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    Saravá, Vinicius de Moraes! Memórias em 78 rpm do poeta, letrista, compositor, diplomata, cronista...

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Rio, setembro de 1953: há pouco mais de 70 anos, chegava às lojas o 78 rotações com a primeiríssima gravação de “Quando tu passas por mim”, clássico do samba-canção lançado na voz de Aracy de Almeida com acompanhamento de Abel Ferreira e seu conjunto em disco da Continental. Não tardou para A Noite trazer impressa a letra deste “bonito samba” (23-10-53) e pro Diário Carioca (17-01-54) elogiar a “excelente atuação” da intérprete, que “cantou o fino”, segundo o jornalista Antônio Maria, um dos autores da composição (Flan, 20-09-53).

    Houve também quem torcesse o nariz (empinado) ao ver o nome do parceiro de Maria no samba-canção: como assim, Vinicius de Moraes metido com música popular...? Isso lá é coisa digna de um poeta?!!! Mesmo que Vinicius estivesse longe de ser um poeta empoado. Que seus versos corressem as ruas, de boca em boca, numa época em que se sabia de cor poemas como o “Soneto de fidelidade”:

    Que não seja imortal
    Posto que é chama
    Mas que seja infinito enquanto dure

    ...o “Soneto de separação”:

    De repente do riso fez-se o pranto
    Silencioso e branco como a bruma...

    ...e o “Dia da criação”:

    Porque hoje é sábado.

    A ala mais sisuda da intelectualidade não perdoaria o desfrute do poeta, que afinal já tinha 40 anos, sete livros publicados (desde 1933) e um prêmio literário, o Felipe d’Oliveira, conquistado em 1935. Depois de algum tempo, até mesmo o apelido Poetinha, tão querido por ele (posto que nascido do afeto de seu público), passaria a ser usado também com desdém por “defensores da ideia de que Vinicius estava vendendo a alma à música para ganhar dinheiro e mulheres”, como afirmou ao Jornal da Puc (07-11-2013) o escritor José Castello, autor de “Vinicius de Moraes: o poeta da paixão” (Cia das Letras, 1993).

    O poeta e roteirista Geraldo Carneiro, que também biografou Vinicius (em 1984, pela editora Brasiliense), é outro para quem o apelido diminutivo não condiz com a grandeza do artista, como disse ao site UOL (07-09-2013): “Acho que Vinicius ainda não ocupa o lugar que merece na história da literatura brasileira por causa do excessivo cultivo da personalidade em detrimento da obra.”

    Menos mal que o próprio não parecia se importar com o desdém dos literatos de raiz. “Não há diferença do poeta para o compositor, mesmo porque o samba autêntico é a poesia do povo”, dirá Vinicius à Revista do Rádio (12-09-1959). “O compositor não nasceu hoje. É quase uma tradição, uma herança recebida da família”, conta o poeta, antes de dizer que os tios Aníbal (materno) e Henrique (paterno) “arranhavam o seu violão, o seu cavaquinho e compunham também. Deles recebi o gosto pela música”.

    Tudo isso entre uma chácara na Rua Lopes Quintas (Jardim Botânico), onde nasceu há 110 anos (19-10-1913), e as casas em Botafogo onde a família viveu durante sua adolescência. Com amigos do Colégio Santo Inácio, onde estudou, chegou a formar um conjunto para tocar nas festas – entre eles estão os irmãos Haroldo e Paulo Tapajós, seus parceiros das primeiras criações musicais, em ritmo de fox: composições de 1928/29 que sairão em disco a partir de 1932 – ano das primeiras gravações de músicas de Vinicius, “Loura ou morena”“Doce ilusão”, lançadas num mesmo 78 rpm da Columbia. 

    Só no ano seguinte publica seu primeiro livro de poemas, “O caminho para a distância”, incentivado pelos colegas da Faculdade de Direito do Catete. Em seguida, virão “Forma e exegese” (1935), “Ariana, a mulher” (1936), “Novos poemas” (1938), “Cinco elegias” (1943) e outras novidades, como o início da carreira diplomática (1943) e os artigos diversos que publica em impressos como A Manhã, Diário Carioca e Diretrizes.

    Até que, já na década de 1950, o poeta, articulista e diplomata voltou a se engraçar pela música: além da já citada parceria com Antônio Maria, saiu em disco – também na voz de Aracy de Almeida – o samba “Bom dia tristeza”, com Adoniran Barbosa. E Sílvio Caldas deu voz à versão musicada – por Paulo Soledade – do “Poema dos olhos da amada”.

