos próprios trabalhadores da obra, que costumavam cantá-la durante o expediente. Maringá começou a aparecer nos mapas do Paraná em 1938, mas a cidade foi oficialmente fundada em 10/05/1947, ainda como distrito do município de Mandaguari, e emancipada em fevereiro de 1951.

    Joubert de Carvalho diante da planta da cidade de Maringá / Foto: Coleção José Ramos Tinhorão

    Em sua edição de 09/04/1955, a Revista do Rádio narrou um encontro de Joubert de Carvalho com o cantor Francisco Carlos na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Perguntado por este último se a música havia sido feita em homenagem à cidade, Joubert explicou que foi o contrário: “A cidade nasceu depois e tirou o nome de minha música...”. Ao que El Broto retrucou, quase profético: “Pois olhe (disse Chico Carlos), você só por isto merecia ter o seu nome colocado numa placa de praça pública, lá...”. Na verdade, a praça recebeu um busto; a placa propriamente dita foi afixada na parede de um prédio, na rua que acabou ganhando o nome do compositor.

    A história está contada por Miguel Fernando no canal Maringá Histórica. A via surgiu na década de 1940 com o indigesto nome de Rua Bandeirantes (em alusão aos sertanistas que expandiram o território brasileiro à custa de muito sangue indígena e negro). Em novembro de 1958, através da lei municipal nº 110/58, teve seu nome alterado para Rua Joubert de Carvalho. O próprio homenageado compareceu à cerimônia de descerramento da placa que rebatizava o logradouro, em 21 de abril de 1959. Nela está escrito até hoje: “Rua Joubert de Carvalho – Compositor da música que deu o nome à cidade”.

    Pertinho dali, na Praça Raposo Tavares, foi inaugurado, em setembro de 1972, o busto de Joubert de Carvalho, novamente com a presença do compositor. Na parte inferior, os dizeres: “Homenagem da ‘cidade que nasceu de uma canção’” – frase que remete ao título de uma música, “A cidade que nasceu de uma canção”, feita por Joubert em comemoração aos 25 anos da fundação de Maringá e lançada naquele mesmo ano num LP homônimo.

    A imprensa cobriu com destaque o depoimento prestado pelo compositor para o Museu da Imagem e do Som do Rio, em 23/12/1966. Sobre sua famosa canção, ele confessou alguns aborrecimentos. Segundo O Globo do dia seguinte, Joubert revelou ter visto sua criação servir de fundo musical no filme “Inferno verde” – na verdade, “Tentação verde” (“Green fire”), de 1954 –, com Grace Kelly e Stewart Granger, “sem que ele absolutamente tivesse dado autorização”. O periódico informava que ele estava “desgostoso com as versões que fizeram da música, em ritmo de baião e até de iê-iê-iê”.

    O Correio da Manhã do mesmo dia (24/12/1966) fez observação semelhante: “A maior tristeza de sua vida foi ouvir ‘Maringá’ sob a forma de iê-iê-iê, ritmo que ele só tolera quando cantado por Roberto Carlos, ‘o maior cantor brasileiro da atualidade’” – de acordo com o Jornal do Brasil daquela data, Joubert tinha o sonho de ver suas novas músicas gravadas pelo grande nome da Jovem Guarda. É possível que a versão roqueira mencionada por ele seja a lançada por Eduardo Araújo, em 1961, num compacto simples.

    Maringá, em sua primeira década e meia de existência, teve dois apelidos: “Cidade Verde” e “Cidade Menina”. Em 1962, um dos seus pioneiros, o radialista Antenor Sanches, então secretário da prefeitura, recebeu uma correspondência de uma estudante de Poços de Caldas (MG) que solicitava dados estatísticos da cidade que nasceu de uma canção. Ao ler a carta, teve uma inspiração. A partir daí, passou a promover uma campanha radiofônica para se mudar o cognome do município. O movimento deu frutos, transformou-se em projeto de lei e, hoje, a terceira maior cidade do Paraná, uma das mais arborizadas do país, atende por um epíteto que tem muito mais a ver com sua história: “Cidade Canção”.

    Foto: Coleção Humberto Franceschi/IMS

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