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    Nos 110 anos de Wilson Batista – e dez de sua biografia – um viva à memória do ‘maior sambista de todos os tempos’

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Eu sou assim
    Quem quiser gostar de mim
    Eu sou assim
    Meu mundo é hoje
    Não existe amanhã pra mim
    Eu sou assim
    Assim morrerei um dia
    Não levarei arrependimentos
    Nem o peso da hipocrisia

    Há quem pense que este samba é de Paulinho da Viola, que o gravou lindamente no disco “A dança da solidão” (1972) e no documentário “Meu tempo é hoje” (2003). Os versos em primeira pessoa e a melodia em tom menor têm mesmo um jeito de Paulinho, mas não são dele. Foram feitos por um de seus mestres, um compositor do primeiríssimo time da música brasileira que, a despeito dos sambas de sua autoria que caíram na boca do povo, às vezes só é lembrado (quando é lembrado...) como “aquele da polêmica com Noel Rosa”. Mas Wilson Batista fez muito mais do que trocar farpas em forma de samba com o Poeta da Vila: compôs grandes sucessos de carnaval, ótimos sambas de breque e sincopados, marchinhas espirituosas e foi, à sua maneira, um grande cronista de seu tempo. Não à toa, Paulinho o definiu, num especial de TV, como “o maior sambista de todos os tempos”.

    Neste dia 3 de julho, quando se completam 110 anos de seu nascimento (em Campos dos Goytacazes, norte do estado do Rio de Janeiro), nossa homenagem a Wilson Batista vem com uma seleção de 25 músicas que, embora sejam um pinguinho em sua obra oceânica (de 518 composições gravadas), dão boa medida de seu talento e sua versatilidade. Outra comemoração ensejada pela data são os dez anos do lançamento da principal referência bibliográfica sobre ele, o livro “Wilson Baptista: o samba foi sua glória”, publicado em 2013 pela editora Casa da Palavra, trazendo o resultado da labuta incansável do pesquisador, escritor e produtor Rodrigo Alzuguir.

    “Parece que foi ontem. Olhando para trás, a sensação que tenho é a de que cursei um mestrado e um doutorado sobre música brasileira tendo Wilson Batista como orientador. A biografia é o coroamento de toda essa pesquisa”, define o autor, que já há algum tempo trabalha numa edição revisada e ampliada da obra, esgotada desde o lançamento. Ganhadora do Prêmio Jabuti (2º lugar), o livro tem a quarta capa assinada pelo escritor Ruy Castro. Este destaca que, além do biografado, o livro apresenta “uma fascinante galeria de cantores, boêmios, valentões, ladrões de sambas, grandes mulheres e batutas do rádio, do disco e do teatro-revista – do tempo em que a Lapa, o Café Nice e a Praça Tiradentes eram maiores que o mundo”.

    Criador e criatura: Rodrigo Alzuguir e sua biografia / Foto:  Carol Miranda

    Nas 584 páginas da obra estão também histórias das criações de Wilson Batista. Como “Lenço no pescoço”, o clássico samba de malandragem que Sílvio Caldas lançou em 1932 e serviu de mote para Noel Rosa responder com “Rapaz folgado”, abrindo a famosa “polêmica” – na verdade, um desafio musical que foi apimentado com o tempo, como Alzuguir escreveu no Blog do IMS. Já em 1933 veio o lançamento em disco de “Estrada da vida”, gravado por Luís Barbosa numa verdadeira aula de bossa – batucando seu chapéu de palha e cantando como quem fala (e sorrisos no lugar de afetações operísticas). De tão feliz com a gravação do samba (que ele dizia ser sua primeira composição), comemorou entre goles e mais goles nos bares da Praça Tiradentes, o que seria plenamente comum a um sambista como Wilson, não fosse “notório abstêmio, com horror a bêbado”, como escreve Alzuguir.

