<
>
/
 
0:00
10:00
author  
performer  
    minimize editar lista close

    Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar dados mais precisos sobre a autoria dessa obra. Qualquer informação será bem-vinda.

    Domínio público
    Clique no botão para baixar o arquivo de áudio

    Posts

    Todo mundo bole: há 85 anos, um samba de Caymmi inaugurava um dito popular

    Pedro Paulo Malta

    play tracks

    Quem não gosta de samba
    Bom sujeito não é
    É ruim da cabeça...

    E aí você há de convir que até os doentes do pé hão de completar a estrofe deste samba que faz parte do imaginário popular. Mais do que famoso, consagrado ou clássico, é um desses sambas que, de cantado, repetido e citado, passou a ser conhecido por todo tipo de gente. Roqueiros, sertanejos, millennials, monges, freirinhas, pastores, madames (pra que discutir com elas?) e até aqueles que não fazem ideia de quem foi Dorival Caymmi.

    Pois era justamente este o sonho dele, compositor do samba: “Chegar nessa perfeição de ser o autor de uma ‘ciranda, cirandinha’, uma coisa que se perca no meio do povo”, como disse ao jornalista Tárik de Souza (Veja, 17-05-1972). “Tenho ânsia de ser o autor do mais puro, do mais simples. Parto para encontrar a forma mais doce de dizer as palavras de uma canção, num estribilho que você segure na cabeça, que trauteie, que assovie.”

    E assim “O samba da minha terra” cumpriu, como nenhuma outra música de Caymmi, seu desejo de compositor. E por isso mesmo é curioso que, nesses 85 anos que se passaram desde sua primeira gravação (23-09-1940), feita pelo conjunto Bando da Lua, a história deste samba tenha sido contada de maneira tão discreta nas matérias ou livros sobre Caymmi e sua obra.

    Pode ser que esta história não tenha tantos detalhes quanto, por exemplo, a de seu primeiro sucesso, “O que é que a baiana tem”, como já contamos por aqui num post. Ou a da pirraça infantil que resultou em seu samba-canção mais conhecido, “Marina”, como se lê neste outro texto. Ou ainda a dos nove anos que o samba “João Valentão” levou para ser feito, conforme detalhado nesta outra postagem.

    O próprio Caymmi era econômico ao falar de sua composição mais conhecida, como nas anotações que deixou em seu fundamental “Cancioneiro da Bahia” (Editora Record, 1978): “O samba que intitulei ‘O samba da minha terra’ foi inspirado em sambas de roda onde se cantam estribilhos referentes ao ‘bole-bole’, ao ‘requebrado’, sugestões nascidas, sem dúvida, do movimento quente e sensual das ancas das negras baianas, desse remelexo que é próprio da música negra.”

    Uma festa de rua soteropolitana na tela Musicando, de Carybé, grande amigo de Dorival Caymmi /  Reprodução do Instituto Carybé

    Ainda na entrevista a Tárik de Souza, Caymmi amplia a importância destes estribilhos – que ouvia nas “festas da Conceição da Praia, da Ribeira” – e do movimento sensual das baianas para além de “O samba da minha terra”. “Nos contatos com a vida musical do povo baiano, nos festejos, consegui tirar, por instinto, uma fórmula pessoal em torno do samba de rua”, explica. “Esse tipo corridinho, mexidinho de ‘quando você se requebrar caia por cima de mim’, sabe?”

    Pelo verso citado – do samba “O que é que a baiana tem” – nota-se que o corridinho está na obra caymmiana desde seu início. Ou melhor, que as referências trazidas da Bahia para o Rio de Janeiro (onde chegou para morar em 04-04-1938) levaram menos de um ano até virarem samba: foi no dia 27-02-1939 que Carmen Miranda e o próprio Dorival Caymmi entraram no estúdio da Odeon para fazerem a primeira gravação daquele samba.

    A tal “fórmula pessoal”, inspirada no requebro das baianas e traduzida pro samba no telecoteco ligeiro (à moda do samba-choro) de determinadas frases, é o eixo central dos sambas buliçosos de Caymmi. Ritmados à moda de Salvador (“É o estilo de rua que eu captei lá na minha cidade”, definiu em entrevista a Gustavo Falcon para a TVE da Bahia), eles são – assim como as canções praieiras e os sambas-canção – uma das marcas de sua obra.

    E assim foram surgindo, na imaginação de Caymmi, musas e mais musas que, à luz dos dias atuais, talvez resultassem no cancelamento de seu criador "saliente". E aí não saberíamos da vizinha que, quando passa balançando as cadeiras, “mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”. Da “moreninha da sandália do pompom grená” que, se requebrar, ganha um doce. Da “baiana de saia rodada e sandália bordada” que, sambando, é tentadora como o diabo. Ou da conterrânea desta que, pra fazer vatapá, não pode parar “de mexer, que é pra não embolar”.

