Está certo que toponímia de placa de rua – aquela breve descrição sob o nome do logradouro – não se presta a verbetes completos. E nem mesmo a uma frase que vá além de duas linhas. Mas o transeunte que passa pela Rua Estácio de Sá, no sentido de quem vai para a Marquês de Sapucaí, perde uma ótima oportunidade de se ilustrar (e, quem sabe, se orgulhar) ao deparar-se com a Praça Compositor Ismael Silva...
“(1905-1978) Compositor e intérprete de sambas, parceiro de Noel Rosa.”
Está tudo certo na brevíssima frase, mas é provável que o leitor destes 60 toques, na pressa dos transeuntes, siga adiante pensando ser aquele mais um de tantos bons sambistas que viveram por aqui.
Longe dele imaginar, por exemplo, que o moço – ainda que representado numa bela estátua, atrás da placa, empunhando seu violão – fundou a primeira escola de samba, ali mesmo, no bairro do Estácio de Sá. Que inventou, com sua turma, a batida de samba como conhecemos até hoje. Que foi o “pai musical” de Chico Buarque, “São Ismael” segundo Vinicius de Moraes e, para muitos, a personificação do malandro carioca, embora nascido há exatos 120 anos (14-09-1905), em Niterói (RJ).
Pois era lá, no pacato bairro de Jurujuba, que ficava o Hospital Marítimo de Santa Isabel, onde seu pai, Benjamin da Silva, trabalhava como cozinheiro. Mas o menino pouco ou nada pôde levar de memórias de seu velho: estava ainda nos primeiros anos de vida quando Benjamin faleceu, levando a família – a viúva, D. Emília, Ismael e mais três filhos – a ter que trocar o sossego niteroiense pelo recomeço no Rio de Janeiro. Com a prole inicialmente distribuída pela parentada, a mãe trabalha como empregada doméstica e mora onde é possível: primeiro no Estácio, depois no Rio Comprido, em Santa Teresa e no Catumbi.
Assim que consegue reunir os filhos, incumbe o caçula Ismael de escoltar as irmãs adolescentes, Orestina e Palmira, nos bailes da sociedade carnavalesca Quem Fala de Nós Tem Paixão, num salão na Rua do Estácio. Bendito instinto materno: lá, entre rodopios dos pés-de-valsa, começa o passo-a-passo do menino, que teria virado mestre-sala da sociedade não fossem as feridas em carne viva que levava nas pernas, em decorrência de sífilis, descoberta infeliz do boêmio precoce. Já o samba ele descobriu no Largo do Catumbi, como ficou registrado no livro “Samba, o dono do corpo” (Ed. Codecri, 1979), do jornalista e sociólogo Muniz Sodré: “Bastava encontrar alguém tocando violão na porta de um armazém ou bar pra que eu esquecesse do resto do mundo.”
Esquecia até mesmo a escola – não a de samba (que ainda não existia nessa época), mas a outra, com quadro-negro, giz, livros e outros encantos que o atraíam desde a infância. É que Ismael, miudinho ainda, enchia os ouvidos de D. Emília para levá-lo a uma escola (“Quero aprender a ler!”) e ela, no corre do dia-a-dia, devolvia-lhe o clássico “amanhã a gente vê”. Até que, aos oito anos, percebendo as limitações de D. Emília, vai por conta própria até o primário do Rio Comprido (Rua do Bispo, 176), onde se matricula e vira aluno exemplar. Estuda até os 16, com uma passagem pelo Seminário do Rio Comprido e, depois, pelo Liceu de Artes e Ofícios.
Do aprendizado destaca-se o português castiço que lhe será útil não só nas composições, como também na liderança que vai exercer sobre outros sambistas do Estácio de Sá, bairro para onde se muda ao deixar a casa da mãe, no Catumbi, em 1923/24. Morando numa casa de cômodos com seu irmão, Manoel, Ismael estará mais perto do Bar Apollo, ponto central da boemia local. Pois é lá, na esquina da Rua Estácio de Sá com Pereira Franco, que surge a Deixa Falar (12-08-1928), bloco carnavalesco que entrará para a história como a primeira escola de samba – termo cuja criação é reivindicada por Ismael, num paralelo com a antiga escola normal, localizada no Largo do Estácio. “A gente falava assim: ‘É daqui que saem os professores’”, contou ao jornalista Sérgio Cabral, no livro “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (Ed. Lumiar, 1996).