    O mineiro Ataulfo Alves é outro personagem importante dessa história. Companheiro de Wilson em mesas de cafés como o Carlos Gomes e, depois, o famoso Nice, é parceiro em sambas importantes de sua obra. Como “Ó Seu Oscar”, grande sucesso do carnaval de 1940, quando venceu o principal concurso de músicas daquele ano (a “Noite da Música Popular”, promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Vargas, o DIP) e rendeu, no ano seguinte, uma ótima sequência, no samba “A mulher de Seu Oscar”. Também da parceria com Ataulfo Alves é outro clássico de seu repertório, “O bonde de São Januário”, “quase um jingle estado-novista em forma de samba” (nas palavras de Alzuguir), muito cantado na folia de 1941. Seu intérprete é Ciro Monteiro, nome fundamental na discografia de Wilson, na qual estreou com o divertido “Mania da falecida”, mais um da parceria com Ataulfo.

    Outro parceiro importante (e recorrente) na obra de Wilson Batista é o carioca Haroldo Lobo, um ex-jogador de basquete e guarda municipal que também teria grandes sucessos na música brasileira – especialmente voltados para o carnaval. Das parcerias com Wilson destacam-se crônicas divertidas em ritmo de samba, como a doméstica “Não é economia (Alô padeiro)” e “Cabo Laurindo”, esta ambientada no pós-guerra (era junho de 1945), quando os pracinhas brasileiros retornavam da Europa cobertos de glórias – entre eles o personagem-título do samba, um cuiqueiro mangueirense fictício presente em outras composições, não só de Wilson e Haroldo. Mas o maior sucesso da dupla foi mesmo “Emília”, que desde 1942 disputa com “Ai que saudades da Amélia” (samba de Mário Lago e Ataulfo Alves lançado naquele mesmo ano) a medalha de ouro dos sambas machistas.

    Também de 1942 é uma das joias atemporais da obra de Wilson Batista: o samba “Lealdade”, que para Rodrigo Alzuguir é “sui generis em sua libertária visão dos relacionamentos. Para ele, a verdadeira lealdade estava em se ficar junto enquanto houvesse o fundamental: amor”. “E tu também liberdade terás / Pra quando quiseres bater a porta sem olhar para trás”, diziam, com uma franqueza incomum em tempos machistas, os versos docemente cantados por Orlando Silva. Outra singeleza de sua autoria lançada pelo Cantor das Multidões foi “Preconceito” (tema deste post), um dos tantos sambas antigos que, mais adiante, entrariam pela bossa nova regravados por João Gilberto – este um amigo e fã de Wilson. Neste samba ele tem como parceiro Marino Pinto, com quem divide também a autoria de “Largo da Lapa”.

    A Lapa, onde já não há conflito
    Fica no quinto distrito
    Aonde eu fui criado
    Um samba, um sorriso de mulher
    Bate-papo de café
    Eis aí a Lapa...!

    No bairro boêmio, onde Wilson viveu suas melhores noites, ambienta-se um capítulo à parte de sua biografia, dedicado aos malandros do tempo em que havia conflito na Lapa: Miguelzinho, Camisa Preta, Meia-Noite e os Irmãos Meira, só para citar alguns dos pintas-brabas perfilados no livro de Alzuguir, cada um com sua vasta folha corrida de crimes hediondos. Nada a ver, por exemplo, com o pelintra carismático e estilizado que era encarnado por Moreira da Silva, o grande cantor que entrou para a história como o inventor do samba de breque (saiba mais aqui). Dos quatro sambas de Wilson Batista que gravou destacam-se dois bem-humorados: os oníricos “Acertei no milhar” e “Esta noite eu tive um sonho”.

    Outro personagem importante nessa história é Antônio Nássara, o grande caricaturista e compositor que dividiu com Wilson alguns de seus maiores sucessos. Entre eles está um dos sambas mais cantados do carnaval de 1952, “Mundo de zinco”, feito na Galeria Cruzeiro, no Centro, e lançado em grande estilo no Programa Cesar de Alencar, com participação de ritmistas da Mangueira. Já a marchinha “Balzaquiana”, sucesso da folia de 1950, eles compuseram caminhando pela Avenida Rio Branco: começaram pelo mote trazido por Wilson (entusiasmado com Balzac e sua “Mulher de 30 anos”) e, já na Cinelândia, chegaram à segunda parte – com o requinte de uma citação à melodia de “La vie en rose”, proposta por Nássara. Ambas foram gravadas por Jorge Goulart com a Orquestra Tabajara.

