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    De Alemanha para o Rio, via Juiz de Fora: memórias da Casa Faulhaber, por Sandor Buys

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Rua da Constituição, nº 36. O velho sobrado, atualmente de portas e janelas permanentemente fechadas, parece só mais um na velha rua que liga as praças Tiradentes e da República, no Centro do Rio de Janeiro. “É o prédio da Cinta Moderna”, apontam os vizinhos, sem mais detalhes, em referência à loja de roupas íntimas que ocupava o térreo do imóvel desde a década de 1930 até os anos recentes. Já no segundo pavimento teve de tudo: pensão familiar, curso de corte e costura (1940), oficina de caneteiro (1941) e até o consultório de Mme. Toledo, que em 1943 se anunciava nos jornais como a única da cidade a curar “as peles mais estragadas” aplicando uma loção que, ainda por cima, evitava rugas.

    O que ninguém desconfia – nem a vizinhança, nem os leitores da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional – é que a história da música brasileira passa por aquele sobrado. Foi ali que, em 7 de maio de 1911, Pixinguinha fez suas primeiras gravações: com apenas 14 anos, ele era o flautista do conjunto Choro Carioca, que formava com os irmãos Leo e China e mais Irineu de Almeida. Trombonista, bombardinista e oficleidista, Irineu é também o autor da maior parte das músicas gravadas pelo quarteto, entre elas os tangos brasileiros “Morcego” e “São João debaixo d’água”.

    Nesse endereço funcionava a Casa Faulhaber, loja de variedades – onde se podia comprar artigos musicais e fotográficos, além novidades diversas (especialmente as tecnológicas) – que fez história gravando discos nos primórdios da fonografia brasileira. Por lá saíram os 78 rotações da Favorite, empresa alemã cuja marca estampou os rótulos de cerca de mil discos lançados entre 1910 e 1914, na chamada fase mecânica das gravações – ou seja, a época anterior a 1927, quando se inicia a fase elétrica.

    A Casa Faulhaber – que também fez lançamentos pelo selo Discos Faulhaber, em associação com a Polyphon, outra gravadora alemã – é o tema do segundo livro digital da série “Discografia Brasileira – Os pioneiros”, na qual o pesquisador Sandor Buys conta a história da fase mecânica da fonografia no Brasil. No primeiro volume da série, lançado em dezembro de 2024, o tema foram os Discos Phoenix, selo que funcionou por aqui entre 1914 e 1923.

    “É uma época da fonografia que as pessoas nem sabem que existiu e talvez por isso eu tenha me interessado por contar essa história, como estamos fazendo nesta série”, diz Sandor, que aprofundou sua pesquisa sobre a Casa Faulhaber como parte da tese de doutorado em música que defendeu no último mês de julho na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). “Um dos pontos centrais deste trabalho é mostrar a importância de como o disco é um objeto a ser lido para se obter informações básicas sobre ele como a data e o local de sua gravação, a técnica de gravação usada, o local de prensagem, etc.”

    O rótulo do disco Favorite R 1-450087, primeiro 78 rpm do selo gravado no Brasil, com a estreia fonográfica de Pixinguinha

    Tais informações podem estar tanto no rótulo quanto na cera dos 78 rotações, como observa o incansável autor, que durante a pesquisa estudou cerca de 750 discos raros com olhos de entomólogo (biólogo que estuda insetos), sua formação acadêmica original – no dia-a-dia, ele trabalha como professor de Biologia em escolas. “Além dos discos do IMS, maior parte do acervo que consultei, tive acesso aos 78 rpm de coleções particulares, graças à generosidade desses colecionadores, todos devidamente identificados com acrônimos no catálogo dos discos da Casa Faulhaber”, explica.