O termo derivado da escola normal, no entanto, já andava nas bocas estacianas desde pelo menos 1922, de quando datam as primeiras letras com referência a “escola de samba”. Seja como for, sabe-se que a Deixa Falar só durou até o carnaval de 1931 e que nunca teve entre seus componentes o fundador Ismael, que preferia acompanhar os desfiles “por fora do cordão de isolamento”, como o sambista relembrou a Sérgio Cabral. “É que, naquele tempo, gostava da minha cerveja, do meu chope. E queria beber na hora que tivesse vontade.”
Outro legado importante deixado por Ismael e seus companheiros do Estácio foi a criação de uma nova cadência de samba – diferente da levada mais chegada ao maxixe, que vigorava na época – mais adequada a desfiles de rua como os que faziam com a Deixa Falar. “O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim?”, contou Ismael, ainda na entrevista a Sérgio Cabral, criando a onomatopeia que o Império Serrano levaria à Marquês de Sapucaí no desfile campeão do carnaval de 1982. “Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum...”
Era um samba batucado, como se vê no título do livro que serviu de base para este post: “Negra semente, fina flor da malandragem: samba batucado do Estácio de Sá” (edição do autor, 2022), obra fundamental do pesquisador Carlos Didier. Expressão que, como informado no texto, ele pegou emprestada do sambista Chico da Bahiana, que em entrevista a O Jornal (28-01-1925), afirmou que “a música tem de satisfazer às necessidades da dança”, como “o samba batucado”, que “tem estilo e, bem dançado, é muito bonito”.
Ismael Silva em 1940 (Revista Carioca, 13-01-1940) e em 1970 (em foto de Makiko Kishi na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS)
Ismael também usava, para definir esta nova levada rítmica, a expressão samba de sambar – a mesma que o fotógrafo, pesquisador e colecionador de discos Humberto Franceschi aproveitou no título do livro “Samba de sambar do Estácio” (Instituto Moreira Salles, 2010), outra obra de referência sobre o tema.
Pois foi nesta cadência que Ismael começou a dar vazão a seu talento criativo, aí pela metade da década de 1920. Até que o pianista Orlando Thomaz Coelho, vulgo Cebolinha, interessou-se por uma de suas criações, o samba “Me faz carinhos”, gravando-o na forma instrumental, por esta época, na Casa Edison. O disco de 78 rpm — desaparecido das principais fontes sobre a fonografia brasileira — agradou a Francisco Alves, que se interessou também por gravá-lo. Coube ao também compositor Alcebíades Barcelos, o Bide, levar a proposta do cantor a Ismael, que quase caiu do leito — estava internado no Hospital da Gamboa — quando entendeu do que se tratava: “Cem mil réis pelo meu samba?!”
Depois do 78 rpm de Francisco Alves (lançado em janeiro de 1928), Ismael seguiu faturando. Primeiro, com Mário Reis, que deu voz a “Novo amor”, lançado em abril de 1929, e depois novamente com Chico Alves, que lançou “Amor de malandro” em julho desse mesmo ano, com sua letra além da conta, mesmo há quase um século: “Se ele te bate é porque gosta de ti / Bater em quem não se gosta eu nunca vi…” Dois sambas que expõem um contraste temático marcante nas composições desta geração do Estácio: de um lado o amor sofrido, do outro a malandragem valente. O requinte melódico em ambos — e em outros sambas de Ismael — remete sobretudo, segundo Carlos Didier, às marchas-rancho que ele ouvia em sua iniciação musical, no Quem Fala de Nós Tem Paixão.