    “Lembro com muito carinho das conversas com Jorge Goulart, um cara leve, gaiato, charmoso”, recorda o escritor. “Uma das delícias de fazer essa biografia foi ter essas figuras como fontes primárias, em entrevistas que valeram por uma viagem no tempo”, sublinha o autor, que conversou também com Dorival Caymmi (“Era fã do Wilson desde a Bahia!”), Francisco Malfitano (“Que memória prodigiosa!”) e Roberto Roberti, à época morando em Miguel Pereira (RJ). “Na segunda visita a ele levei CDs com as gravações originais de suas composições e ele adorou”, lembra. E ainda Cecy, estrela do dancing Apollo, musa de Noel Rosa e possível estopim da “polêmica” com Wilson que, quando Alzuguir encontrou, morando no Irajá, era aposentada: a professora Juracy, muito querida por seus alunos.

    O corre-corre do biógrafo teve ainda visitas ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, onde enfurnou-se na série de gravações dos Depoimentos Para a Posteridade (“Peguei todos da geração do Wilson, fui ouvindo, um a um, e anotando tudo”). Já pela internet, as visitas foram no site do Instituto Moreira Salles (“No acervo de Humberto Franceschi pude ouvir muita coisa que não conhecia”) e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. “Essa, quando eu descobri, eu já estava na fase de escrever o livro. Parei tudo e passei três meses só checando dados e pegando novas informações. O caldo engrossou muito”, conta Alzuguir, que também teve acesso a acervos pessoais, como os da historiadora Isabel Lustosa, do pesquisador Luís Fernando Vieira, e às famílias de antigos companheiros de Wilson, como o cantor Déo e os compositores Erasmo Silva e Roberto Martins.

    Este último é mais um parceiro fundamental na obra de Wilson Batista: um guarda-civil que divide com ele a autoria de duas marchinhas saborosíssimas. Uma delas é “Pedreiro Valdemar” (“que constrói o edifício e depois não pode entrar”), com um teor engajado que acaba sendo amenizado não só pelo caráter anedótico da letra, como também pelo canto sorridente de Blecaute, que lançou a música pro carnaval de 1949. Já em “Não sou Manoel”, é o canto tristonho de Aracy de Almeida que contribui para a comicidade desta piada em forma de marchinha que esteve entre os lançamentos fonográficos mirando o carnaval de 1946.

    Aracy de Almeida é outra voz recorrente na obra de Wilson Batista – nenhuma outra cantora gravou tantas composições dele. Entre os 27 fonogramas resultantes deste encontro há também sambas de sucesso como “Louco (Ela é seu mundo)”, feito em parceria com o pintor de paredes Henrique de Almeida (autor da primeira parte), e “Mulato calado”, composto a partir de uma história que Wilson ouviu no Café Nice, contada pelo amigo Élcio Soares. E ainda “Ganha-se pouco mas é divertido”, ótimo samba-choro da parceria com Ciro de Souza que Aracy lançou em 1941 e, quase seis décadas depois, foi regravado pela cantora Cristina Buarque no disco-tributo a Wilson que marcou o início da relação de Rodrigo Alzuguir com a obra de seu compositor favorito.

    A capa de "Ganha-se pouco mas é divertido", de Cristina Buarque (JAM Music/2000)

    “Sou muito grato à Cristina por tudo que aconteceu e, principalmente, por ter sido a fonte de toda essa minha história com o Wilson”, atesta o pesquisador-escritor, que foi apresentado ao tema quando, junto com sua irmã, a designer Renata Alzuguir, fez a programação visual do CD “Ganha-se pouco mas é divertido”, lançado no ano 2000 pela gravadora Jam Music, com arranjos de Maurício Carrilho. Rodrigo, que acabou participando das gravações de coro do disco de Cristina, passou então a se interessar pelo sambista e a recolher informações, histórias e gravações de seu futuro biografado. Quando produziu o CD duplo “O samba carioca de Wilson Baptista”, lançado em 2011 pela gravadora Biscoito Fino, convidou a cantora a interpretar quatro faixas. “É uma alegria tê-la por perto, ainda mais sabendo o quanto ela é seletiva.”