    Mas o marco de sua entrada definitiva na música veio só em 1956: “Orfeu da Conceição”, a peça em que Vinicius transportava o mito grego de Orfeu para uma favela carioca. O texto começou a ser rabiscado em 1942, em Niterói, foi encorpado em 1947/48, quando o poeta servia como diplomata em Los Angeles, e chegou ao ponto final em 1953, com Vinicius já servindo em Paris. Na estreia, em 25 de setembro de 1956, os aplausos do Theatro Municipal lotado não só faziam jus à peça e ao elenco inteiramente negro (para o incômodo racista de parte do soçaite), como abençoavam o novo caminho (teatral e musical) de Vinicius.

    O début do poeta foi festejado pela imprensa, com vivas ao elenco, à direção de Léo Jusi, ao cenário de Oscar Niemeyer e à música do jovem Tom Jobim, aqui estreando com Vinicius a parceria que mudaria os rumos da música popular brasileira. Do repertório da peça são sucessos da dupla como “Lamento no morro” e “Se todos fossem iguais a você”, esta uma das mais regravadas da dupla Tom e Vinicius em 78 rpm, com onze ocorrências na Discografia Brasileira.

    Dois anos depois, quando a peça foi adaptada para o cinema, resultando no premiado filme “Orfeu negro” (vencedor do Oscar e da Palma de Ouro de Cannes em 1959), do francês Marcel Camus, o público – não só o brasileiro – conheceu outros sucessos da dupla, como “O nosso amor” (“Vai ser assim / Eu pra você / Você pra mim…”) e “A felicidade”, esta a mais regravada de Tom e Vinicius em 78 rpm, com 13 ocorrências.

    Também no gosto popular caiu o eterno “Eu sei que vou te amar”, samba-canção bem à moda dos anos 1950, com versos sofridos como os de “Janelas abertas” e “Eu não existo sem você”, estas duas lançadas também por Elizeth Cardoso no famoso disco de dez polegadas “Canção do amor demais” (Festa, 1958). Neste repertório da Divina também está “Serenata do adeus”, só de Vinicius, imbatível no quesito sofrência:

    Crava as garras no meu peito em dor
    E esvai em sangue todo o amor
    Toda desilusão

    E, como que respondendo às próprias lamúrias, veio “Chega de saudade”, o samba-choro que, na voz e no violão de João Gilberto, inaugurou em 1958 a bossa nova, definida por Vinicius como “uma filha moderna do samba tradicional, que teve seu namoro com o jazz, especialmente o chamado West Coast, mas que, tal como a praticam seus melhores homens – Jobim, João Gilberto, Lyra, Menescal, Donato, Castro Neves e Baden Powell – não sofreu nenhuma descaracterização nem perda de nacionalidade” (do texto “Contracapa para Paul Winter”, de janeiro de 1965, publicado no livro “Para uma menina com uma flor”).

    Outros clássicos da bossa nova compostos por Tom e Vinicius e lançados em 78 rotações foram “Brigas nunca mais”, “Só danço samba”, “Insensatez”, “O morro não tem vez” e “Água de beber”, este último composto pelo poeta no período que ele e o parceiro passaram em Brasília, a convite do presidente da República, Juscelino Kubitschek, que lhes encomendara a “Sinfonia da Alvorada”, como contamos em um post aqui na Discografia Brasileira.

    Outra boa história é a da “menina que passa”: a composição da dupla que nasceu originalmente para um musical sobre um extraterrestre e acabou se tornando o maior sucesso da parceria, da bossa nova e da própria música brasileira no exterior, “Garota de Ipanema”, cuja história também esmiuçamos num post por aqui, quando se completaram 60 anos de sua primeira gravação, na voz de Peri Ribeiro, em 1961.

    Desse mesmo ano – segundo os apontamentos autobiográficos de Vinicius – é o início de sua produção com outro parceiro fundamental, Carlos Lyra, presente na porção mais engajada de sua obra. Começaram pelo musical “Pobre menina rica”, para qual compuseram “Sabe você”, “Samba do carioca” e “Primavera”, entre outras, que se somariam a outras cantadas em ritmo de samba, como “Minha namorada” e “Coisa mais linda”.

    Aqui na Discografia Brasileira, no entanto, a única composição da dupla é a “Marcha da quarta-feira de cinzas”, música que se tornaria um retrato dos anos de chumbo, mas é anterior ao golpe de 1964. “Vinicius teve uma premonição, ele já sentia o que estava por vir”, disse Lyra, citando o estadunidense Ezra Pound (“O poeta é a antena da raça”), numa entrevista para este site sobre a famosa marcha-rancho, mais uma com versos emblemáticos:

    E no entanto é preciso cantar
    Mais que nunca é preciso cantar
    É preciso cantar e alegrar a cidade

    Além das obras com Tom e Lyra, Vinicius completou sua “santíssima trindade” quando, também por volta de 1960/61, começou a fazer música com Baden Powell, “compositor e extraordinário violonista” com quem encaminhou sua obra para um “sentido mais nacionalista, por assim dizer”, trazendo para a bossa nova “a temática dos ritos negros do candomblé”, como definiu na já citada “Contracapa para Paul Winter”. O poeta se refere às composições que fizeram para o clássico LP “Os afro-sambas de Baden e Vinicius” (Forma, 1966), cujo repertório é aberto com “Canto de Ossanha”.