E não deixa de ser curioso que, só depois de ter gravado duas composições de Ismael Silva, Francisco Alves foi conhecê-lo pessoalmente: isso no dia em que estacionou seu conversível em frente ao Bar Apollo, “atrás de assegurar um naco daquela mina”, como bem observa Carlos Didier em seu livro sobre o Estácio. Sem desembarcar, gritou por Ismael, que dali a alguns minutos partia num passeio motorizado até a Leiteria Bol, no Centro. No trajeto, o cantor se dispõe a gravar seus sambas e propõe que assinem as composições como parceiros. Ismael topa, mas com uma condição: que Nilton Bastos, parceiro com quem estava fechado, entre no acordo.
Amigo de primeira hora logo que Ismael trocou a casa de D. Emília pelo Estácio, Nilton havia participado da fundação da Deixa Falar, juntamente com Ismael, Bide, Brancura (Sylvio Fernandes), Baiaco (Oswaldo Vasques) e outros. Trabalhou como torneiro mecânico no Arsenal de Marinha e, nas horas vagas, dividia-se entre o samba e o futebol, que chegou a jogar em times da segunda divisão. Compositor inspirado, combinou com Ismael de assinarem juntos todos os sambas que fizessem – mesmo aqueles que fossem inteiramente feitos só por um deles.
Todas as criações do novo “trio” gravadas por Francisco Alves sairão em 1931, a começar pelo ótimo samba “Nem é bom falar”, lançado num disco do Rei da Voz em janeiro daquele ano. Do mesmo mês é o 78 rpm da gravação original de “Não há”, feita por Chico no famoso dueto com Mário Reis. E aí vale observar que os dois cantores – em duo ou separados – serão responsáveis por lançar nada menos que 50 composições de Ismael.
Entre elas está seu sucesso mais duradouro, “Se você jurar”, outro samba assinado pelos Bambas do Estácio (como eram conhecidos os três “parceiros”) que sai num 78 rpm de janeiro de 1931. De acordo com Luiz Alves da Costa Filho, sobrinho de Nilton Bastos, em depoimento ao jornalista Francisco Duarte, o tio teria começado a compor “Se você jurar” após uma briga com a noiva, Georgina. Segundo Carlos Didier, as segundas partes seriam “provavelmente” de Ismael Silva. Isso porque havia quem afirmasse – como Orestes Barbosa, em seu livro “Samba” (Livraria Educadora, 1933) – que “Se você jurar” seria toda de Nilton Bastos.
Se você jurar
Que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é
Para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar
Havia quem dissesse o mesmo sobre as românticas “Amar” – que Chico Alves gravou sozinho – e “Arrependido”, lançado por ele em dueto com Mário Reis. Outro cantado pela dupla foi o sucesso “O que será de mim”, samba que teve sua história contada neste post e, como poucos, retrata um modus vivendi que Ismael conhecia muito bem. Como afirmou o pesquisador e crítico José Ramos Tinhorão, no fascículo da série “História da Música Popular Brasileira: grandes compositores” (Ed. Abril Cultural, 1982) dedicado a Ismael: “Ele personificou até a morte, com sua invejável recusa a qualquer espécie de trabalho que não fosse o artístico, a resistência social humanamente heroica de um tipo do povo ainda não compreendido — a do malandro rico de talentos.”
Verdade seja dita, Ismael trabalhou, sim. Primeiro, num escritório de advocacia na Rua da Quitanda, mas não durou. Depois foi vendedor de remédios. E então funcionário da Central do Brasil (“Me botaram lá e fiquei”, contou a Sérgio Cabral), mas neste batente não deu conta. “Tinha que lavar trens de manhã até de noite em troca de um salário que, bem ou mal, ele podia facilmente conseguir, se quisesse, depenando otários com um baralho na mão ou no jogo de chapinha”, escreveu Tinhorão em “Breve história de um grande compositor chamado Ismael Silva”, ótimo perfil que encerra seu último livro, “Música e cultura popular” (Editora 34, 2017).