    O disco, vencedor do Prêmio da Música Brasileira de 2012 (categoria Prêmio Especial), foi um dos projetos surgidos do envolvimento de Alzuguir com seu biografado. O próprio CD tem o mesmo nome de um espetáculo musical que estreou em 2010, com direção de Sidnei Cruz e o próprio Alzuguir em cena, ao lado da cantora-atriz Cláudia Ventura. Em 2013, além da biografia, chegou às livrarias o álbum de partituras “Wilson Baptista: cancioneiro comentado”, editado pela Irmãos Vitale. Já em 2016 foi a vez da estreia de outro musical escrito por Alzuguir, “A cuíca do Laurindo”, inspirado no já citado personagem fictício – criado por Noel Rosa (em parceria com Hervé Cordovil) e desenvolvido coletivamente por outros compositores, como Herivelto Martins, Haroldo Lobo e, claro, Wilson.

    Ele próprio, aliás, foi um mestre em criar seus personagens, como dois que o discípulo Paulinho da Viola ajudou a projetar com regravações na década de 1970. O malandro “Chico Brito”, que virou música em 1949, na voz de Dircinha Batista, com direito a citação à teoria do bom selvagem, do francês Jean-Jacques Rousseau: “Se o homem nasceu bom e bom não se conservou / A culpa é da sociedade que o transformou...” E a incendiária “Nega Luzia”, que teve sua história contada em 1956, num ótimo samba-choro cantado por Ciro Monteiro.

    Neste último samba Wilson tem como co-autor um dos nomes mais recorrentes em sua lista de parceiros: Jorge de Castro, um bookmaker a quem ele recorria sempre que se via precisado de dinheiro. Segundo o compositor, ator e escritor Mário Lago – em entrevista à A Cena Muda (1945) citada na obra de Alzuguir – Jorge era um dos “industriais do samba”, ao lado de Ary Monteiro, Augusto Garcez e Miguel Baúso. Ao todo, foi "parceiro" em 95 músicas de Wilson, entre elas “Lealdade”, pela qual teria pago mil cruzeiros, segundo Lago. Também desta obra fazem parte o “Samba rubro-negro”, lançamento de 1955 na voz do botafoguense Roberto Silva, e “Mãe solteira”, samba inspirado numa notícia de jornal lançado em 1954 pelo mesmo cantor, que aqui bate seu recorde de vendagens, com 32 mil discos vendidos.

    Quando Wilson faleceu, aos 55 anos, de complicações cardíacas, já iam longe os anos de sucesso. “Ele morreu numa entressafra, em 1968, sem deixar um gosto de ‘quero mais’”, disse Rodrigo Alzuguir a Francisco Bosco num especial da Rádio Batuta dedicado a Wilson Batista. “Se tivesse vivido mais uns quatro anos, teria pego aquela leva de resgate do samba que trouxe de volta para as paradas de sucessos veteranos como Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e Ismael Silva, que voltaram gravando seus LPs.”

    Felizmente, o próprio biógrafo vem se encarregando de manter viva esta memória tão rica. Além dos projetos já realizados, há outros no forno, com destaque para mais um disco com produção de Alzuguir – a ser lançado em breve pelo selo Sesc – com sambas de Wilson Batista. Neste, além de raras e inéditas cantadas por grande elenco (com Ney Matogrosso, Mônica Salmaso, João Bosco e, claro, Cristina Buarque), há o próprio Wilson cantando, em gravações caseiras (acrescidas de arranjos atuais), pérolas como seu sempre atual samba-assinatura:

    Tenho pena daqueles
    Que se agacham até o chão
    Enganando a si mesmos
    Por dinheiro ou posição
    Nunca tomei parte
    Neste enorme batalhão
    Pois sei que além de flores
    Nada mais vai no caixão

    Foto principal: Wilson Batista na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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