    “Essa rede de colecionadores que estamos sempre trabalhando para ampliar”, como ressalta o pesquisador, “é fundamental para completarmos o álbum de figurinhas, como diz a Bia Paes Leme (coordenadora de música do IMS), em referência a essa nossa missão, de reunirmos e disponibilizarmos no site Discografia Brasileira tudo que houver em termos de informações e fonogramas lançados em 78 rpm”, explica. “A família Faulhaber também foi decisiva neste trabalho, dando acesso a inúmeros documentos, fotografias e até uma árvore genealógica que remonta ao século 17.”

    Só que a história deles no Brasil só começou mesmo em 1846, quando os primeiros Faulhaber vieram da Alemanha trabalhar nas obras do Palácio de Verão (atual Museu Imperial) do Imperador D. Pedro II e sua família, em Petrópolis (RJ). Nesta leva estava o menino Heinrich, que com o tempo virou Henrique, tornou-se violinista e casou-se com a também imigrante alemã Barbara. Com ela teve dez filhos brasileiros, entre eles o trio – Antônio, Frederico e João Felipe – que, já na segunda década do século 20, estará à frente da produção de discos da Faulhaber.

    Mas antes de ser uma gravadora, a Faulhaber abriu as portas como uma loja de variedades, em 1895, no Centro de Juiz de Fora (MG), para onde parte da família havia se transferido após a empreitada petropolitana. Foi tanto o sucesso que, em 1908, o Rio de Janeiro ganhou uma filial da Faulhaber & Co. (nome completo da loja), na Rua General Pedra. Durou pouco tempo neste logradouro (hoje desaparecido), mudando-se para outros dois endereços: na Rua Marechal Floriano, nº 119, e no nº 36 da Rua da Constituição.

    O sobrado da Rua da Constituição nº 36 em dois momentos: numa fotografia de 1912 reproduzida do livro "Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil", de Humberto Franceschi (Studio HMF,1984) e atualmente, em foto de Pedro Paulo Malta

    Pois é desta segunda loja, como já sabemos, que sairão os discos da Faulhaber depois da sociedade que será firmada (em 30-09-1911) pela trinca de irmãos com a Favorite, a gravadora alemã que, nessa época, expandia seu mercado pelo mundo e chegaria a 30 países. Mesmo assim, datam ainda de 1910 as primeiras gravações – feitas em Hannover, Alemanha – resultantes da dobradinha Faulhaber/Favorite. Entre elas estão “Iara” (schottish de Anacleto de Medeiros) e  “O carnaval de mil novecentos e dez” (dobrado de João da Silva França), ambas interpretadas pela Banda da Casa Faulhaber.

    Só no ano seguinte – a partir do célebre dia 7 de maio de 1911 – as gravações passariam a ser feitas na própria matriz da Faulhaber, conforme passou-se a ver nos rótulos dos discos: “Rua da Constituição 36, Rio de Janeiro”. Além das pioneiras “Morcego” – a primeira de todas as gravadas – e “São João debaixo d’água”, outros dez fonogramas foram gravados nesta leva do Choro Carioca, entre eles a polca “Qualquer coisa”, na qual o solista é Irineu de Almeida, seu autor, tocando seu oficleide – instrumento raro, ouvido com mais frequência nos contrapontos à flauta de Pixinguinha.

    Desta primeira fornada da Favorite é também o registro original do lundu “A mulata carioca”, composição de Manoel Antenor de Souza, o popular Neco, também cantor e violonista nesta gravação realizada em 8 de maio de 1911. Modinheiro de destaque no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século 20, Neco lançou ao todo 13 gravações pela Favorite, entre elas a da modinha “Amor ingrato”, “um dos maiores sucessos da Casa Faulhaber”, segundo Sandor Buys.

    Outro nome de relevo a gravar por lá foi Arthur – assim mesmo, sem sobrenome, como era creditado no rótulo do disco o cantor e compositor Arthur Castro, que compareceu à Rua da Constituição em 9 de maio de 1911 para entoar a modinha “Flor do céu”, parceria do maestro Modesto Ferreira com o escritor Teodomiro Pereira. Entre as 31 músicas que Arthur interpretou nos discos Favorite, há também gravações feitas em Hanover, durante uma viagem que ele fez à Alemanha em meados de 1912, como a da chula “Bolimbolacho”.

