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    Nirez, 90 anos – parte 2: do café forte à cajuína gelada, um dia na casa-museu

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Os internautas que acessaram o Facebook no dia 15 de maio de 2024 e foram à página do pesquisador e colecionador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, souberam que nesta data, em 1940, foi fundado o Café Belas Artes, nos baixos do Palácio da Cidade, Centro de Fortaleza. Que exatos 14 anos depois, o cineasta Paulo Sales fundou a Cinegráfica Educadora e Ruralista Cearense, responsável por filmar acontecimentos diversos do estado no passado. E que em 2001 foi nesta data que faleceu, aos 95 anos, o político cearense Juracy Magalhães, ex-governador da Bahia. O principal registro do dia, no entanto, se resumiu a uma linha entre os 31 nascimentos e mortes de 15 de maio que aparecem listados na seção “Hoje na Música Brasileira”. Está lá: “Nirez, 1934.”

    Claro que o memorialista sabe bem – e se orgulha, com razão – de sua importância como nome de referência em temas como a música brasileira e a história de Fortaleza, entre outras especialidades. Que o acervo monumental do Arquivo Nirez, guardado e exposto em sua casa-museu, no bairro Rodolfo Teófilo, é fruto de muitas décadas de dedicação. E que chegar aos 90 anos lúcido e em plena atividade não é pouca coisa. Mas, como bom contador de histórias que é, provavelmente prefere as que conta na terceira pessoa, até porque seus dias mais recentes têm sido dedicados a contar e recontar sua própria trajetória a curiosos de todo tipo: repórteres de jornal, equipes de TV e rádio, além de redatores-pesquisadores-admiradores como os desta Discografia Brasileira.

    Mas quem quiser saber o que Nirez anda produzindo que visite seu perfil no Facebook. É à rede social que ele dedica boa parte de suas manhãs: depois do café forte que faz logo que desperta (às seis da matina) e bebe, alternando goles com pedaços de pão que besunta na gema do ovo frito. Só então abre o expediente, enfurnado no estúdio: escolhe os temas do dia, escreve os textos, edita imagens e já às 8h começa a postar, desencavando fotografias de personagens, fatos históricos e locais do Ceará, além de discos raros que pinça de sua coleção monumental, inclusive nos domingos e feriados. “Digo a ele: deixa isso, papai, no dia em que você não postar ninguém vai cortar seu ponto”, espeta a filha primogênita, a bibliotecária Terezinha de Azevedo. “Ele rebate na hora: ‘Não tenho mais tempo!’”

    E segue cara-a-cara com o computador, um notebook que nem de perto se parece com o XT com que travou os primeiros duelos, há 35 anos. “Era fim dos anos 1980 quando eu trouxe o primeiro computador para o museu”, conta o segundo filho, Otacílio de Azevedo, radialista e técnico de som. “Meu pai olhou torto e perguntou: ‘Eu bato aqui e o papel sai onde?’ Depois, foi se chegando aos poucos, até que se entendeu com a máquina. Em um ano já tinha passado para o computador os dados todinhos da discografia, até ali impressos”, relata o filho, que, a exemplo de Terezinha, é vizinho do pai. Os dois moram em apartamentos no segundo andar do imóvel – no térreo, vivem Nirez e Mário, o caçula de seus quatro filhos.

    O veterano pesquisador só deixa seu estúdio quando é hora de atender aos incontáveis visitantes que, com hora marcada, chegam à casa-museu. “Aqui recebo visita de tudo quanto é tipo de gente, sabe? De arquitetos que querem ver fotos antigas de Fortaleza a estudantes curiosos sobre a música brasileira”, enumera Nirez, que vê com gosto o olhar admirado dos jovens para os gramofones, cilindros fonográficos, discos do início do século 20 e outras raridades de sua coleção. “Fico feliz com este interesse: é sinal de que meu acervo ainda será útil por muito tempo.” Na saída do museu, os visitantes, ao assinarem o livro de presença, recebem um último mimo: um copo de cajuína gelada – espécie de suco de caju fermentado que é bebida típica do Nordeste brasileiro.