Fonte de renda recorrente da malandragem, a chapinha era um jogo de azar em que o sujeito colocava algumas tampinhas de cerveja sobre um caixote e, embaixo de uma delas, uma bolinha de massa ou miolo de pão. Depois que o proponente embaralhava as tampinhas e colocava um dinheiro sobre a banca, o cliente era provocado a adivinhar onde estava a bolinha e completar o valor apostado pelo banqueiro. Não tinha chance de acertar, pois o malandro dava seu jeito – por exemplo, enquanto o incauto pegava o dinheiro no bolso – de trocar a massinha de tampa. Segundo Carlos Didier, em “O que será de mim” há uma referência ao jogo nos versos “Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei...”
O cantor Francisco Alves entre os principais parceiros de Ismael, Nilton Bastos (à esquerda) e Noel Rosa, em fotos da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Quando Nilton Bastos faleceu (08-09-1931), vitimado por tuberculose, a homenagem veio através de um samba sentido, “Adeus”, co-assinado por Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves. Se bem que o sobrinho de Nilton, Luiz Alves da Costa Filho, contou uma história diferente sobre a composição a Francisco Duarte, como se lê no livro de Carlos Didier. Relembrando os últimos dias de Nilton, ele relata que o tio tirou um papelzinho de debaixo do travesseiro e pediu que lesse. “Botei o ouvido perto dos lábios dele. Ele aí começou a cantarolar”, narra Luiz. “Então eu mandei ele parar e… Vê se é isso? Aí comecei a cantar: ‘Adeus, adeus, adeus… palavra que faz chorar…’”
Além da versão oficial sustentada por Ismael Silva (“Compomos os três em homenagem a Nilton Bastos”, como garantiu à revista Carioca, em 13-01-1940), Didier aventa a possibilidade de ele ter feito uma das segundas partes de “Adeus” e Noel, a outra. Seja como for, o “trio” seguiu adiante, com a cadeira de Nilton ocupada pelo Poeta da Vila, que passa a compor com Ismael. À base de muito talento e admiração mútua, o entrosamento é imediato e se reflete na pequena obra que fazem juntos, aberta curiosamente não por um samba, mas por uma marchinha, a bem-humorada “Gosto, mas não é muito”. A gravação original é de Francisco Alves, sozinho, assim como no ótimo samba “Para me livrar do mal”.
Estou vivendo com você
Num martírio sem igual
Vou largar você de mão, com razão
Para me livrar do mal
Já o samba “A razão dá-se a quem tem” – obra-prima da parceria Noel-Ismael, na modesta opinião do autor deste texto – Chico gravou em dueto com Mário Reis, que, por sua vez, interpretou sozinho alguns futuros clássicos de seu repertório: “Uma jura que eu fiz” e “Sofrer é da vida”, este último co-assinado por Ismael e Francisco Alves. E até Carmen Miranda, que não era exatamente a cantora preferida de Noel Rosa (“Isto é samba ou é aquilo que a Carmen Miranda canta?”, teria perguntado certa vez o Poeta da Vila) gravou uma do “trio”: a marchinha “Assim sim”, lançada em dezembro de 1932.
Até que Ismael e Noel passam a assinar composições sem a companhia de Francisco Alves, como os sambas “Escola de malandro” (parceria com Orlando Luiz Machado, autor do estribilho), gravado por Ismael em janeiro de 1933, e “Quem não quer sou eu”, lançado pelo próprio Chico em setembro daquele ano. Estava terminado o acordo de exclusividade com o cantor – possivelmente, mais um fruto da parceria com Noel, que enchia os ouvidos do amigo sobre o quanto o negócio era desvantajoso para ele.
“Chico, você de aproveitável só tem a voz, que eu considero um brilhante no meio do excremento”, dirá Ismael, futuramente, ao cantor, num encontro fortuito na porta do Café Nice, como conta José Ramos Tinhorão na “Breve história de um grande compositor chamado Ismael Silva”. Mas, por enquanto, Ismael apenas tolera a pão-durice e outras espertezas do Rei da Voz. A ponto de dedicar a ele um samba, em parceria – claro! – com Noel: “Boa viagem”, feito com “sutis alfinetadas” em Chico, como informa Carlos Didier em outro livro, o fundamental “Noel Rosa, uma biografia” (Ed. UnB, 1990), em co-autoria com João Máximo.