    Mas ainda em 1911 o sobrado da Rua da Constituição abrigou outras gravações marcantes como a do tango “Os Carapicus do Castelo”, composição de Bartolomeu Leal dedicada à mais popular das sociedades carnavalescas do Rio, como se pode ouvir no meio da fala – “Viva os Democráticos!” – que antecede a gravação da Banda da Casa Faulhaber. E por falar em banda, a do Corpo de Bombeiros é outra presente nos discos da Favorite, com 18 gravações realizadas, entre elas a da polca “Qui pro quó”, composição de seu fundador, Anacleto de Medeiros.

    Falecido em 1907, o maestro Anacleto se faz presente no catálogo da Favorite como autor de outras músicas, como o “Choro de bombardino” que Candinho Silva – apelido de Candido Pereira da Silva, também conhecido por Candinho Trombone, nome referencial dos primórdios do choro – sola num disco de 1911. Outro solo digno de nota é o que se ouve na polca “Zezé”, na qual seu autor, João Antônio Romão, toca helicon, instrumento da família das tubas que, a exemplo do oficleide, não é dos mais conhecidos do público em geral.

    Correio da Manhã, 23-02-1912

    Já a polca “Flausina”, que teve sua gravação lançada pela Favorite, é bem conhecida até hoje nas rodas de choro. Seu autor e intérprete é Pedro Galdino, flautista que só gravou na Casa Faulhaber e aqui é acompanhado pelo Pessoal do Bloco – conjunto formado por músicos dos Namorados da Lua, bloco carnavalesco que saía pelas ruas do Andaraí e de Vila Isabel, seu bairro de origem. Creditado em alguns rótulos como Pedrinho, Galdino é também o autor de belezas como a schottisch “Adélia”, outra que ele gravou com os companheiros de bloco.

    Outro chorão primordial que só gravou na Faulhaber foi Alfredo Carlos Brício, compositor da autorreferida “Alfredinho no choro”, polca em que atua como solista, no clarinete, acompanhado pelo Pessoal da Lira. Também de sua autoria é “Samba em casa da baiana”, cuja gravação, em 1912, merece uma atenção especial, segundo Sandor Buys: “É a primeira música de que se tem notícia identificada como samba de partido-alto”, observa o pesquisador. “E o Alfredinho era frequentador da casa de Tia Ciata, na Praça Onze, ambiente que pode muito bem ter sido a inspiração deste samba.”

    O olhar histórico também não passa batido pelo lundu “Batuque na cozinha”, em cujo disco (de 1912) se ouve pela primeira vez que “batuque na cozinha sinhá não quer”, mote que reaparecerá em 1937, numa gravação de Joel e Gaúcho, e em 1968, num grande sucesso de João da Baiana. Mas quem cantou primeiro foi Zeca, cuja voz se ouve em outros nove fonogramas da Faulhaber, entre eles o lundu “Minha namoradinha”, gravado num diálogo buliçoso com a cantora Florisbela.

    Já o maestro e professor João Elias Cunha é um destaque entre tantos personagens pouco ou nada conhecidos da história da música brasileira. Isso porque, além de ser o autor de músicas como o dobrado “Artista” (gravado pela Banda da Casa Faulhaber), “lutou na Guerra do Paraguai, tocou para a corte imperial, foi abolicionista e defensor da República, compôs o hino do estado do Rio de Janeiro”, como se lê na página 464 do volume da série “Discografia Brasileira – Os pioneiros” dedicado à Casa Faulhaber.

    A história de João Elias está contada, assim como as de tantos outros autores e intérpretes, no capítulo 4 do livro de Sandor Buys. “Para complementar esse estudo sobre a identificação dos discos, passei a listar os nomes que apareciam nos rótulos e a levantar dados biográficos, sem imaginar que eu chegaria tão longe”, relembra o autor, incansável leitor das letras miúdas da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. “Dos poucos mais de duzentos artistas que consegui relacionar, mais da metade inexistiam na literatura sobre música.”