    Quem serve a iguaria é outra presença fundamental neste cotidiano: Heliomar Moreira, a Dodô, sobrinha a quem Nirez confia a tarefa nada elementar de arrumar e limpar o acervo e as instalações. “Deixo tudo organizado e bem cheirosinho”, esmera-se a colaboradora voluntária, que capricha também no almoço, que varia de filé mignon (às segundas-feiras) a frango (às terças e quintas), além de macarronada (às quartas) e peixe (às sextas). No vaivém da casa, volta e meia se queda ouvindo o tio cantarolar “pedacinhos de música” aqui e ali. Quem também gosta é Pretinha, a gata-xodó de Nirez, que emociona ao pular em seu colo e miar enquanto canta nosso nonagenário, como num dueto. “Já tentamos gravar mais de uma vez, mas não deu certo”, conta Dodô.

    Nirez com Pretinha e com os quatro filhos reunidos: Otacílio (de pé), Nirez (filho) com a esposa
    Socorro, Terezinha e Mário / Fotos do acervo familiar 

    Nas canjas involuntárias, é possível que Nirez relembre músicas do repertório de seus cantores preferidos, Nuno Roland (como “Iracema”, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral) e Gastão Formenti (como “Quanto durou o nosso amor”, de Saint-Clair Senna). Ou que cantarole “Meu destino”, composição de José Maria de Abreu e Carlos Rego Barros de Sousa que define como “a mais bonita de todas as valsas, que aliás é meu gênero musical preferido: o três por quatro me cativa, sabe?”. Ou então “Eu sei” (Antonio Almeida e Paulo Medeiros), valsa do repertório de Orlando Silva que é uma das preferidas de Terezinha. “Mas, ao contrário do meu pai, eu também curto bossa nova, Dick Farney, Chico Buarque...”, adverte a primogênita. “É que ele só gosta das músicas lançadas até 1950.”

    Além de especialista no gosto musical peculiar de Nirez, Terezinha é responsável pela controle financeiro do pai gastador e organizadora de sua biblioteca. Otacílio é quem o acompanha no dia-a-dia do estúdio, debruçado sobre a digitalização de discos e o tratamento sonoro. Já Mário é o secretário informal de Nirez, além de companhia certa nos passeios por Fortaleza, às vezes como copiloto do pai, que aos domingos tira o carro da garagem e dirige até o restaurante onde se reúnem os velhos amigos.

    Dos quatro filhos, o único que não mora no condomínio familiar é o terceiro, que se chama Nirez (aqui como nome próprio, não apelido) de Azevedo e vive em Messejana, bairro do sudeste de Fortaleza. Arquivista e programador da TV Ceará, também herdou do pai o gosto pela memória, criado que foi – junto com os irmãos – dentro da casa-museu, “acostumados com os alunos lá dentro pesquisando e nós ajudando no fichário do papai”, recorda. “Acaba que não é só a gente vivendo no museu, né? O museu é que vive em nós.”

    Autor do livro “História do Campeonato Cearense de Futebol” (Equatorial Produções, 2002), Nirez filho é torcedor fervoroso do Ceará S. C., assim como Mário. Já Otacílio torce pelo rival Fortaleza E. C., enquanto Terezinha herdou do pai a preferência pelo Ferroviário A. C. Embora o patriarca não seja exatamente um entusiasta da bola: “Gosto do ‘Ferrinho’, mas basta um jogador do time fazer uma falta clara para eu começar a torcer pro adversário”, confessa. “Ou seja, não posso ser levado a sério como torcedor, concorda?”

    Já entre os hábitos diários que o velho Nirez leva a sério estão a sesta vespertina e, à noite, os filmes que vê em seu estúdio, pelo aparelho de televisão conectado a seu computador. Seja a partir do YouTube ou zapeando pelos canais de TV, diverte-se tanto com comédias nacionais (como as estreladas por Mazzaropi ou Ankito), quanto com produções estadunidenses: dos westerns de Gary Cooper a séries televisivas como “A feiticeira” e “Jeannie é um gênio”. Nestas sessões caseiras, Nirez e filho caçula se abastecem de pipoca ou, nos fins-de-semana, de pizza – meia portuguesa, meia marguerita.

