Dorival Caymmi nasceu há 110 anos. Entrou na vida artística há 86. Faleceu há 16, aos 94, depois de contar e recontar suas histórias em tantas entrevistas. Como ao Pasquim (18-04-1970), por exemplo, quando falou de sua famosa falta de pressa (“Sou mesmo é preguiçoso, sabe?”) e do tempo que cada canção demanda para ser feita: “Não vou para a praia descabelado, querendo desenvolver um tema. Eu penso assim: não quer sair, não sai.” Já numa entrevista ao jornalista Tárik de Souza, para a revista Veja (17-05-1972), deu sua definição particular de sucesso: “Meu sonho é chegar a essa perfeição de ser o autor de uma ‘ciranda, cirandinha’, uma coisa que se perca no meio do povo.”
Por essas e outras é tão surpreendente que as histórias do grande cantor e compositor baiano cheguem aos dias atuais com tanto frescor, como em “Dorival Caymmi, um homem de afetos”, filme de Daniela Broitman (roteiro, produção e direção) atualmente em cartaz nos cinemas, como parte das comemorações pelos 110 anos de nascimento do artista, completados no último 30 de abril. É o próprio Dorival – em imagens registradas durante uma visita a amigos, em 1998 – quem conta suas histórias (algumas inéditas, outras à beira do impublicável), orgulhoso dos acertos e divertindo-se com os tropeços, como quem diz ao espectador: “Sabe da última do Caymmi...?”
À boa prosa de Dorival somam-se outros causos e contrapontos fundamentais de seus três filhos artistas — Nana, Dori e Danilo Caymmi — e os cantores-compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros personagens do universo caymmiano, em entrevistas realizadas para o documentário. Fazendo jus ao nome do filme, a costura entre os relatos, pontuada por canjas do elenco (incluindo o próprio Caymmi), privilegia a afetividade presente no legado do compositor.
Pois entre os afetos está Zezinho, o melhor amigo de infância com quem, “andando na vagabundagem”, sem sapatos, o menino Caymmi ganhou as ruas de Salvador. “De repente não estava mais no Rio Vermelho, estava na Amaralina. De repente estava na Pituba”, conta o compositor, relembrando a admiração com que, em sua timidez, via o amigo se embrenhar pela cidade. “Fui descobrindo a Bahia através das astúcias de Zezinho.”
Também com ele chegou a Itapoã, a praia distante onde, menino urbano que era, impressionou-se com as histórias de pescadores que desconhecia. Fosse o assovio com que os homens do mar chamavam “O vento” antes de ir trabalhar, fossem os mistérios da sinistra “Lenda do Abaeté”, fosse o risco da morte, presente no cotidiano dos pescadores (e familiares) e nas composições de Caymmi, como “O mar”, “A jangada voltou só” e “Noite de temporal”, esta última a música que cantarolou em sua primeira visita à Rádio Tupi, ainda dividido entre os planos de estudar Direito e a vontade de se empregar como desenhista da revista O Cruzeiro.
Todos gostaram – e mais do que todos Assis Chateaubriand, dono da emissora e da revista. Logo, a música diferente daquele jovem baiano virou assunto pelo Rio de Janeiro, até chegar à produção do filme “Banana da terra”, que se via em apuros desde que Ary Barroso havia dobrado o valor que pedia para ter suas músicas inseridas na trilha sonora. Socorreram-se com Caymmi, interrompido em seu descanso na pensão onde vivia – Rua São José, 35, Centro – para conhecer Carmen Miranda, que, por sua vez, conheceu um novo sucesso: “O que é que a baiana tem?”
Caymmi também contribuiu para a cena – a mais famosa de “Banana da terra” – por trás das câmeras, dirigindo a artista no gestual que ela deveria fazer enquanto cantasse aquele samba que destrinchava, peça a peça, o traje que ela vestia: uma baiana estilizada que se tornou uma marca de Carmen por toda a carreira, junto com os olhos que revirava. Um gesto que, segundo Caetano Veloso, ela aprendeu com o amigo: “Tem um negócio feminino do homem baiano”, sublinha o discípulo. “É sensualidade.”
O samba, tema de um texto publicado por aqui, foi o primeiro sucesso de Dorival, que dividiu com Carmen a gravação original não só deste samba, como da outra faixa do mesmo 78 rotações de fevereiro de 1939, “A preta do acarajé” – canção em que o compositor recupera memórias de infância que guardou das ruas de Salvador. Outra baiana que inspirou música foi Sinhá Inocência, senhora idosa que trabalhava na casa de sua avó e com quem aprendeu o velho canto que reproduz em “História pro sinhozinho”.
Lembranças de uma obra que “já mais ou menos veio pronta da Bahia” quando Dorival chegou ao Rio de Janeiro, em abril de 1938, como conta a cantora Nana Caymmi, entusiasta da porção mais romântica do repertório do pai: os sambas-canção que Dorival compôs e/ou gravou entre as décadas de 1940 e 50, quando começou a se apresentar na noite carioca, como “Nem eu”, “Só louco” e “Sábado em Copacabana”.