Se não mandei você embora
Enfim, foi porque
Me faltou a coragem
Mas se você vai dar o fora
Então, passe bem
Boa viagem
No entanto, quando saiu a primeira gravação de “Boa viagem”, na voz de Aurora Miranda, em janeiro de 1935, Ismael não tinha motivos para comemorar. Irado depois de se ver responsabilizado por uma dívida interna na União do Estácio de Sá (escola de samba fundada após o fim da Deixa Falar, na qual atuava como conselheiro fiscal), entrou armado no Café Ponto Chic e disparou cinco vezes contra Eduardo Spazafumo, que lhe empurrara a dívida, aos gritos de “Vais morrer!”. Nenhuma das balas encontrou o alvo, mas a tentativa de homicídio bastou para que – naquele abril de 1934 – fosse preso.
Não era a primeira vez que Ismael visitava a detenção – no livro “Negra semente, fina flor da malandragem: samba batucado do Estácio de Sá”, sabemos que, somente entre 1927 e 1930, foram nove detenções, sendo oito por “vadiagem” (leia-se, jogo de chapinha) e a outra por “antecedentes”. Mas desta vez a liberdade ficou bem mais difícil: julgado pelo tribunal do júri em 21-08-1936, por tentativa de homicídio, deixará o cárcere só em 14-12-1938. Segundo Carlos Didier, o samba “Choro sim”, último de sua autoria – sem parceiro – lançado por Francisco Alves (em julho de 1935), tem referências diretas a esta situação: como nos versos “Não tem fim minha aflição” e “Minha dor na verdade é moral”.
Após a soltura, Ismael não retoma a boa forma do compositor que havia sido na primeira metade desta década – somam-se ao abatimento natural pelos anos detido seu afastamento de Francisco Alves e a perda do parceiro e amigo Noel Rosa, falecido em 04-05-1937. Com dificuldades de se recolocar no mercado fonográfico, produz em ritmo e volume menores: de acordo com José Ramos Tinhorão (“Breve história de um grande compositor chamado Ismael Silva”), serão lançadas apenas 23 novas composições assinadas por ele até 1973.
Entre elas estão alguns bons sambas de sua autoria sem parceiro, como “Não vá atrás de ninguém”, que Cyro Monteiro grava em 1941, e dois lançados em 1950: “Meu único desejo”, que sai na voz de Gilberto Alves, e “Antonico”, cantado por Alcides Gerardi. Este último, seu principal sucesso da nova fase, “fugia à linha tradicional de Ismael, pelo andamento lento e a amargura de seus versos”, como avaliou o redator – não assinado – do fascículo sobre o sambista na série “Nova História da Música Popular Brasileira” (Ed. Abril Cultural, 1977):
Ô, Antonico, vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grandes dificuldades
“Muita gente, então, se perguntou: era Nestor ou Ismael?”, aponta ainda o texto do fascículo da Abril Cultural, aventando um caráter autobiográfico no novo samba de Ismael.
Pois o Antonico de sua vida real era Prudente de Moraes, neto, advogado e jornalista que foi diretor do Diário Carioca e era seu querido amigo desde os anos mais gloriosos de sua carreira de compositor. Foi por meio dele, por exemplo, que o sambista chegou ao escritor Aníbal Machado, em cuja residência (Rua Visconde de Pirajá, 487 – Ipanema) eram promovidos badalados saraus nas décadas de 1940 a 60. Nestes encontros dominicais, frequentados por intelectuais e artistas, Ismael vira não só habitué, como também atração: “Quando eu chegava à casa do Aníbal Machado”, contou à Revista Manchete (20-06-1964), “acabava com a literatura. Tudo virava samba. Cantava e repetia. Eles gostavam, não é?”