    No caso específico de “O samba da minha terra”, vale observar que este jeito de andar ou dançar – “Todo mexidinho, né? Reboladinho”, como observou, maroto, ainda na entrevista para a TVE baiana – já tinha dado em samba no Rio de Janeiro pré-Caymmi. Assim nos informa o cronista Vagalume (Francisco Guimarães) em seu livro “Na roda do samba” (Tipografia S. Benedito, 1933), no qual, ao exemplificar um samba de partido alto, registra um refrão muito cantado no Morro da Favela:

    Como tu boles, boles, boles – boles
    Como tu boles, boles, boles – boles
    Bole, mulata de cadeiras moles
    Bole, mulata de cadeiras moles

    Pois é esta a rima – rica, diga-se (adjetivo com verbo) – que, já na virada entre as décadas de 1930 e 40, reaparece no samba de Caymmi. Mais um que, assim como o que destrinchava a indumentária típica da baiana do acarajé (com seu torso de seda, brincos de ouro, pano da costa, bata rendada...), refere-se à Bahia natal:

    O samba da minha terra
    Deixa a gente mole
    Quando se canta
    Todo mundo bole

    E assim “O samba da minha terra” chegou ao Bando da Lua, em meados de 1940, no retorno que eles faziam ao Brasil após temporada bem sucedida (de maio de 1939 a julho de 1940) acompanhando Carmen Miranda nos Estados Unidos. Formado por Aloysio de Oliveira, Hélio Jordão Pereira, Vadeco (Osvaldo Éboli), Ivo Astolfi e os irmãos Afonso e Stênio Osório, o conjunto ladeou a cantora em noites na Broadway, nas sessões de filmagem de “Serenata tropical” (estreia cinematográfica de Carmen nos EUA) e numa série de discos feitos na gravadora Decca.

    O Bando da Lua:  Stenio Osório, Vadeco, Aloysio de Oliveira, Ivo Astolfi, Hélio Jordão Pereira e Afonso Osório / Foto de Annemarie Heinrich na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Inversamente proporcional ao sucesso estadunidense foi a frieza com que foram recebidos – a cantora e o conjunto – no show beneficente que fizeram logo depois da chegada no Rio de Janeiro. Isso no Cassino da Urca, numa noite (15-07-1940) que terminou com Carmen em prantos, depois de se retirar do palco sem entender por que aquela plateia não a aplaudia como as outras, que há pouco mais de um ano a consagravam no mesmo cassino.

    “No dia seguinte nos reunimos com Luís Peixoto e traçamos um plano”, relata Aloysio de Oliveira em seu livro de memórias “De banda pra lua” (Ed. Record, 1983). O plano, segundo o líder do Bando, culminava com uma reestreia popular que eles fariam no próprio Cassino da Urca, com um repertório cheio de novidades como, por exemplo, “Disseram que eu voltei americanizada” (de Peixoto com Vicente Paiva). “A volta de Carmen, sem público de black-tie e sem grã-finos, foi um enorme sucesso.”

    O Bando da Lua também estreou novidades na temporada, a começar pelo “Samba da minha terra”, ainda cheirando a tinta, recém parido por Dorival Caymmi. E a julgar pela gravação que fariam em setembro, o samba tinha uma estrutura diferente da que seria eternizada ao longo do tempo: após cantar a primeira parte duas vezes, o conjunto entrava na segunda parte, com a seguinte letra (também bisada):

    Eu nasci com o samba
    No samba me criei
    E do danado do samba
    Nunca me separei

    Só então, depois de voltar à primeira parte e cantá-la mais uma vez, o Bando da Lua chega à outra letra da segunda parte: a dos famosos versos que abrem este texto (arrematados com “Ou doente do pé”) e, com o tempo, serão promovidos na estrutura do samba.

    Mas, por enquanto, será com esta estrutura — e uma citação de “O que é que a baiana tem” na introdução — que Aloysio e cia. farão o primeiro registro sonoro de “O samba da minha terra”. A gravação, realizada em setembro de 1940, será a última da temporada carioca do Bando: quanto ela chegou às lojas, em novembro, no 78 rpm de nº 55245 da Columbia, o conjunto já estava de volta nos Estados Unidos, participando do novo filme de Carmen Miranda.

    A gravação “alcançou enorme sucesso”, segundo Stella Caymmi, na biografia do avô (“Dorival Caymmi: o mar e o tempo”, Ed. 34, 2001), mas ainda levou algum tempo para ser regravada. Isso até 1956, quando o pianista gaúcho Britinho (João Leal Brito) e seu conjunto incluíram “O samba da minha terra” num dez polegadas todo com composições do baiano. No ano seguinte foi a vez do próprio autor regravar sua composição, mantendo a estrutura gravada pelo Bando da Lua, mas com uma pequena alteração nos versos mais famosos: “Quem não gosta do samba...”

    "Esta belíssima página é inspirada em sambas de roda”, destacou o colunista Claribalte Passos na crítica que publicou no Correio da Manhã (30-06-1957) sobre o dez polegadas “Eu vou pra Maracangalha” (Odeon, 1957), que trouxe a gravação de Caymmi, na faixa 2 do lado A, logo após a faixa-título, outro samba de imenso sucesso do repertório caymmiano.