E teve “Marina”, maior sucesso de Caymmi no gênero samba-canção, lançado em quatro gravações quase simultâneas em 1947. A composição teria surgido de uma birra do filho Dori, menino, que disparou um “tô de mal” no meio de uma pirraça. “Pelo menos foi a história que ele contou”, desdobra Dori Caymmi no documentário. “A mamãe acreditou, então está tudo certo”, arremata, espirituoso, o filho do meio de Dorival e Stella Maris, a companheira durona que, segundo Dori, era quem garantia ao pai a tranquilidade para compor, à parte do dia-a-dia da casa. “Stella tinha que ouvir primeiro pra saber como é que era. E ela ficava encantada.”
É provável que o encanto não fosse o mesmo por sambas como “Dora”, “A vizinha do lado” e “Rosa morena”, entre outras musas, mas o caçula Danilo Caymmi garante que a mãe era pragmática – a ponto de ter levado adiante uma conversa com “uma moça muito rica” que quis comprar Dorival. “A mamãe estava negociando: é tanto, mas o direito autoral fica comigo”, diverte-se Danilo. “Não posso citar nomes, mas isso aconteceu.” Nana Caymmi, com sua habitual franqueza, amplia o histórico do pai, que afinal “era mulherengo e as mulheres atacavam mesmo.”
Entre os afetos elencados no filme de Daniela Broitman estão também as amizades com Tom Jobim e Jorge Amado. A este último, escritor baiano nascido em Ilhéus, Dorival dedicou o samba “Acontece que eu sou baiano”, inspirado no namoro do amigo com a escritora Zélia Gattai (“...acontece que ela não é”), paulistana de nascimento. E veio de um livro do amigo, o romance “Mar morto” (1936), o mote para a composição de “É doce morrer no mar”, completada por Caymmi e o escritor-parceiro num almoço entre amigos, como Dorival recorda no documentário. “Em geral dizem assim: não é doce não, é salgadíssimo”, brinca.
A música foi uma das oito gravadas por Dorival Caymmi em seu primeiro e mais emblemático LP: o dez polegadas “Canções praieiras”, que saiu pela Odeon em 1954 consolidando a novidade do compositor que cantava, se acompanhava ao violão e, de quebra, ainda podia pintar a capa do disco. No repertório estão gravações lançadas também em 78 rpm, entre elas a contemplativa “Quem vem pra beira do mar” e o canto de trabalho “Pescaria (Canoeiro)”, no ponteado do violão característico do artista.
Com o sucesso de “Canções praieiras”, seguiram-se novos LPs na Odeon. Não só os de Caymmi, mas também os que ele chancelou, como “Chega de saudade”, LP inaugural da bossa nova, lançado em 1958 por João Gilberto. Na linguagem minimalista daquele novo samba estilizado, coube a João apresentar a obra do padrinho aos novos ouvintes da década de 1960, através de gravações como as que fez de “Doralice” e “Saudade de Bahia”. Este último é lembrado no documentário por um dos netos de Dorival, Gabriel (filho de Danilo) Caymmi, que cita os versos finais do samba como prova do espírito desapegado do avô: “Pobre de quem acredita / Na glória e no dinheiro para ser feliz.”
Já o desapego da pressa, clássico do tempo caymmiano, rendeu histórias como a de “João Valentão”, o samba que levou 17 anos entre o início da composição (1936) e a primeira gravação (1953), como contamos por aqui, nos 70 anos de seu lançamento em disco. Já “Maracangalha”, lançada em 1956, Dorival compôs de uma vez só, em meados do ano anterior, enquanto pintava um autorretrato e se lembrou de uma brincadeira do amigo Zezinho, que despistava a namorada dizendo: “Ah, eu vou pra Maracangalha...”
Mas nenhuma composição fez Dorival Caymmi chegar mais perto do sonho de ter sua “ciranda cirandinha” do que “O samba da minha terra”, a música que começou a cair no gosto popular em novembro de 1940, quando saiu em disco, trazendo os versos – cantados pelo Bando da Lua – até hoje sabidos de cor: “Quem não gosta de samba / Bom sujeito não é / É ruim da cabeça / Ou doente do pé...”
“Isso todo mundo sabe, todo mundo canta”, aponta no filme Gilberto Gil, que insere “O samba da minha terra” entre as músicas do cancioneiro do país que “passam de geração pra geração”. “Sou fluxo decorrente de Caymmi”, define. “Ele é um rio que continua correndo por aqui.”
Além do elenco estrelado, “Dorival Caymmi, um homem de afetos” tem outros balangandãs. Como as belas imagens praieiras, de pescadores à beira-mar, do velho casario de Salvador e de rituais religiosos, na fotografia de Jacques Cheuiche e Reynaldo Zangrandi. Imagens de arquivo como a de uma adaptação estadunidense de “Capitães de areia” para o cinema (1972) em que a “Canção da partida” (“Minha jangada vai sair pro mar...”) é cantada em russo. E uma cena do filme “Estrela da manhã” (1950), com o compositor no papel de um galã pescador.
Ou ainda registros do 88º aniversário do artista, em 2002, entre pedaços de bolo, conversinhas caseiras e apertões na bochecha dados por Danilo Caymmi (“Meu amigo do peito”, na definição do pai), além de beijinhos que Caymmi manda para a câmera no fim da festa – gesto afetivo com o qual o mestre se despede ao fim desta hora e meia de prosa com seus espectadores.
Foto: o personagem-tema de 'Dorival Caymmi, um homem de afetos', documentário de Daniela Broitman, em um dos trechos da entrevista que guia o filme / Descoloniza Filmes