Quem eram eles? O livro “Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema” (Companhia das Letras, 1999), de Ruy Castro, traz uma lista e tanto: “Havia os fixos ou que, em determinadas épocas, não faltavam nunca, como Rubem Braga, Fernando Sabino (que fazia mágica para as crianças), Murilo Mendes, Carlos Lacerda (desafiando incautos para o pingue-pongue, que jogava bem), Drummond, Niemeyer, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes (que dançava boogie-woogie com as filhas do anfitrião), Tônia Carrero (antes de tornar-se atriz, quando ainda se chamava Mariinha) e seu marido, Carlos Thiré, Orígenes e Elsie Lessa, Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Paulo Autran, Portinari, Di Cavalcanti, Guignard, Carlos Scliar, o sambista-pintor Heitor dos Prazeres, políticos, diplomatas, jornalistas.”
Aos olhos desta nova plateia, ele vira “São Ismael”, como o chamava Vinicius, para quem era “um dos três maiores sambistas de todos os tempos”, como escreveu na Revista de Música Popular (01-11-1953). Já o cronista Lúcio Rangel – sobre o qual já escrevemos aqui na Discografia Brasileira – só se referia a ele como “o grande Ismael”, e a quem lhe dissesse qualquer coisa sobre “o Ismael”, fingia não saber de quem o interlocutor falava, até que, diante da perplexidade do sujeito, corrigia-o: “Ismael não. O GRANDE Ismael.” Pois esta era a nova turma do sambista: Vinicius, Lúcio, o anfitrião Aníbal Machado e seu fiel Prudentinho, entre outros jornalistas/escritores bons de copo, todos cultores de sua grande arte.
Outros que se chegaram a Ismael por esta época foram o já citado Humberto Franceschi e seu irmão José, ambos fotógrafos (e primos de Vinicius de Moraes), que passaram a conviver com o sambista e suas histórias. Veio daí, segundo José Ramos Tinhorão, a sugestão que deram ao produtor Zilco Ribeiro, em meados da década de 1950, para que criasse um espetáculo que restabelecesse a importância do novo e veterano amigo na cena musical brasileira. O resultado foi o show “O samba nasce do coração”, apresentado na boate Casablanca, na Praia Vermelha, sendo um dos grandes sucessos de 1955. Pode-se dizer que, ao fim da temporada de cinco meses, Ismael – atração do elenco, ao lado de Ataulfo Alves, Pixinguinha e a Velha Guarda – estava de volta às bocas.
Tanto que, nos anos seguintes, saíram os dois primeiros LPs de Ismael: primeiro, o dez polegadas “O samba na voz do sambista”, que a Sinter lançou em 1956 com Ismael interpretando antigas composições de sua autoria, entre elas “Me diga teu nome”. Já no ano seguinte veio “Ismael canta... Ismael”, lançamento da gravadora pernambucana Mocambo com algumas novidades enxertadas em outro repertório predominantemente das antigas. E havia também antigos sambas que eram regravados, como “Tristezas não pagam dívidas”, originalmente lançado em 1932, com autoria atribuída a Manoel (irmão de Ismael) Silva, e só em 1958, ao ser relançado por Aracy de Almeida, foi devidamente creditado a seu compositor:
Tristezas não pagam dívidas
Não adianta chorar
Deve se dar o desprezo a toda mulher
Que não sabe amar
No embalo da maré favorável, veio a eleição de Cidadão Samba de 1960, num concurso promovido pelo Departamento Municipal de Turismo e Certames, onde Ismael Silva recebeu o título, conquistado com 87.280 votos contra 57.627 do segundo colocado, o antigo mestre-sala de ranchos João Paiva, primeiro a cumprimentá-lo na noite de 03-02-1960, segundo o Jornal do Brasil (05-02-1960), após ser “recebido pela assistência de pé”.