    “Depois não sabe por que está com o colesterol alto, né...?”, aponta Terezinha, atenta à ousadia gastronômica que destoa dos costumes regrados do pai: Nirez não bebe, não fuma (há 63 anos) e não é de comer doces (está pré-diabético). “Outro dia, quando vi que tinham pedido pizza, fui lembrá-lo do colesterol: ‘Papai, cuidado. Isso vai lhe matar!’ E ele, daquele jeito dele, nem se alterou: ‘Ah, minha filha... Já não dá mais tempo. Quando o troço estiver para entupir, eu já morri.’”

    O assunto da longevidade é menos bem-humorado quando o assunto são as ausências. Seja pela “saudade constante” que sente de Maria Zenita, companheira por 59 anos e mãe de seus quatro filhos, falecida em 2013. Seja pela “saudade profunda” do pai, Otacílio Ferreira de Azevedo (1896-1978), um funileiro, pintor de letreiros e fotógrafo que se tornou artista – pintor de quadros e poeta – que remete ao início de sua história e as andanças com o pai pela Fortaleza de antigamente. “Era engraçado quando ele encontrava algum amigo poeta, que ao vê-lo dizia: ‘Salve o grande pintor!’ Já quando o amigo era pintor, dizia: ‘Viva o grande poeta!’ Na verdade, ele foi grande nas duas artes.”

    Duas saudades: a companheira, Maria Zenita (1936-2013), e o pai, Otacílio Ferreira de Azevedo (1896-1978) / Fotos do acervo familiar 

    Memórias que Nirez já relembra normalmente, mas que ultimamente têm sido mais avivadas com as homenagens que vem recebendo por sua chegada aos 90 anos. Como o documentário “Nirez eterno” (Aderbal Nogueira e Glauber Paiva), lançado ainda no último trimestre de 2023. Ou o “Recital Brasil”, que o tenor Jefferson Nogueira e o pianista Alvany Silva deram em janeiro deste ano, no Museu da Fotografia de Fortaleza, com repertório formado a partir das preferências musicais do pesquisador. Ou ainda o ciclo de palestras “Nirez: um legado de paixão pela história e cultura fortalezense”, a ser realizado em 22 de maio na Biblioteca Pública Estadual do Ceará, com registro para a posteridade.

    Com sua fala mansa e os olhos espertos que costumam sublinhar o que diz, vem atendendo pacientemente a todos os que o solicitam para entrevistas às vésperas da data redonda. Mostra discos da fase mecânica que guarda em sua coleção. Põe para funcionar os gramofones. Mostra os antigos aparelhos de rádio, que garante estarem em perfeito estado de funcionamento (“Só não ligo porque não quero ninguém ouvindo música sem futuro.”). E tira de letra as perguntas de sempre: “Querem saber o que eu faço para chegar aos 90 anos. Ué, essa é fácil: é só não morrer!”

    “E tem os que gostam de me pedir para deixar um recado pros mais jovens, como se os jovens, rebeldes que são, fossem seguir alguma coisa”, questiona o decano dos colecionadores brasileiros. “Mesmo assim, eu deixo o meu recado, baseado no que me arrependo de não ter feito: guardem tudo que estiver à mão e que vocês puderem guardar de sua época. No futuro, esses guardados vão ter um valor que vocês não fazem ideia.”

    Nirez entre familiares na festa dos 90 anos / Foto: acervo familiar

    E o dia 15 de maio de 2024 transcorreu como tinha de ser: com felicitações de todos os cantos, via Facebook, e-mail, telefone e até um telegrama, enviado pelo governador do Ceará, Elmano de Freitas. Ao cair da noite, a sessão caseira de cinema com Mário deu vez a uma reunião para 30 convidados (entre familiares, amigos e a gata Pretinha) forrada a salgados, doces, vatapá – feito no capricho pela incansável Terezinha – e um bolo com velas no formato  dos algarismos nove e zero. Velas que o aniversariante, em vez de soprar, apagou com os dedos, como costuma fazer, antes do bolo ser repartido e dos agradecimentos a todos pela presença.

    Fim de festa na casa-museu: as despedidas foram regadas, é claro, a cajuína gelada.

    Na foto principal: Nirez com o banner comemorativo de seus 90 anos / Foto de Terezinha de Azevedo 

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