    Ainda em 1957, o Trio Irakitan regravou “O samba da minha terra” com novidades em relação ao arranjo original: em vez da primeira parte cantada em coro e as segundas a cargo de um solista (como fizera o Bando da Lua), o trio faz a primeira em uníssono, abrindo vozes nas segundas. Já os Vocalistas Modernos, ao gravarem o samba em 1960, transformaram o bole-bole em bossas cantadas no fim, assim como Elza Soares fará em 1965.

    O samba de Caymmi teve ainda outras regravações por conjuntos vocais, com destaque para o MPB-4 em duas ocasiões – primeiro em 1964, depois em 1991 – e os Barbatuques, com sua irresistível percussão corporal e uma aula de balanço no registro gravado em 2020.

    No entanto, ninguém buliu com o samba de Caymmi como Lúcio Alves, que alterou sua estrutura ao regravá-lo em 1960: na sua interpretação, a segunda parte começa pela segunda letra (“Quem não gosta de samba…”) e, em vez da repetição desses versos, Lúcio vai direto pra outra letra (“Eu nasci com o samba…”), também cantada uma vez só. Esta forma, aproveitada por João Gilberto na gravação mais difundida de “O samba da minha terra” (1961), será a mais replicada nas regravações subsequentes da composição de Caymmi.

    A interpretação balançada de João mereceu destaque no livro “A canção no tempo – vol. 1” (Ed. 34, 1997), no qual os autores, os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, sublinham o acompanhamento do “conjunto de Valter Wanderley, num arranjo que se inicia com uma marcante introdução de João, imitando um tamborim, numa demonstração inequívoca de que a bossa nova era fortemente enraizada no balanço do samba”. A introdução onomatopaica reaparece em outra regravação de João, feita ao vivo no Carnegie Hall, em Nova York (1965).

    Pois foi a partir do filtro bossa-novista que o buliço de Caymmi voou por outros países. Como na interpretação cool do estadunidense Charlie Byrd (1963), em cuja guitarra o “pobre samba meu” rebola com jeito de mambo. Mais fiéis a telecoteco – da bossa nova, diga-se – foram outros compatriotas do guitarrista: o dançarino Lennie Dale, que incluiu o samba num pot-pourri de 1964, e a cantora Lani Hall, no LP de música brasileira que fez em 1981.

    Dorival Caymmi / Reprodução da internet

    O bole-bole também passou longe na regravação que o próprio Caymmi fez nos Estados Unidos, com arranjo “doente do pé” de Bill Hitchcock para o LP “Caymmi (Kai-ee-me) and The Girls from Bahia”, que o compositor dividiu com o Quarteto em Cy em 1965. Felizmente, o samba se restabelece em outras regravações do compositor: uma delas em 1972, no programa MPB Especial, da TV Cultura (transformado em CD no ano 2000 pelo Sesc-SP), e outra em 1985, com arranjo delicado de Radamés Gnattali para um disco/livro bancado pela empreiteira baiana Odebrecht.

    Por essa época, “O samba da minha terra” já havia frequentado mais uma vez as paradas de sucesso com a irreverência dos Novos Baianos, que em 1973 timbraram a guitarra de Pepeu Gomes com o canto suingado de Moraes Moreira, que regravou este samba outras duas vezes: num show com o próprio Pepeu no Japão (1991) e sozinho, num tributo a Dorival por seus 80 anos (1994).

    E quando foi a vez de comemorar o centenário do mais-velho baiano (2014), Gilberto Gil prestou sua homenagem póstuma cantando “O samba da minha terra” cheio de bossa, em arranjo elegante de Mário Adnet. O mesmo não se pode dizer do registro deixado – neste mesmo ano – por Cláudia Leitte, que dá ares de pagode baiano à interpretação dividida com Simoninha e a dupla sertaneja Bruno & Marrone.

    Já o pagode carioca ressoa em registros de boa pegada como os que fizeram Roberto Ribeiro (1992), o Fundo de Quintal (2008) e a madrinha do conjunto, Beth Carvalho (2007), esta acertadamente reverente a Dorival, cuja voz é ouvida no início de sua gravação. Tudo bem diferente de Rosinha de Valença, a genial violonista (e aqui cantora) que, minimalista e precisa como João Gilberto, dá uma aula de balanço num registro de 1971.

    Igualmente irresistível é o suingue da interpretação de Rosa Passos (2002), esta soteropolitana de fato, assim como Daniela Mercury, que enfileirou o sucesso caymmiano com outros sambas numa sequência que, ritmada por uma batida eletrônica, não bole (e nem poderia...) como as ancas inspiradoras de Dorival.

    Na imagem principal: o rótulo da gravação original de 'O samba da minha terra', pelo Bando do Lua / Arquivo Nirez 

    title / author
    performer
    accompaniment
    album
    year