A aclamação na imprensa não foi menor quando, em 1966, saiu pela Polydor o LP “Samba pede passagem”, com o registro de um show de Ismael e Aracy de Almeida – com o MPB-4 e o Grupo Mensagem – realizado no ano anterior, no Teatro de Arena (Copacabana). A discografia de Ismael Silva em long-playing se completa em 1973, quando a RCA Victor lança o disco “Se você jurar”, com mais algumas inéditas em meio a regravações de antigos sucessos da década de 1930.
Apesar das glórias da maturidade, a situação de pobreza seguiu inabalada. “Ismael Silva mora numa pensão, um casarão velho e sombrio de três andares na Rua Gomes Freire, no Rio”, informava o texto de “Nova História da Música Popular Brasileira” (Ed. Abril Cultural, 1977), sobre o quarto na Lapa em que viveu suas últimas duas décadas de vida, com saídas cada vez mais esporádicas, devido às varizes que lhe apareceram nas pernas, trazendo dores e problemas de locomoção. Caminhadas só até o bar onde almoçava e jantava todo dia, às vezes acompanhado por Nelson Cavaquinho e doses de conhaque, como observou o jornalista Ruy Castro na crônica “Monograma da saudade”, publicada no site Carioquice.
Já o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho, outro novo amigo que ganhou nos anos 1960, recorda que Ismael gostava mesmo era de cerveja, “que bebia quente”, como anotou num perfil dedicado ao sambista no livro “Mudando de conversa” (Ed. Martins Fontes, 1986). No texto, afirma também que a tal santidade que alguns lhe atribuíam contrastava com sua personalidade difícil: “Um ser extremamente amargo e ressentido, talvez pela quase penúria de sua vida – ele que, no imaculado terno de linho branco, aparentava uma condição financeira que se contradizia no próprio quarto onde habitava.”
O terno, que Ismael gostava de usar com camisa vermelha e gravata branca (as cores da Deixa Falar), nem de perto fazia jus ao sambista-ostentação dos anos – literalmente – dourados. “Andava cheio de joias, com anéis, pulseiras, cheguei até a usar um guarda-chuva com cabo de ouro”, jactou-se à jornalista Maria Lúcia Rangel, no JB (02-04-1974). “Eu era tão besta, e por que não dizer ignorante, que quando via alguém de posse sem joias, taxava logo de pão-duro.”
Ismael Silva e Chico Buarque em foto da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS
Memórias saborosas, mas contrastantes com os novos tempos, quando o terno puído lhe servia de figurino para fotos e para os shows que volta e meia lhe apareciam. Como a temporada que fez, em 1973, no Teatro Senac (Copacabana), com direito a elogios de Chico Buarque, outro Antonico que às vezes lhe socorria e revelou-se herdeiro na matéria em que o JB (18-04-1973) anunciava a estreia: “Ismael é a maior influência que eu tenho em toda a minha obra. Muito maior que as constantes citações que me são imputadas: Noel Rosa e Ataulfo Alves. Ismael, na verdade, é meu verdadeiro pai musical.”
Ismael Silva faleceu aos 72 anos e meio, fulminado por um infarto na noite de 14-03-1978, no Hospital da Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, onde estava internado desde dezembro de 1977, tratando-se de uma úlcera varicosa (ferida decorrente das varizes) que lhe aparecera no tornozelo esquerdo. Seu corpo foi velado – com um tamborim nas mãos e uma medalha ohikari (da Igreja Messiânica) no peito – no saguão do Museu da Imagem e do Som, sendo sepultado no Cemitério do Catumbi, “ao som das batidas lentas de um surdo, mas sem a presença dos principais sambistas da cidade”, como se leu na Tribuna da Imprensa de 16-03-1978.
“Para mim, Ismael foi e sempre vai ser um dos compositores da maior importância da nossa música”, disse ao jornal O Fluminense (16-03-1978) uma das presenças marcantes no enterro, a cantora Clara Nunes, arrematando sua fala com um poder de síntese digno de uma toponímia em placa de rua. “Além de suas composições, nos deixou as escolas de samba.”
Foto principal: Ismael Silva clicado por Juca Martins para a série de fascículos 'História da Música Popular Brasileira: grandes compositores' (Ed. Abril Cultural, 1982)