    Coitado do homem que cai
    No canto de Ossanha traidor
    Coitado do homem que vai
    Atrás de mandinga de amor

    Da obra deles há  dois exemplares que foram lançados em discos de 78 rotações: “Pra que chorar” e o chopiniano “Samba em prelúdio”, que se juntam a outros sucessos da parceria gravados em LP, como “Berimbau”, “Consolação” e o “Samba da bênção”, este último famoso pelos saravás que Vinicius distribui à gente de seu afeto. Entre estes estão parceiros queridos, como os maestros Moacir Santos (“Que não és um só, és tantos”), com quem fez “Se você disser que sim” e “Menino travesso”, entre outras composições, e o veterano Pixinguinha (“Tu que choraste todas as minhas mágoas de amor”), dos clássicos “Lamento” e “Mundo melhor”.

    Logo se tornaria também iniciador de jovens compositores que surgiram após o sucesso da bossa nova. Como Edu Lobo, que tinha pouco mais de 20 anos quando “Arrastão”, com melodia dele e versos do poeta, venceu o Festival da Canção da TV Excelsior em 1965, no canto de Elis Regina. E Chico Buarque, também na faixa dos 20 quando fizeram “Desalento”,  “Olha Maria” (deles com Tom Jobim) e “Gente humilde” (sobre choro de Aníbal Sardinha, o Garoto), entre outras. Ou ainda Francis Hime, que, embora mais velho que os outros dois, não tinha 30 anos quando compôs “Sem mais adeus” e “Anoiteceu”, ambas letradas pelo poeta.

    Nenhum deles, no entanto, foi tão parceiro de Vinicius quanto o violonista paulistano Antonio Pecci Filho, o Toquinho, que tinha 23 anos quando começaram a trabalhar juntos, em meados de 1970. Na última década de vida do poeta, foi seu grande companheiro não só nos palcos, como também em onze discos (dos 23 de Vinicius lançados em vida) e 87 composições, segundo o “Livro de Letras” (Cia das Letras, 1991), entre as quais sucessos como “Tarde em Itapoã”, “Regra três” e “Sei lá... A vida tem sempre razão”.

    E foi na companhia de Toquinho que Vinicius fez o LP “A arca de Noé”, a partir do 13º livro do poeta (“A arca de Noé, poemas infantis”, de 1970), que já tinha inspirado um disco de sucesso na Itália: “L’arca – canzoni per bambini”, com colaborações dos italianos Sergio Endrigo e Sérgio Bardotti, do argentino Luiz Enriquez Bacalov e do próprio Toquinho. No repertório de lá, como no de cá, os bichos têm a companhia de seu protetor, “São Francisco”, poema musicado por Paulo Soledade que teve sua primeira gravação em 1954, por Sílvio Caldas.

    Mas Vinicius não viveu a tempo de ver o lançamento brasileiro da versão musicada de sua “Arca de Noé”, em outubro de 1980: quando faleceu, na manhã de 9 de julho daquele ano, em sua casa, no bairro carioca da Gávea, vinha trabalhando justamente neste repertório com Toquinho, hospedado num dos cômodos da residência. Uma embolia pulmonar encerrou a vida do poeta, que, aos 67 anos incompletos, tinha saúde debilitada por complicações decorrentes de diabetes e dois AVCs sofridos no ano anterior.

    O sepultamento, realizado no fim do mesmo dia, foi acompanhado por cerca de 500 pessoas, entre familiares, amigos e fãs do poeta, que tantas vezes tratou da morte em versos, como nos poemas “A hora íntima”:

    Quem pagará o enterro e as flores
    Se eu me morrer de amores?

    ...e “Poética I”:

    Eu morro ontem
    Nasço amanhã
    Ando onde há espaço
    — Meu tempo é quando

    Mas foi mesmo com versos musicados e em ritmo de samba...

    Tristeza não tem fim
    Felicidade sim

    ...que os presentes fizeram suas últimas homenagens a Vinicius de Moraes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, enquanto o corpo baixava à sepultura do jazigo 366 C, quadra 30, precisamente às 17h20, “debaixo de um céu azul e rosa”, como informou – não sem alguma poesia – na edição do dia seguinte o Jornal do Brasil.

    Foto: Vinicius de Moraes em 1971 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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