    Entre tantos novos verbetes na praça, emerge a cena musical de Juiz de Fora (MG) no início do século 20. Personagens como Clementino de Oliveira, o músico que, quando não estava atendendo em seu consultório de dentista, tocava sua flauta em concertos na cidade mineira ou em gravações da Casa Faulhaber, fossem de músicas nacionais, como a bela valsa “Angélica” (autoria não informada), fossem de estrangeiras, como a polca “Elisa”, do holandês Willem Jan Paans.

    Já Henrique Escudero, atuante também no teatro e no circo, é nome recorrente nos achados de Sandor Buys, seja regendo sua Banda Escudero, seja como autor da polca “Saudades de Juiz de Fora”, entre outras músicas. Além de Juiz de Fora, também regeu bandas em Petrópolis, Caçapava (SP), Santos (SP) e no Rio de Janeiro, onde gravou também na Casa Edison.

    Retratos dos verbetes do livro 'Casa Faulhaber (1910-1914)': o maestro Henrique Escudero (reprodução do Almanack dos Theatros, ano 4, 1910) e o barítono Geraldo Magalhães (reprodução do site do Museu do Fado)

    Pela Casa Faulhaber passaram também figurões da música brasileira, como o barítono gaúcho Geraldo Magalhães. Sozinho ou com a dupla Os Geraldos (que formou com Nina Teixeira, depois substituída por outras cantoras), fez sucesso no teatro de revista e chegou a excursionar pela Europa, onde passou a viver – em Lisboa – em 1927. Em sua extensa discografia deixou gravações que saíram pelo outro selo produzido na Rua da Constituição, o Disco Faulhaber, feito em associação com a Polyphon. Entre elas estão as canções “Meu coração é teu” (de autoria não informada) e “Minha caraboo”, composição do jamaicano Sam Marshall com letra brasileira do carioca Alfredo Albuquerque.

    Entre os 66 discos de 78 rpm lançados pelo selo Disco Faulhaber há também lembranças dos antigos carnavais, como a marcha-rancho “Gentil pastora” cantada pela Sociedade Carnavalesca Flor do Abacate, numa gravação chiada – porém imperdível – de 1911. Fundado em 1906, no bairro do Catete, o Flor do Abacate foi um dos mais tradicionais ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro, rivalizando com a Papoula do Japão, as Mimosas Cravinas e o popular Ameno Resedá, entre outras agremiações.

    “Os discos da fase mecânica são o foco deste trabalho que estamos fazendo, mas inevitavelmente o que resulta de tudo isso vai muito além dos 78 rotações”, observa Sandor Buys. “É todo um panorama da música brasileira da época, com seus compositores, intérpretes, músicos... Pessoas que passaram por aqui, produziram e, muitas vezes, estão inexplicavelmente esquecidas.”

    A Casa Faulhaber fez gravações até o fim de 1912, mas seguiu vendendo discos em seus estabelecimentos comerciais. Isso até 1914, quando o início da Primeira Guerra Mundial tornou inviável a manutenção de negócios com a Alemanha, levando a Faulhaber a encerrar suas atividades fonográficas. Outro motivo decisivo para este fim foi a aquisição, pela Casa Edison, da patente exclusiva para comercializar discos duplos (com dois lados, novidade na época), dificultando ainda mais a tarefa da concorrência.

    Mas a história da fonografia brasileira seguiu por outros caminhos, como saberemos nos próximos volumes da série “Discografia Brasileira – Os pioneiros”. Clique aqui para acessar/baixar o livro digital “Casa Faulhaber (1910-1914)”.

    Na foto principal: Sandor Buys com o 78 rpm da Casa Faulhaber com a primeira gravação do tango 'São João debaixo d'água' pelo Choro Carioca

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